Chocolate: o alimento anti-herói

Por: Caio Siqueira

Um dos grandes personagens das experiências sensoriais, destrinchado em pesquisas e análises.

Servido como uma bebida amarga para as elites locais há cerca de quatro mil anos, atualmente, o chocolate pode ser encontrado na maioria dos estabelecimentos comerciais a diversos preços, formatos, e sabores. Ao longo dos séculos, ele vem conquistando o seu espaço na dieta, na cultura e na memória afetiva (individual e coletiva) de diversos povos.

A matéria-prima do chocolate é o cacau, nativo das florestas tropicais da América do Sul, entre as bacias dos rios Amazonas e Orinoco. Além do continente americano, ele também é cultivado para fins comerciais em alguns países da África e da Ásia.

De acordo com os relatórios da Organização Internacional do Cacau (ICCO), em 2017 o Brasil foi o sétimo maior produtor com cerca de 200 mil toneladas, o que representa 4% do mercado global. Nas primeiras posições estão, respectivamente, Costa do Marfim (42%), Gana (19%) e Indonésia (7%).

Anualmente, a revista norte-americana Candy Industry desenvolve uma lista com as 100 maiores empresas de doces do mundo. A Cacau Show foi a representante brasileira mais bem ranqueada, ocupando a 25ª posição e totalizando mais de R$ 3,6 bilhões em vendas líquidas no ano passado. 

Ao pesquisar pelos melhores chocolates do mundo, Suíça e Bélgica costumam rivalizar pelo posto do país com o melhor produto, dividindo as opiniões de profissionais, críticos gastronômicos e consumidores.  

A chocolatier Ana Angélica, explica que a Suíça e a Bélgica são países que tradicionalmente produzem um chocolate de muita qualidade, justamente por investirem em ingredientes melhores, como uma semente melhor. Entretanto, isso torna o produto mais caro, dificultando a sua produção em larga escala.

“O que torna o chocolate ao leite deles muito bom é a quantidade de leite que eles conseguem colocar na preparação. Quando fazemos isso aqui no Brasil, ele tende a não aguentar temperaturas altas, por isso nós temos o chocolate ideal para o clima do nosso país”, observa Ana.

Passado e “presente”

Os vestígios mais antigos do consumo de cacau foram encontrados na cidade de Veracruz, no México, produzidos pela civilização Olmeca há cerca de 1750 anos antes da Era Comum. Diversas evidências apontam que esse chocolate “primitivo” era fermentado e consumido como uma bebida amarga.

Posteriormente, outros povos latino-americanos também cultivaram esse fruto. Primeiro foram os maias, que além de torrar as sementes, passaram a adicionais outras iguarias, como milho e pimenta. O cacau passou a pertencer aos astecas após eles dominarem os maias por volta de 1400.

O cacau só deixou o continente americano com a conquista genocida espanhola sobre os povos nativos. E se popularizou na nobreza europeia ao longo dos séculos seguintes.

O século XIX foi muito importante para o desenvolvimento do chocolate como conhecemos hoje, pois em 1847 foi criada a primeira barra de chocolate, e em 1876 a fusão entre o leite e o chocolate finalmente foi bem sucedida, nascendo, assim, o chocolate ao leite.

Os grandes acontecimentos do século XX, como o surgimento de novas tecnologias e a globalização, auxiliaram a difundir a produção e a cultura do consumo do chocolate pelo mundo. Sem contar a sua consolidação como presente em datas comemorativas e em eventos sociais.

“O chocolate é um presente que você pode dar para uma pessoa que você conhece muito bem ou não, pois ele é um produto sensorial, é cheiroso e gostoso”, diz Ana, acrescentando que, no passado, o consumo e o ato de presentear alguém com chocolate era diferente, pois não existiam lojas específicas, grifes nacionais e internacionais, e embalagens bem trabalhadas que possibilitassem outros usos.

Efeitos

Em “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban”, ocorre o primeiro contato dos leitores com os dementadores, que são criaturas que se alimentam da felicidade humana. Quando alguém é atacado por um desses seres, o tratamento é comer chocolate. A escritora britânica, J. K. Rowling, disse que essa criaturas são inspiradas na sua experiência com a depressão.

Segundo as estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão atinge mais de 320 milhões de pessoas em todo o mundo. Em âmbito nacional chega a quase 6% da população, cerca de 11,5 milhões de brasileiros.

“Penso que o chocolate pode ser um auxílio, mas não podemos depender só dele para tratar transtornos mentais, mesmo sabendo que ele auxilia na produção do neurotransmissor relacionado ao humor, ao sono e ao apetite”, esclarece a psicóloga Letícia Albani, complementando que a University College London desenvolveu um estudo com o chocolate amargo, em que os dados apontaram que consumir duas vezes por dia, no máximo 30 gramas, afeta de maneira positiva no humor e auxilia a aliviar os sintomas depressivos, porém, sem dispensar o tratamento com profissionais especializados. 

Ainda sobre a relação do chocolate com o nosso bem-estar, a nutricionista Isabela Mota, comenta que nada acontece de forma isolada. “O consumo exagerado de chocolate pode fazer mal, gerar ou agravar doenças, mas se não existir restrição, o consumo com consciência e moderação dificilmente fará mal à saúde”.

Outro ponto abordado pela nutricionista foi acerca das dietas que removem os doces por completo. “Os doces não são feitos para nutrir nosso corpo, mas, a longo prazo, essa conduta não é sustentável, porque essa restrição priva o sujeito de momentos que vão muito além de nutrir o corpo”, diz Isabela, completando que quando esse indivíduo tem contato com os doces, exagera no consumo, pois toda restrição gera compulsão.

Mitos

Existe uma crença popular de que o consumo de chocolate pode causar acne, entretanto, essas alegações se provam infundadas. Uma vez que são realizados estudos sobre essa temática desde 1960 e, até hoje, não foram encontradas evidências dessa causalidade.

Alguns dados apontam que parte dos componentes do chocolate, quando consumidos de maneira excessiva, podem piorar a acne de pessoas que possuem uma predisposição genética.

Outro mito, altamente difundido a respeito do chocolate, é sobre o suposto vício no seu consumo, dos autodenominados chocólatras. “A neurociência ainda não chegou em um consenso se existe ou não vício em comida, mas, na prática, existem pessoas que relatam sintomas similares”, explica Isabela.

Tais informações vão de encontro com o que é discutido no episódio “#245 – Por que sempre tem espaço pro doce?”, do podcast Naruhodo. Em que o leigo curioso, Ken Fujioka, e o cientista PhD Altay de Souza, explicam que o vício está ligado ao comportamento de comer, e não ao alimento em si.

O termo anti-herói é atribuído a personagens que não são intrinsecamente maus, mas que, ocasionalmente, praticam atos moralmente questionáveis. Assim como os anti-heróis, o chocolate polariza as opiniões a seu respeito, mas não podemos negar a sua importância e excluí-lo das nossas vidas. É preciso encontrar o equilíbrio que a sua excêntrica natureza exige.

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