Céu e Inferno – Parte 3

Nosso conhecimento é único, adquirido durante toda nossa existência, disponível para ser usado da maneira que quisermos.

É neste ponto onde deixo de lado as suavidades e rebuscamentos em relação ao negacionismo, ao anticientificismo, às revisões históricas e aos cancelamentos. Nenhuma dessas pessoas que praticam tais atos é ingênua ou desprovida de conhecimento. Não há a ignorância no sentido de “não saber”. Todos têm plena consciência do que estão distribuindo para a população, seja por meios convencionais ou mais invasivos, “viralizados”, tanto que, estrategicamente, exploram técnicas de produção de texto, discurso, edição de imagens e muitos outros recursos disponíveis para construir aquela verdade de interesse e entrega-la, convincente e convenientemente, aos receptores mais suscetíveis.

Transformam logomarcas em figuras obscenas, atos de verdadeira reivindicação em ações inconsequentes, subestimam o conhecimento pelo fato de “não ser visível, portanto não pode ser provado”, distorcem a lógica do raciocínio com palavreado chulo e vulgar, manipulam informações e documentos para produzir provas de sua certeza absurda, ofendem, ameaçam e agridem simplesmente por uma percepção de impunidade!

Acredito no desconhecimento, em uma certa dose de ignorância (novamente, no sentido de “não saber”) em alguns casos, quando uma pessoa apenas reproduz, ingenuamente, um conteúdo deformado e tendencioso, sem ponderar sobre os efeitos dessa ação. As informações sem controle de qualidade transitam em uma velocidade inimaginável. Um problema sério nesse percurso é a fragilidade da nossa suspensão de descrença. A constatação de uma informação veiculada na televisão ou na internet basta para tornar essa “narrativa” (palavra da moda que vale para qualquer coisa!) real o bastante para conduzirmos nossas vidas a partir dela. E, se for em alguma rede social, o efeito duplica de acordo com o número de sorrisos amarelos e dedinhos erguidos para aquela mensagem. Já é o bastante para repassar aquela postagem para toda a sua lista de “amigos”. É bem verdade que a maioria avassaladora desses casos não permanece mais do que alguns poucos minutos visíveis, porém, aqueles que perduram podem causar estragos irreparáveis.

Parece incompreensível que a mesma pessoa que revisa incansavelmente as contas do mês e boletos bancários não apresente o mesmo empenho para medicamentos milagrosos com bulas adulteradas. Essa mesma pessoa é capaz de dispensar horas à procura de opiniões sobre um hotel ou restaurante que pretende visitar, mas é incapaz de usar o mesmo raciocínio e esforço para perfis políticos e estatísticas sociais como ensino, segurança e saúde! Deve haver algum tipo de firewall ou bloqueio que transforme o indivíduo em uma criatura completamente infantil diante de uma ferramenta de busca quando o assunto exige confrontar seus próprios valores e pensamentos. É preferível, para alguns, o Revisionismo Histórico a uma reavaliação pessoal de seus princípios.

A irresponsabilidade dessas posturas não se abate apenas sobre a pessoa que a adota e aqueles poucos suscetíveis aos seus efeitos, infelizmente. O efeito de continuidade e difusão, como uma imensa onda de incoerências se espalha, produzindo caos em níveis de impensáveis.

Presenciamos atos que ignoram a saúde coletiva, praticamente rotulando com um preço as vidas inevitavelmente perdidas, como um esforço de retomada da economia para tornar a sociedade melhor e mais estável. O mesmo vale para o meio ambiente, para a educação e tantos outros cenários que constituem nossa sociedade. Mentir, ou melhor, “reinterpretar a narrativa” (mais uma vez, ela, a moda!), torna-se cada vez mais aceitável nas práticas públicas, sem que o “narrador” demonstre qualquer constrangimento. E, nessas “narrativas”, a motivação é sempre a mesma, o protagonista declarado é o povo! Tudo o que se faz, tudo que passamos, tudo o que sofremos e deixamos de lado ao assumir uma responsabilidade imposta pelo “narrador” é em nome do povo, de um bem maior, do coletivo, da sociedade.

Infelizmente, tenho visto muito mais “narradores” beneficiados do que “protagonistas”.

Está na hora de trocar esse roteirista!

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