Como a pandemia pode acelerar as mudanças da mobilidade urbana no Brasil

Cidades transformando ruas para aumentar o espaço para pedestres. Uma intervenção de Ruas Completas em Porto Alegre-RS.

Foto: Daniel Kener Neto/WRI Brasil

Por: Sérgio Fraga e Thalita Vieira

Com o aparecimento da Covid-19, esse assunto volta aos holofotes, junto com o contexto histórico, as complexidades, dilemas e as soluções que envolvem essa temática.

A mobilidade urbana é uma velha conhecida do povo brasileiro, sendo debatida por diversas vezes na esfera pública, com desafios que devem ser superados, por exemplo, criando uma rede de transporte eficaz ou melhorando a questão da fluidez do trânsito.

Com a pandemia da Covid-19, vieram novos obstáculos para serem vencidos, e o principal seria conceber um sistema que se mostre seguro o bastante para garantir a saúde dos usuários.

A Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) é uma entidade privada, sem fins lucrativos, fundada há 43 anos, que tem como bandeiras a defesa permanente do transporte público de excelência, mobilidade urbana sustentável e cidades com qualidade de vida.

Luiz Carlos Néspoli, superintendente da ANTP, destaca duas adversidades principais que a falta de planejamento impacta sobre este tema no Brasil. “A primeira seria a concentração dos empregos nas áreas centrais dos municípios e as moradias em regiões mais distantes, isso criou um movimento concentrado no sentido bairro-centro e vice-versa, nos horários de pico, gerador de ineficiência no sistema de transporte público. E a segunda, seria o espraiamento da cidade, por meio da inexistência de uma política que pudesse favorecer a ocupação de áreas vazias mais próximas do centro e dos principais eixos viários”.

Luiz Carlos Néspoli, superintendente da ANTP: “O uso do automóvel não deveria ser o modo preponderante para as locomoções rotineiras do dia a dia, mas sim para situações excepcionais e para viagens”.
Foto: Arquivo Pessoal.

“Essas causas elevaram o custo do transporte público, pressionando a tarifa para cima. Um dos indicadores de eficiência é a quantidade de pessoas transportadas por unidade de quilômetro rodado (IPK). Quanto maior este índice, menor a tarifa para a população. Com atividades melhor distribuídas na cidade, corredores mais adensados e com atratividade, a renovação (embarque e desembarque dos ônibus) aumenta o número de passageiros transportados e amplia o IPK”, comenta o superintendente.

O Brasil é um país que sempre incentivou o uso do automóvel, isso ocorreu principalmente nos anos de 1950 e também na última década – com a redução no preço dos veículos via diminuição de impostos e o alargamento do crédito – que saiu de uma frota de 36 milhões em 2003, para 100 milhões em 2019. Néspoli pontua que essa escolha pode ter contribuído para essas contrariedades atuais, “esse incentivo se manifesta em vários aspectos, por exemplo, no investimento em infraestrutura. Segundo o Sistema de Informações da Mobilidade Urbana, que reúne dados de 533 cidades com mais de 60 mil habitantes, o total investido pelos governos em infraestrutura para o transporte individual, foi cerca de 4 vezes mais do que para o transporte público”. Os dados estão contidos no último relatório produzido, em 2017.

E sob os pontos de vista social e econômico, as externalidades negativas são os aspectos mais significativos do transporte individual: congestionamento, acidentes e mortes no trânsito, grande gasto de energia, poluição ambiental e brutal consumo de espaço viário das cidades.

Rafael Marinho, 30, motorista de aplicativo há 4 anos e morador da cidade de Betim-MG, relata que uma das dificuldades enfrentadas no dia a dia, por ele e por outros profissionais, “é o trânsito caótico com um número excessivo de automóveis, vias afuniladas, ruas esburacadas e a sinalização precária”.

Rafael Marinho, motorista de aplicativo, conta sobre as dificuldades do dia a dia de quem utiliza automóveis como meio de trabalho.
Foto: Arquivo Pessoal.

Na visão dele, mudanças nas ações relacionadas ao tema precisam ser pensadas e idealizadas. “Nesta pandemia, com a quarentena, o clima ficou bem melhor, com menos poluição nas cidades, e houve também uma diminuição de carros nas ruas, ocasionando um trânsito mais favorável aos seus usuários”.

Por isso, o superintendente da ANTP afirma a importância do transporte coletivo: “Primeiro, ele é universal, atende a qualquer pessoa, está presente em todos os dias e horários. Segundo, ele transporta muito mais gente por metro quadrado de via pública. Se incentivado, e com mais qualidade, pode-se ampliar o uso e reduzir as externalidades negativas do transporte individual”.

Transporte na pandemia

Há muita incerteza sobre qual será o comportamento da população no pós-coronavírus. Sinais indicam uma migração de parte das atividades em escritórios para home office e, como também já havia antes da pandemia, um fluxo de migração para o transporte por aplicativo, visto ainda o receio de utilizar um coletivo urbano.

Em algumas cidades brasileiras, já há o uso de aplicativos de ônibus, como exemplo a Buser, UBus e a CityBus. O superintendente pontua que “de fato, há mercado para este tipo de transporte. Mas, tem que ser equacionado dentro de uma lógica de comércio de viagens coletivas como um todo, senão se torna injusta. O transporte público por ônibus tradicional é restringido, por contrato, a itinerários rígidos, horários inflexíveis e tarifas fixadas pelo poder público”.

Todos estes fatos somados podem reduzir ainda mais a demanda, e Néspoli explica o resultado disso na fixação da tarifa: “Como o preço público é fixado por um rateio do custo pelo número de passageiros transportados, é previsível o impacto no preço para quem permanecer no transporte público. É por isso que estamos discutindo, neste momento, outra forma de garantia do funcionamento deste modo de transporte, necessário, essencial e um direito da população, em especial para as camadas de menor renda”.

E acrescenta que “não é possível continuar imaginando que o transporte público no Brasil, diferentemente das maiores cidades do mundo, seja sustentado economicamente apenas pelos seus passageiros. O que é um absurdo, pois toda a sociedade – indústria e o comércio de modo geral, instituições, áreas da Saúde, áreas da Educação, e os próprios serviços destinados ao lazer da população – são beneficiários da existência do transporte público. Por isso, estamos batendo na tecla da necessidade de recursos não tarifários, em que toda a sociedade possa contribuir e não apenas o passageiro transportado”.

Com a pandemia, vieram questionamentos relacionados à saúde. O superintendente da ANTP esclarece que “enquanto as atividades forem parecidas com as atuais, as concentrações de pessoas continuarão a ocorrer. Ampliar a oferta de transporte para se evitar menores lotações requer custos adicionais e, portanto, aumentos tarifários. Essa forma de organização dos horários das atividades na cidade aumenta o custo social, já que o transporte público é dimensionado para as horas de maior demanda e o sistema viário também”.

Mobilidade urbana no pós-pandemia

Atualmente, existem pessoas da área da Saúde ou que trabalham com os serviços essenciais, que precisam sair às ruas e, possivelmente, daqui um tempo, muitas outras pessoas também sairão, por terem que voltar às rotinas de trabalho e estudo nos hipercentros. Por isso, mesmo sem a certeza do que nos espera, é necessário pensar nesse assunto.

O WRI Brasil faz parte do World Resources Institute (WRI), uma instituição global de pesquisa, com atuação em mais de 50 países. Ela transforma grandes ideias em ações, para promover a proteção do meio ambiente, oportunidades econômicas e bem-estar humano, e afirma que “o transporte coletivo é um direito social do cidadão brasileiro, regido pela Constituição e, por ser um direito, ele precisa continuar operando, e com qualidade”.

De acordo com a organização*, antes da pandemia causada pelo coronavírus, os números de passageiros nos transportes públicos já estavam caindo, mas com o isolamento social esse número despencou. Esse cenário motivou o envio de um ofício ao presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP), pleiteando que o Governo Federal investisse no transporte coletivo, como uma ajuda para que as cidades enfrentassem a crise.

“Para avançarmos, paradigmas precisarão ser vencidos, entre eles a criação de novas fontes de financiamento para o transporte coletivo, um aumento significativo de faixas viárias destinadas aos ônibus, o uso de big data para o planejamento e controle, a integração dos serviços por aplicativos com o transporte coletivo e uma gestão única da mobilidade na dimensão metropolitana”, afirma o WRI Brasil.

Pensando na sustentabilidade

É possível identificar possibilidades para avançar nessas mudanças, como observa o próprio WRI Brasil, frente ao urbanismo tático.

Trata-se de uma técnica de intervenções para promover a reaproximação dos espaços urbanos aos usuários, principalmente quando se trata das pessoas. “Essa tática pode incluir uma pintura de novas áreas para pedestres, instalação de mobiliário urbano de baixo custo ou a criação de parklets em lugares públicos”, explica a organização.

Esse é um tipo de projeto efetivo e que beneficia tanto quem o está projetando, quanto os usuários que o utilizam. Segundo o WRI, através do urbanismo tático é possível fazer mudanças momentâneas tendo a participação dos usuários para identificar as melhorias e, posteriormente, se tornar algo definitivo. 

Uma possibilidade, para que essas melhorias se tornem efetivas de forma acelerada, é a parceria entre as prefeituras. “O sucesso das coalizões depende, basicamente, de dois aspectos. Primeiro, uma boa estrutura de governança que permita uma relação amigável entre cidades participantes e a organização que as coordena. Reuniões online de acompanhamentos frequentes, a criação de uma plataforma de fácil acesso para compartilhamento de experiências e o planejamento de encontros presenciais periódicas para diálogos mais profundos, ajudam as pessoas a se sentirem conectadas e motivadas”, conta a organização.

Com essa parceria, os projetos de mobilidade urbana passam a ser tratados de forma diferente, conectando as cidades vizinhas, para que os planejamentos se interliguem e, juntos, possam ser executados mais rapidamente. O WRI Brasil ainda destaca que, “com a lista crescente de desafios enfrentados pelos municípios, é mais importante do que nunca que elas compartilhem experiências e possam entender o que funcionou em outros lugares. A instituição, junto a FNP, criou uma rede de cidades que trabalham para implementar Ruas Completas no país.”

O termo Ruas Completas é a definição de vias desenhadas com a finalidade de distribuir o espaço de maneira democrática aos que a utilizam e, consequentemente, geram conforto a eles. Conforme a organização, este conceito foi idealizado a fim de influenciar o poder público a levar em consideração outros aspectos ao planejar os perfis viários de uma cidade.

“Os benefícios das Ruas Completas e dos redesenhos táticos são mais evidentes do que nunca, devido às mudanças nos padrões de mobilidade, à diminuição dos carros nas ruas e à necessidade de mais espaço para o transporte não motorizado. E as mudanças estão sendo implementadas não somente para melhorar o uso do espaço público, mas também pelo potencial que a caminhada e a bicicleta têm de contribuir para uma cidade mais sustentável e boa para se viver – em resumo, pelos seus potenciais de transformação”, conclui o WRI Brasil.

*Segundo especialistas da WRI Brasil, em texto publicado no site.

Um comentário sobre “Como a pandemia pode acelerar as mudanças da mobilidade urbana no Brasil”

  1. SP corre o risco de diminuir sua atividade da mesma maneira como teve um aumento quando assumiu o que o RJ perdeu com a sua transferência para Brasília e mais recentemente com a incursão da atividade informática. A atividade econômica de SP corre o risco com o incremento do agronegócio no Br. A menos que SP consiga centralizar esse agronegócio, que é sobretetudo uma atividade de comercio exterior.

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