Liberdade onde moras?

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Reflexões sobre os corpos sociais e o processo de silenciamento de algumas narrativas.

Escrito por: Jéssica Akosua

O corpo é um território. Por isso, há de se considerar que em nós e a partir de nós, muitas coisas acontecem. Vivemos de forma concreta as mazelas, as disputas, alegrias e conquistas. É no corpo onde o teatro existencial se materializa sem possibilidades de ensaios ou ainda, pausas entre os atos.

Estamos constantemente insatisfeitos com nossos corpos. Exigindo-nos um abdômen “trincado”, um nariz mais afinado ou ainda, o grande sonho do “fim da celulite” ou marcas de expressão. Exigimos perfeição da vida, na mesma proporção que a exigimos de nossos corpos. Sem falhas. Sem erros. Sem perdão. Assim, se constitui o infinito ciclo da culpa: a imperfeição produz tristeza, a tristeza por sua vez, alia-se ao sentimento de insuficiência, e este, impiedosamente entrega o roteiro à culpa, a fim de que ela dirija os próximos atos como quer.

Para manter esse padrão de comportamento super destrutivo, ao longo da história, foi preciso criar mecanismos seguros que garantem a manutenção dessa padronização, afinal, sem um modelo correto a ser seguido, todos poderiam ficar perdidos e quem sabe, “autônomos demais”. O padrão garante que haja unanimidade sobre conceitos como beleza, aceitação, inclusão, sucesso e por fim, humanidade. O modelo “mais humano” de ser, expressa a perfeição que todos devem e/ou deveriam alcançar.

Traga a sua mente, com honestidade, uma pessoa que você conheça e é entendida enquanto referência de beleza, perfeição ou humanidade. Pensou? Responda em voz alta, para que você mesmo escute: Que cor essa pessoa tem? Quanto ela deve pesar? Quanto deve ter de altura? É rico ou pobre? É homem ou mulher?

A sociedade se estrutura em meios que reforçam a ideia de que, o grande grupo denominado “humano” deve ser homogêneo e igual entre si. Entretanto, a homogeneidade nos coloca diante de um enorme impasse: Somos homogêneos a partir de qual perspectiva? Quem define essas características? E quem não as possui, o que deve fazer? Como alcançar de forma efetiva um único modo de se expressar enquanto humano nesse mundo?

O “modelo padrão” de humanidade é estabelecido historicamente para justificar a exploração por meio das diferenças (podem ser sexuais, de gênero, raça, classe, orientação sexual entre outros), ou seja, o sujeito que não possui afinidade com o “modelo” mais humano de se está em uma categoria social inferior, logo, pode e/ou deve ser submetido a formas de existência que garantam a construção e permanência dos interesses dos grupos considerados “modelos” ou ainda, dominantes, já que esse processo de exploração viabiliza a dominação.

A dominação se efetiva nos e através dos corpos, que são produtos de uma construção social pautada em interesses, principalmente em se tratando dos corpos femininos e negros, uma vez que a sociedade se construiu dessa forma ao longo de sua história. É só pensar e/ou pesquisar: Quais pessoas estão vivendo em condições insalubres? Qual é o grupo que compõe majoritariamente o sistema carcerário brasileiro? Quem compõe, em sua maioria, os índices de subemprego no Brasil? Em um país onde as desigualdades sociais são tão expressivas, é impossível afirmar que apenas a meritocracia daria conta de resolver a tais questões.

Propor um outro projeto de sociedade, realmente inclusivo, justo e equânime, requer urgentemente que se reconte a história das sociedades e dos sujeitos sociais, no interior de lutas e conquistas, assumindo cada verdade que nelas possam conter. E em pouco tempo, teremos condições mais concretas para construir as trilhas da liberdade e sem medo dela. No fundo, é o medo de encarar nossas grades e espelhos que nos impedem de radicalmente movimentar e abalar as estruturas de dominação e opressão. É o medo de olhar com honestidade para quem somos e o que nos aprisiona que apavora. Uma história única serve apenas para acariciar o ego dominante. E acredite, não pode haver sono justo para os injustos, enquanto há outras vozes resistentes e potentes projetando suas próprias narrativas.

Jéssica Akosua, ativista, pesquisadora e assistente social, Preta-Livre e aprendiz do mundo.

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