Violência contra trabalhadoras domésticas

Violência contra trabalhadoras domésticas

A escravidão não acabou. 

Escrito por: Kimberly Souza

Minha avó, dona Delsa Marino da Silva, é a do meio de quatro irmãos e filha de uma mãe solo. Aos 12 anos, teve que abandonar a escola para trabalhar em casas de família de classe média-alta, para garantir, pelo menos, a compra do pão para alimentar sua família em situação de miséria.

Cresci ouvindo suas histórias levando tapas da patroa porque o arroz do almoço ficou insosso. Ou das vezes que teve que limpar os azulejos do banheiro com uma escova de dente. Ou dos momentos que passava fome enquanto assistia a família se deliciar com a refeição que preparou. Ou de levar calote e não receber os centavos que lhe foram prometidos ao chegar.

Ela chorava, só chorava. E os seus prantos se juntavam aos de sua mãe, quando ficava sabendo que a renda daquele dia não chegaria. As histórias da vó Delsa datam da década de 1930, mas, para o desespero de quem ainda trabalha com serviços domésticos, a realidade não mudou quase nada. 

A Lúcia Constantino, 47, compartilha das mesmas aflições da minha avó. Aos 13 anos, em 1986, ela decidiu sair da casa da família, um sítio na zona rural de Crato, no Ceará, para continuar os estudos. 

“Lá no sítio eu só conseguiria estudar até a 4ª série. Mudei para a cidade e, por indicação de uma amiga, comecei numa casa de família para cozinhar e lavar roupa. Acho que naquela época, o normal para se ganhar no trabalho era 80 cruzeiros. Eu ganhava uns 24”, lembra-se.

Depois dessa primeira família, Lúcia trabalhou como doméstica em outras casas. As histórias de humilhação eram uma frequente: “Principalmente porque eu tinha que dormir no trabalho. Eu tinha hora para começar a trabalhar, mas para acabar, nunca. Na segunda casa que eu trabalhei, eu dormia em cima de uma mesinha de centro, no jardim de inverno, sem travesseiro ou coberta. Em outra casa, que era na fazenda, eu até tinha um quartinho do lado de fora, mas eles deixavam os cachorros soltos para estragarem meus pertences. Além disso, vira e mexe o meu patrão ia até meu quarto de madrugada para tentar abusar de mim, e eu fazia de tudo para não deixar ele entrar. No dia seguinte, ele me oferecia dinheiro para eu ficar quieta”. 

Nessa época, Lúcia ficou deprimida e com medo das situações que poderia passar. Por medo de seus pais e irmãos não acreditarem nos abusos que sofria no trabalho, ela procurou ajuda de uma professora na escola: “Eu chorava demais na escola e minha professora percebeu e veio perguntar o que estava acontecendo. Eu disse que não aguentava mais e ela me aconselhou a voltar para casa, viver com a família. Mas eu não queria, queria continuar estudando. Aí ela me ofereceu para morar com ela. Fiquei muito feliz com o convite, mas não aceitei”.

Depois de trabalhar na casa de 5 famílias no Ceará, em 1992, Lúcia mudou-se para São Paulo. Apesar de se sentir mais respeitada como trabalhadora doméstica na capital paulista, não faltaram situações de humilhação.

“O tratamento era mais humano, mas eu sempre me senti um passarinho na gaiola, sem saber o que fazer. Eu não sonhava, só tinha pesadelos, porque qualquer coisa que acontecia, a culpada era a empregada. Teve uma vez que trabalhei em um prédio em Fortaleza, quantas vezes não pensei em me jogar da sacada para acabar com esse sofrimento”.

Depois de anos na função de empregada doméstica, Lúcia foi convidada pelas irmãs a morar em Bebedouro, no interior de São Paulo. Lá, ela passou a trabalhar em empregos formais, como na Frente de Trabalho da prefeitura da cidade, pondo fim aos ciclos de fome, submissão e medo que enfrentou por tantos anos.

Afeto e poder

Apesar do final feliz de Lúcia nessa reportagem, as violências contra empregadas domésticas continuam nessa década. Em 2016, a até então trabalhadora doméstica, Preta Rara, compartilhou em suas redes sociais um dos diversos episódios de abuso que sofreu no trabalho.

O relato viralizou em, em menos de 24 horas, centenas de mulheres começaram a compartilhar suas vivências no trabalho doméstico. O projeto ganhou o nome de Eu, Empregada Doméstica e acumula mais de 15 mil seguidores no Instagram.

Hoje, a rapper, professora de história, poetisa e escritora Preta Rara é referência no assunto, encorajando as trabalhadoras domésticas a denunciarem as violências que sofrem nas mãos dos patrões. 

“A gente começou a falar sobre essa profissão tão antiga e tão arcaica, que sobrevive nesses moldes coloniais. O Brasil precisa entender que as trabalhadoras domésticas não são de propriedade privada dos seus patrões. É uma profissão como qualquer outra, mas a gente não tem os direitos assegurados e as pessoas acham que, por ser uma atividade realizada dentro da casa delas, pode ser feita da forma que elas bem entenderem”.

Preta Rara afirma que essa é uma relação de afeto e poder: “O poder nas mãos dos empregadores, e o afeto fica por conta da trabalhadora doméstica, que vive ouvindo aquela velha frase de que ela é tratada como se fosse da família, anulando todos os direitos trabalhistas, deixando-a com receio de cobrar seus direitos”.

Para eternizar a voz das trabalhadoras domésticas, em 2019 Preta Rara lançou o livro Eu, Empregada Doméstica – A Senzala Moderna É O Quartinho Da Empregada, pela editora Letramento, com a participação da ex-trabalhadora doméstica e atual deputada federal, Benedita da Silva. 

“As redes sociais têm prazo de validade, e eu tinha a preocupação, enquanto historiadora, de resgatar essa parte da história do Brasil através dos relatos inéditos das empregadas domésticas. Estou muito feliz com o alcance do livro, as pessoas estão interessadas e discutindo esse tema tão importante”.

Por fim, Preta Rara deixa um recado para as empregadas domésticas que sofrem situações de abuso e violência no trabalho: “Denunciem, por mais que pareça que está sozinha, você não está. Hoje existem diversas leis e organizações para dar a garantia de que os nossos direitos sejam assegurados”, finaliza. 

Reflexos da escravidão

Nathalie Rosário de Alcides é a advogada do Sindoméstica, o sindicato profissional que representa os trabalhadores domésticos da grande São Paulo. O órgão foi fundado em 2007 para lutar por melhores condições de trabalho, além de defender profissionais em situação de abuso.

Para ela, as violências contra as trabalhadoras domésticas são um reflexo da escravidão: “Vivemos uma falsa abolição, sob o pálio de que as amordaças e correntes outrora utilizadas, hoje se transformaram em humilhações e agressões que ferem a moral e, por vezes, o físico dos trabalhadores que se submetem a essas circunstâncias por dificuldades financeiras. Além disso, convém pôr em relevo que subsistimos em uma sociedade estruturalmente machista, onde o homem persiste em inferiorizar a mulher, em aspectos físicos, intelectuais e sociais”, conceitua.

O que mudou, de acordo com a análise da advogada, é que, com o tempo, as violências físicas se tornaram menos recorrentes, dando espaço para os abusos morais, sujeitando os empregados domésticos a relações abusivas por dependência econômica e financeira. 

“Grande parte dos empregadores continuam acreditando que a trabalhadora doméstica é sua propriedade. Um exemplo recente é a pandemia que vivemos, onde recebemos relatos de trabalhadoras que tiveram que ficar na casa dos patrões para evitar a exposição ao vírus, um verdadeiro absurdo”.

Movimentos como o do Sindoméstica, da Preta Rara e de diversas trabalhadoras domésticas que denunciaram os abusos, estão fazendo com que legislações específicas de proteção à classe sejam criadas ou melhoradas.

“Nos últimos anos, temos lutado pela equiparação dos direitos domésticos com relação aos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, conforme pode denotar pela PEC nº 66/2012, EC nº. 72/2013 e LC nº. 150/2015. O Sindoméstica participa das negociações coletivas junto ao Sindicato Patronal para elaboração do instrumento coletivo de trabalho – agregando, anualmente, através da Convenção Coletiva de Trabalho, benefícios não governamentais a toda a categoria. Apesar disso, existem lacunas, como a falta de leis que garantam a saúde, higiene e segurança das trabalhadoras, além da falta de fiscalização, permitindo uma informalidade muito grande de trabalhadores que acabam ficando sem registro e sem os direitos mínimos”.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada em janeiro de 2020, o número de trabalhadores domésticos no Brasil chegou a 6,3 milhões, mas o contingente de empregados com carteira assinada caiu 3%. 

Nathalie salienta que o Sindoméstica – e órgãos semelhantes, em outras regiões do país – se colocam à disposição das trabalhadoras domésticas para prestar orientação, proteção de direitos e apoio nos casos de abuso e violência. 

“O Sindoméstica dispõe de um corpo jurídico trabalhista e nos dispomos a auxiliar as trabalhadoras em situações de vulnerabilidade social e violações de direito. Além disso, apoiamos a campanha Doméstica Sem Violência, dispondo de um canal exclusivo em nosso site para trabalhadoras domésticas que tenham sofrido violência sexual”.

Além do apoio de órgãos como o Sindoméstica, é essencial que nós, enquanto cidadãos, sejamos os olhos e as vozes de quem, nem sempre, tem a possibilidade de denunciar.

Deixe uma resposta