Todos os lados de Brumadinho

Gabriela Brack – José Piutti – Marcos Pitta e Kimberly Souza

25 de janeiro de 2019. O rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão da mineradora Vale, em Brumadinho fez centenas de vítimas. Dois meses depois da tragédia, o número de mortos, segundo a Defesa Civil de Minas Gerais é de 203. Outras 105 pessoas ainda estão desaparecidas.

A quarta edição da ComTempo traz reportagem especial sobre essa tragédia e explora o que aconteceu na barragem pela visão de um geólogo. Explora ainda, o universo de um grupo independente que uniu-se em prol da população daquela cidade devastada por um crime ambiental que entrou para a história. Nós fomos atrás, também, das autoridades de Brumadinho e um vereador da cidade falou sobre as medidas que estão sendo tomadas. Um psicólogo social comentou como as marcas dessa tragédia podem ecoar na vida de quem viveu e para finalizar, a visão de uma jornalista que esteve em Brumadinho, acompanhou buscas e conversou com familiares das vítimas. Afinal, qual o papel da imprensa em situações como esta? Você confere essa reportagem especial agora.

 Brumadinho pelo olhar da Geologia

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O geólogo Carlos Eduardo Cardoso explica detalhadamente o que aconteceu para o desabamento da barragem, em janeiro de 2019.

Perdas principalmente humanas, mas também ambientais e socioeconômicas envolvem o desastre ocorrido em Brumadinho-MG, na mina do Córrego do Feijão, e como um dos “braços” desta análise, a ComTempo também procurou entender o que ocorreu com a barragem a partir das tidas “perguntas básicas” do jornalismo, por exemplo, como e por quê?

Quem responde é o geólogo Carlos Eduardo Cardoso, formado em Geologia há 32 anos pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), ele é especializado em Águas Subterrâneas com atuação em Geologia Ambiental, mas mantendo estudos constantes em todas as áreas da Geologia.

O geólogo recebeu a reportagem em sua casa, onde mostrou que ao aguardar a chegada da ComTempo, tinha em seu computador um dos artigos sobre alteamento a montante, de acordo com Cardoso, uma das formas mais baratas e mais usadas para “guardar” rejeito de mineração.

“A barreira que vai conter o rejeito é feita com o próprio rejeito. Conforme vai acumulando o material, molda-se o terreno a montante, indo para trás, sempre tendo em vista que montante significa o contrário do fluxo de material dado pela própria geografia do terreno. O material vai secando, pelo menos em tese, e vai se moldando ao terreno de maneira a sempre subir a barreira, para aumentar a capacidade de contenção”, detalha o especialista sobre o modelo utilizado em Brumadinho.

O geólogo afirma existirem diversas outras maneiras de contenção de rejeitos. “A Geotecnia, uma parte da Geologia, aponta diversas outras maneiras muito mais seguras. Porém, essa é a mais barata e mais utilizada”, diz, enfatizando que o alteamento a montante foi contestado em estudos de geólogos brasileiros e geotécnicos desde 2001.

“Tenho trabalhos de geólogos da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) que provam isso. No entanto, isso fica restrito ao próprio ambiente acadêmico, infelizmente. Justamente por comprovar que o sistema não é seguro. Toda a Geologia sabe que há diversas outras técnicas em que mineradoras têm que gastar um pouco mais, mas muito mais seguras, tanto para a própria mineradora, como para o ambiente e as pessoas que estão a jusante dessa barragem, em frente dela”, analisa.

Fora do Brasil, o geólogo cita o trabalho de um escocês, anterior ainda a 2001. “Ele estabelece um método melhor do que as normas brasileiras de contenção de rejeito. Nossa norma é feita pela NBR (Norma Brasileira aprovada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas), que atua não só nessa área como em diversas outras áreas do conhecimento e na aplicação desse conhecimento. Essas normas do geólogo baseiam o estudo da Ufop, e através disso ele prova que esse tipo de barragem praticamente não tem segurança alguma”, enfatiza.

“Existe um fenômeno que estudamos na Geologia, desde o início do curso, chamado ‘solifluxão’. Um material extremamente fino como o de rejeito – pois a rocha é triturada e fica com grãos extremamente pequenos – quando misturado com a água e tem impacto de uma grande máquina passando perto, causa determinada vibração no terreno, que pode ser mínima… A própria vibração faz com que a água, mesmo acima da parte já endurecida, penetre dentro dessas pequenas partículas e o solo se torna fluido novamente. Se prestarmos atenção nas imagens de câmeras de monitoramento (em Brumadinho) cedidas pela própria Vale, notamos que temos caminhões e máquinas pesadas exatamente em cima da barragem. Essa imagem correu o mundo, sobre como algo que é sólido de repente se torna fluido. Isso é algo tão claro em minha cabeça… É lógico que houve solifluxão!”.

Exemplificando o termo técnico com algo mais próximo do senso comum, Cardoso afirma que a solifluxão pode ser o que chamamos de “areia movediça”: uma pessoa causando pequenas vibrações, faz com que aquilo que parece estar sólido, se fluidifique completamente, e a pessoa afunda.

“Para quem exerce a Geologia, foi nítido que isso aconteceu. Tantas as barragens que usam esse método de alteamento a montante e está se tornando algo extremamente perigoso. Muitas pessoas moram a jusante dessas barragens, e não sabem o perigo que correm. Houve um outro sinal, também em Minas, avisando a população que ela teria que evacuar o local (referindo-se à sirene que alertou os moradores de Macacos, distrito de Nova Lima, em 17 de fevereiro, sobre risco de rompimento de barragem). No Plano de Fuga, que toda barragem deve ter, as pessoas devem ser informadas, principalmente aquelas que estão na chamada zona de auto salvamento, na decida direta de fluxo. As pessoas devem estar registradas pela mineradora, e devem ser informadas, através de palestras, avisos… Deve ser constante na vida delas que estão na ‘linha de tiro’ da barragem. Ao tocar a sirene, ainda tem o aviso por auto-falante, sobre as pessoas deverem seguir para local previamente determinado. E as pessoas devem saber, através dessas comunicações constantes, que devem sair o mais rápido possível, carregando o menor número possível de bens, e ir para esses locais pré-determinados. O engraçado é que nesse último aviso, numa entrevista de uma moradora, ela simplesmente diz ‘eles avisam que devemos ir para algum lugar, mas ninguém sabe qual é esse lugar’. A moradora não foi avisada. A mineradora estabelece o plano de retirada do pessoal, porém não está preocupada se a pessoa participou realmente da palestra. É como se colocasse ‘eu avisei, ela não foi porque não quis’. Mas não é assim. As pessoas que não conseguiram ir, pelos mais diversos motivos, devem ser avisadas em casa. Uma equipe deve ser deslocada. Isso faz parte dos planos de barragem. A mulher simplesmente disse ‘não sabia para onde ir, fiquei como uma barata tonta na rua’. Ou seja, estabelece-se o plano, ele funciona bem na teoria, mas e na prática?”, critica o geólogo.

O profissional lembra que no caso de Brumadinho, e também em Mariana, em 2015, as sirenes alertando risco de rompimento das barragens sequer tocaram. “Não houve aviso algum, as pessoas foram pegas completamente de surpresa”, afirma Cardoso.

E mais um indício aponta a necessidade mínima de Plano de Fuga, incluindo as sirenes de alerta: segundo o geólogo, um rompimento como este poderia ter ocorrido a qualquer momento, desde que em grandes quantidades de material. “Uma massa enorme de rejeito é colocada num lugar onde não existia. É como colocar grandes massas de água onde não existia. Isso causa tremores de terra. Tanto que todas as barragens hidrelétricas são obrigadas a manterem sismógrafos”, compara, e continua: “Estamos mexendo com a natureza, e ela vai agir de alguma maneira. O que a Geotecnia deve pensar é em minimizar os riscos, com a drenagem da água”.

A partir daí, nosso entrevistado toca em outro ponto: a assessoria em Geotecnia, contratada para atestar se existe ou não risco de rompimento das barragens.  “Mesmo sendo uma empresa terceirizada, existe o problema de que quem está pagando essa empresa é a Vale. A assessoria usa das mais modernas técnicas para atestar se existe risco ou não, o relatório é feito para a direção da empresa, e eles simplesmente podem dizer ‘se você assinar esse relatório, não vou te pagar’. A partir do momento que um geólogo ou geotécnico coloca num relatório que existe risco, o trabalho dele, a responsabilidade deixa de existir. A prisão dos geólogos da empresa que prestava serviço para a Vale… (em tom de lamento). Quando vemos um colega indo para a cadeia por conta de algo que ele não tem responsabilidade, me arrepia na hora. São técnicos altamente capazes, gente que sabe o que está fazendo. Se o que é apresentado à empresa não é adotado, apesar de o técnico ter notação de responsabilidade, o profissional não é responsável pelo que a empresa decidiu fazer. Realmente me senti muito mal quando vi isso. Se quem contratou o serviço de assessoria ambiental não faz o que é determinado pelo relatório, como o prestador de serviço pode ser culpado?”.

Principais erros e a posição da Vale

Para Carlos Eduardo, entre os principais do desastre de Brumadinho está o monitoramento inadequado, que acontece de maneira geral em modelos de barragem como essa. Além dos trabalhos desenvolvidos mesmo em uma barragem inativa, como era o caso da de Brumadinho.

“Outra coisa que me deixou perplexo: alojamento, refeitório, escritório da empresa, todos na ‘linha de tiro’ da barragem. Uma ‘avalanche’ como essa não dá tempo de reação. São tragédias anunciadas. Por que não colocar isso num outro lugar ou num nível acima? Não consigo entender. Vai contra tudo o que estudamos na universidade. Por culpa do poder econômico, temos perdas de vidas, de profissionais. Temos uma sequência, um conjunto de fatores para determinar uma tragédia como essa, um ato criminoso. É o conjunto da obra que leva a casos como este, de países subdesenvolvidos. Num país com legislação mais atuante, esse tipo de coisa não acontece”, analisa o geólogo.

Questionado sobre qual deveria ser a posição da mineradora Vale, “num mundo ideal”, diante do acontecimento, Cardoso pontua: “Num mundo ideal, isso nem deveria ter acontecido”.

O geólogo volta ao caso mais parecido ao de Brumadinho, também emblemático no país e no mundo: o rompimento da barragem em Mariana, em 2015. “Após 3 anos, nenhuma indenização foi paga, a Justiça brasileira é extremamente lenta e o ditado popular de que ‘a Justiça tarda mas não falha’ é uma inverdade. A Justiça que tarda é falha, e mais, é uma falha causada! Imagine uma empresa como a Vale, a quantidade de advogados que tem, e gente paga a peso de ouro. Eles conseguem pagar, por ser poderio econômico, os melhores advogados. As medidas aplicadas tanto em Mariana, e aplicadas agora em Brumadinho, nenhuma foi paga, por haver recursos atrás de recursos. A Justiça brasileira é extremamente conivente com quem pratica o ato criminoso. Isso é conivência. Leva-se no embrulho. Nada é pago ou feito, as pessoas atingidas não recebem, as casas não são reconstruídas. Quem é criminoso tem que pagar”.

E afinal, a culpa é de quem?

Além da responsabilidade da própria mineradora Vale, para Carlos Eduardo, a culpa tem que ser “distribuída” para a classe política brasileira.

“Existem projetos que tornam as portarias sobre segurança de barragem em lei, que estão no Congresso há 4, 5 anos, e simplesmente são engavetados, isso porque as mineradoras bancam candidaturas de muita gente no Senado e na Câmara Federal. Há políticos preocupados com isso, mas são desprezados por aquela maioria que recebe altas somas dessas mineradoras, o famoso lobby, que muita gente acredita precisar existir, desde que organizado. As mineradoras bancam essas candidaturas com rios de dinheiro, e a população que se dane. Me lembro de uma charge que vi nas redes sociais que diz ‘existe a bancada evangélica, da bala, das mineradoras e a bancada do povo não existe’. Os poucos que defendem a população não têm voz ativa. Quando o desastre acontece, todos vão à TV, às redes sociais falar contra a mineradora. Ela tem grande parcela de culpa sim, mas a classe política também tem que ser culpada, precisa ser culpada, porque se eles tivessem agido como deveriam, aprovando leis que realmente protegem a população, não teria acontecido. O grande acionista da Vale continua sendo o Governo Brasileiro. Ele não tem acento ativo na diretoria, mas é um dos maiores acionistas. Se a Vale é culpada, o Governo é culpado, porque faz parte da Vale. Tem muita gente envolvida, que ninguém está falando nada, e também é culpada”.

“Não há como mensurar”

Outro importante ponto a ser compreendido, após as motivações do desastre é saber o que vem a seguir: quais os impactos ambientais causados?

O geólogo, que também é professor, afirma que costuma dizer em suas aulas sobre a natureza ser resiliente: “Se o que a afetou for retirado, ela se recupera. O exemplo mais claro disso é o chamado ‘buraco na camada de ozônio’. Na verdade o que existe é uma diminuição da concentração de ozônio na atmosfera, pela liberação dos gases CFC, de clorofluorcarbono. A partir do momento que o CFC foi retirado do mercado, houve regeneração da camada. A natureza reage quando cessa aquilo que provocou o problema. Num caso como este, a retirada do que causou o problema é extremamente complicada, porque a quantidade é exageradamente grande. Felizmente, os rejeitos de Brumadinho não são tão perigosos quanto os de Mariana, onde havia metais pesados em maior quantidade. Mesmo assim, o impacto é absurdo, muito mais pela quantidade de material do que pela composição. A natureza vai reagir, mas vai demorar muito. Se o ser humano não ajudar, vai demorar muito”.

Para corpos d’água, segundo o geólogo, a recuperação da natureza tende a ser “mais rápida”, considerando dezenas de anos. “Já em relação a solo, por exemplo, isso inviabiliza a área produtiva como um todo. Até que o material seja retirado ou removido pela própria natureza. O impacto é imenso, e durante muitos anos. Não há nem como mensurar”, analisa.

Na visão do geólogo, o Brasil ainda tem muito que aprender, apontando que a visão de lucro ainda fala mais alto. “O lucro de uma empresa mineradora como a Vale, uma das maiores do mundo, ainda fala mais alto”, reforça. “E essa cultura tem que mudar. Que eles tenham lucro é normal, faz parte do capitalismo e vivemos nele, mesmo que muitos não o considerem o regime ideal. Só que as pessoas têm que saber que o lucro não pode ser a completa finalidade. A direção de uma mineradora como a Vale deve saber que seu lucro pode ser grande, mesmo utilizando técnicas que a ciência desenvolve durante sua dinâmica. A ciência não é algo estático. Do que eu estudei há 32 anos, muita coisa mudou, principalmente em relação à Geotecnia. Novas técnicas são desenvolvidas, novos estudos estão aí para fazer da Geologia um estudo um pouco mais seguro. A Geologia é uma atividade de impacto, tanto social quanto ambiental. O que o desenvolvimento das ciências da terra faz é tentar minimizar os riscos inerentes à atividade minerária. O problema é que as empresas e empresários atuam como se estivessem no século passado. As técnicas modernas demoram demais para serem implantadas. Os estudos que saem das universidades são praticamente ignorados, porque normalmente implicarão em gasto maior. Dizem: ‘está dando certo por enquanto’, como se aquilo fosse eterno. Precisa-se valorizar os novos conhecimentos científicos, tirar aquilo que foi produzido dentro dos institutos de pesquisa, e colocar isso a favor da sociedade, se não, continuarão acontecendo desastres como esse. E não adianta apenas falar. Quem tem que atuar aí é a própria governança. Temos hoje a Agência Nacional de Mineração, que substituiu o DNPM (Depto. Nacional de Produção Mineral). Temos novas regras, inclusive sobre barragens, porém elas foram adotadas através de portarias, e não pode ser assim. Isso deve ser por lei. A portaria é algo restrito”.

E exatamente no dia anterior à entrevista com o geólogo, em 18 de fevereiro, foi publicada no Diário Oficial da União resolução da Agência Nacional de Mineração (ANM), determinando a eliminação de todas as estruturas semelhantes às da Vale e da Samarco (pelo método a montante), inativas no país, até 2021. No caso das barragens ainda ativas, o prazo é para 2023.

O rompimento da barragem em Mariana ocorreu em 2015, e num intervalo de menos de 4 anos, tivemos a de Brumadinho. A ComTempo questionou Carlos Eduardo sobre o prazo mínimo, por exemplo, ser ou não suficiente para que outros casos como este ocorressem.

“Áreas inativas envolve gama de trabalhos enorme. Não é possível retirar milhões e milhões de toneladas de material de um determinado lugar do dia para a noite. Foram anos e anos de deposição do material. E pior, a partir do momento que o local se torna inativo desse tipo de barragem, a primeira coisa a se fazer é monitoramento diário de todas elas. As pessoas que estão na área de auto salvação devem ser retiradas. Se tem posse da terra, que a empresa assuma novo terreno e construa nova casa fora da linha de auto salvação. Toda barragem, para sua outorga, precisa de seu plano, mas eles não funcionaram até agora, então que se modifique isso. Que a perda de vidas humanas seja evitada, isso deve ser primordial”, diz o geólogo, que critica: “Diante das resoluções, deixarão de funcionar, porém o risco persiste. Todas as barragens que usam esse método têm sim risco inerente, que vai persistir em determinado tempo. Para retirar o material, é preciso estudo de impacto, que não se faz da noite para o dia. O Governo Bolsonaro diz que estudos de impacto ambiental se tornarão menos rigorosos. Isso tende a piorar a situação. É preciso estudo sim, e ele é complexo”.

O geólogo ressalta que há quem não acredite nas mudanças ambientais causadas pelo aquecimento terrestre, mas os estudos dizem o contrário: todos os fenômenos ligados ao meio ambiente começarão a se tornar mais frequentes, incluindo secas mais longas, períodos de chuva intensa mais frequentes, furacões mais frequentes.

“Se nesse espaço de tempo determinado pela Agência, uma forte chuva acontecer, não terá adiantado nada. Criou-se um problema que é de dificílima resolução. Tem que ser resolvido o mais rápido possível, mas o risco é enorme. Que tem a fé, que reze. As coisas não estão fáceis, e só tende a piorar”, lamenta o geólogo, que completa: “Foi-se muito tempo de desprezo pela ciência e prevalência do poder econômico sobre a ciência”.

Dialogando com a Psicologia: A lama que mata e atormenta

A ComTempo procurou o psicólogo social Ramiz Candeoro Pedroso de Moraes, para falar sobre as marcas que a tragédia em Brumadinho irá deixar nos moradores, nas vítimas, em todos nós.

ComTempo: O que presenciar uma tragédia causa a uma pessoa e a uma comunidade?

Ramiz: Uma pessoa que presencia uma tragédia como a da Vale em Brumadinho, guarda este momento para o resto da vida. É como se deixasse marcas, simbolicamente como a própria lama deixou na cidade, mesmo assim, cada pessoa vai reagir a isto de uma forma. Algumas poderão não querer mais voltar à cidade e se manter o mais longe possível, outras vão lutar pela comunidade para que haja justiça e outras ainda, vão adoecer psiquicamente com dificuldades sérias para encontrar sentido na vida. Sobre a comunidade, é importante que lidemos não como o “desastre de Brumadinho”, mas o crime, ou a tragédia “da Vale”, porque, assim como Mariana, se sempre nos referirmos à cidade, ajudaremos a perpetuar esta marca de lama e mortes cruéis associadas à própria cidade e, esta, terá muito mais dificuldade de se reconstruir, simbolicamente falando.

ComTempo: E como, geralmente, as pessoas lidam com situações emergenciais?

Ramiz: Em situações emergenciais, lidamos com o que há de mais primitivo dentro de nós – luta ou fuga por sobrevivência, o que faz nós termos uma força que jamais teríamos em situações rotineiras. Pessoas podem agir também com o desespero, que é algo primitivo em nós, pois podemos nos ver naquele desamparo da infância, quando a mãe não estava ali para nos alimentar. Além disto, muitas vezes a humanidade acaba falando mais alto, como no caso de uma mãe que abre mão da sua vida para salvar o seu bebê.

ComTempo: Como elas vão se sentir, não só com o trauma, mas também por terem perdido tudo, entes queridos e bens?

Ramiz: Cabe aqui iniciar esta resposta resgatando o conceito de sofrimento, que segundo a filósofa húngara, Agnes Heller, é a dor causada pelas injustiças sociais e é profunda, objetiva e subjetiva na vida de quem sofre. A perda está sempre associada ao luto. Neste caso da Vale, as pessoas vivenciaram múltiplas perdas, o que torna ainda mais cruel o processo de luto. Quando assistimos na TV o que aconteceu na cidade de Brumadinho, já sentimos uma angústia e, talvez, uma impotência sobre não poder agir, imaginem as pessoas que perderam seus familiares, vizinhos e amigos, além de casas, escolas, padarias, igrejas e tudo o que constituía suas vidas? É um sofrimento que sufoca, que paralisa, que corrói. É o que formou sua identidade escorrendo e neutralizando em lama.

ComTempo: E a comoção nacional. Como ela se dá? Isso pode ser prejudicial ou não?

Ramiz: Precisamos olhar para esta comoção nacional a partir de uma perspectiva crítica. Estes momentos fazem vir à tona muito daquilo estávamos guardando inconscientemente no fundo do baú das nossas vidas.  Às vezes nos damos conta do nosso egoísmo em priorizar apenas nosso sucesso pessoal e as questões relativas ao dinheiro e ao status nas redes sociais, deixando de lado o que nos faria mais sentido, como cuidar da nossa família e ajudar as pessoas que necessitam, o que nos aproximaria da nossa humanidade.  Mas tudo bem, se houver este insight, é porque tomamos consciência e podemos mudar. Tem pessoas que se comovem e fazem de tudo para ajudar, oferecendo serviços, organizando campanhas para resgatar suprimentos etc, independente do motivo, estão vivenciando a empatia, a humanidade e isto é libertador, sendo uma opção ética. Outras podem simplesmente se distanciar ao máximo para não entrar em contato com a própria lama, pois não dariam conta. Mesmo assim, o que aconteceu em Brumadinho, machucou a todos nós, brasileiros, de alguma forma. Este vazio que pode aparecer, é importante que seja preenchido com reflexões, atitudes e percepção de justiça sendo feita, porque isso acalma.

ComTempo: O que deve ser feito quando pessoas são expostas a traumas desse tipo?

Ramiz: É de comum acordo que estas pessoas precisam ter suas necessidades básicas supridas imediatamente, como fome, sede, abrigo, comunicação, conforto físico e emocional, porque como afirmam Weintraub e colaboradores (2015), “a emergência exige rapidez de atuação e de resposta”. No que diz respeito aos aspectos emocionais, é imprescindível que seja oferecido suporte psicológico, como psicoterapias individuais e grupais, que ajudaram na ressignificação dos lutos, no fortalecimento psicossocial e também dos novos hábitos de vida e projetos futuros. Estudos nos mostram que passar por algo tão impactante, sem o devido cuidado aos aspectos emocionais, pode deixar marcas quase que irreparáveis. Entendemos também que cada um tem seu tempo, seu processo de resiliência e por isto, para cada pessoa ou grupo, o tempo de psicoterapia varia.

ComTempo: Como as autoridades devem agir em favor da saúde mental da população?

Ramiz: É dever do Estado garantir que a Empresa Vale disponibilize psicólogos para este atendimento durante e por algum tempo depois da tragédia. Mesmo assim, não se pode ficar aguardando uma decisão judicial, pois é urgente o acompanhamento psicológico. Assim, os CAPS – Centros de Atenção Psicossocial têm psicólogas e psicólogos preparados para atender as pessoas nestas situações. Estes Centros são referências no cuidado à Saúde Mental pública da população, portanto é gratuito porque integra o Sistema Único de Saúde – SUS. Atualmente, temos psicólogos que trabalham e ajudam a organizar todas as etapas que a Defesa Civil define em situações como esta: prevenção, preparação, resposta e reconstrução. Antigamente a Psicologia estava restrita à resposta, ou seja, no momento que acontece o desastre, mas com a visão ampliada que ultrapassa os limites do consultório, podemos ajudar em todos os momentos.

ComTempo: É possível reestabelecer esses indivíduos? E a comunidade?

Ramiz: Sem dúvida é possível que as pessoas possam ter novamente qualidade de vida, mas isto exige um esforço comum entre poder público, empresa e sociedade. A justiça se faz necessária, para que jamais culpabilizemos as pessoas que trabalhavam e/ou moravam naquela comunidade de Brumadinho. O processo de reconstrução desta cidade, por exemplo, precisa contar com as pessoas que moravam ali, porque isto ajudará na reconstrução das próprias identidades pessoais. Se sentir fazendo parte disto é imprescindível. O apoio às famílias, do ponto de vista de serviços e também financeiro, deve acontecer logo, porque viver com o vazio de não poder velar um corpo (para muitos) e a insegurança de não ter seu lar novamente, pode ser mais cruel do que a própria tragédia. A mancha da lama está em todos nós. É um importante momento para refletirmos sobre nossa própria existência e o compromisso ético que exercemos com a sociedade. Fechar os olhos não pode ser mais uma opção. 

Amigos de Brumadinho: “O maior objetivo é a solidariedade”

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Grupo ‘Amigos de Brumadinho’ surgiu para ajudar ás vítimas do desabamento sem burocracias e com mais agilidade. (Foto: Divulgação: Guilherme Moraes).

A ComTempo entrou em contato ainda, com Guilherme Moraes, morador de Brumadinho que junto com várias outras pessoas e amigos, criaram um ponto de apoio, no centro da cidade, para ajudar às famílias e vítimas que estavam em situações precárias após o rompimento da barragem.

Durante a entrevista, Moraes faz questão de afirmar que o grupo de apoio não tem um líder: “Somos amigos, nos unimos para ajudar Brumadinho como um todo. Após este crime que aconteceu na cidade, nos reforçamos para levar solidariedade e doações às pessoas, às vítimas. Estamos promovendo ações sociais na cidade, com intuito de levar mais alegria para essas pessoas”.

Guilherme é administrador e estudante de Direito e conta a reportagem que o grupo de apoio foi criado, juntamente com os amigos, dois dias após a tragédia: “Isso aconteceu porque muitos dos voluntários estavam ajudando à cidade num grupo de apoio montado pela Prefeitura de Brumadinho, que é o ponto de apoio oficial. No entanto, todos começaram a sentir muita burocratização, e naquele momento, às famílias que precisavam de ajuda, estavam necessitando de agilidade e praticidade nas doações. Então, como que as pessoas que foram diretamente atingidas, passando por diversos problemas, com familiares desaparecidos, com muitos já decretados mortos, com problemas de locomoção, sem transporte, como elas iriam sair desses lugares para ir até o ponto de apoio, fazer um cadastro rigoroso se a situação era precária naquele momento?”

Moraes continua a entrevista dizendo que concorda que deve haver uma organização por parte da prefeitura, para que nada saia do controle e dê errado, “porém não existia, naquele momento, a possibilidade das pessoas chegarem até a cidade de Brumadinho de fato, para serem atendidas no ponto de apoio oficial. Então, para ajudar com mais rapidez os que estavam precisando, criamos nosso próprio ponto de apoio, bem no centro de Brumadinho, chamado Amigos de Brumadinho”.

Guilherme continua ressaltando que o grande objetivo da criação do grupo foi “mais solidariedade e menos burocratização. Nós enchíamos nossos carros, pagávamos o combustível, tinha dia que dava 10/15 carros, batíamos de porta em porta e ajudávamos quem estava precisando”.

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Grupo não descansou e sempre mostrou disposição para ajudar todos os que estavam precisando. Tinha até distração para as crianças. (Foto: Divulgação: Guilherme Moraes).

Sobre conviver diariamente com a tragédia, com as famílias das vítimas e sobreviventes, Moraes afirma que a cada dia é uma nova história: “Quando conversamos com as famílias, percebemos quantos sonhos foram destruídos. Vou citar aqui um exemplo, a Paloma é uma das sobreviventes, foi uma das primeiras pessoas a ser resgatada debaixo de uma ponte com uma corda, ela e a família dela foi umas primeiras que atendemos. Ela perdeu o marido, o filho de aproximadamente um ano e meio, perdeu a irmã que estava na casa dela e ela sobreviveu, sozinha. Dá para imaginar o que se passa na cabeça dela? Como ela vai continuar? Não dá para mensurar o quão difícil vai ser daqui pra frente. Então, temos que tirar força de onde não tem, é Deus que habita em nós para que consigamos trabalhar bastante e ajudar essas pessoas. Nós levantávamos às seis horas da manhã e começávamos a ajudar, chegávamos em casa mais de meia noite e ainda respondíamos mensagens no celular, pedidos de ajuda que chegavam constantemente e fizemos tudo isso, continuamos fazendo tudo isso com o único objetivo de ajudar”.

“Vale ressaltar ainda a falta de respeito da Vale com as famílias dos atingidos. Quem está de fora tem a impressão de que eles estão dando todo suporte necessário. Não é assim. Várias famílias que atendemos haviam sido levadas pela Vale até hotéis em Belo Horizonte, e muitas dessas famílias de classe média baixa, e estavam hospedadas em hotéis de luxo, de quatro ou cinco estrelas, e essas pessoas estavam sofrendo bullying por parte de hóspedes e até mesmo funcionários dos hotéis, por serem simples e estarem lá. Depois disso, a Vale tirou as famílias dos hotéis, alugaram casas e as colocaram dentro das casas sem estrutura nenhuma, podemos dizer que jogaram essas famílias dentro de casas. Então, nosso papel neste momento era cuidar, dar amor, dar solidariedade, dar afeto, era disso que elas estavam precisando acima de tudo”.

O integrante do grupo Amigos de Brumadinho diz à reportagem o que a Vale deveria fazer com essas famílias: “Eles deveriam ter colocado à disposição de cada família atingida, um funcionário da empresa, para poder resolver todos os problemas que viessem a acontecer. Aquele funcionário deveria ficar à mercê da família”. O desrespeito com os velórios das vítimas também foi comentado por Guilherme durante a entrevista: “Uma falta de dignidade. Havia congestionamento de corpos, a Vale não contratou uma empresa para cuidar especificamente disso, e isso era o mínimo. Não tinha ninguém para organizar esses velórios, para dar esse suporte, a estrutura era zero, não tinha água, as famílias não tinham nem dez minutos para se despedir do ente que se foi, muitas famílias precisavam segurar os caixões para conseguir fazer a despedida por mais tempo. Uma falta de respeito total. Foi desumano, é desumano”.

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Este é o grupo de amigos em frente ao local escolhido para sediar o ponto de recebimento de todo tipo de ajuda. (Foto: Divulgação: Guilherme Moraes).

No dia em que a entrevista foi realizada, em 6 de março, a reportagem perguntou a Guilherme qual era a situação da cidade naquele momento: “Completamos recentemente um mês dessa tragédia, que para mim não é uma tragédia, é mais que isso, é um crime. O sentimento é que a ficha está caindo agora para a cidade como um todo. Agora é que a dimensão deste crime está vindo à tona, todos aqui tem um amigo, um parente, alguém conhecido que foi vítima deste crime. Então, é muito mais que uma tristeza, é uma mistura com a revolta, com a vontade de fazer justiça, é um momento em que a cidade vive um luto, um sentimento de que se falta resposta da justiça, que se criam perguntas de quem vai pagar por essas vidas? O que a gente sente é que vai acontecer igual Mariana, que a mídia vai embora, vai cair no esquecimento, as pessoas vão parar de discutir, a Vale tem uma força gigantesca, que a gente sabe muito bem, e a gente tem muito medo, também, que isso tudo acabe igual Mariana, no esquecimento. Temos medo da falta de respostas, esse é o sentimento que temos hoje”.

Para finalizar, em nome do grupo, Moraes deixa a seguinte mensagem: “Meu nome é Guilherme Moraes, sou um dos porta-vozes do grupo Amigos por Brumadinho, e quero dizer para a cidade é que todos podem contar com a gente, estamos à disposição e vamos lutar para o que for preciso e agora é o momento da gente se fortalecer, todos se unirem em prol de Brumadinho, do futuro de Brumadinho, e deixo ainda uma mensagem para todos os familiares e a cidade como um todo, porque todos somos vítimas deste crime. Deixo meus sentimentos e que Deus possa confortar o coração de todos nós”.

Com a palavra, as autoridades de Brumadinho

A reportagem da ComTempo entrevistou o vereador de Brumadinho Hideraldo Santanda, do PSC (Partido Social Cristão) para entender o que está sendo feito pela cidade em nome do poder legislativo. O vereador atendeu à equipe de reportagem e se prontificou a enviar as respostas por e-mail. Você confere a entrevista, na íntegra, abaixo:

ComTempo: Quais providências estão sendo tomadas na esfera municipal?

Hideraldo Santana: A princípio, foram disponibilizados locais para acolhimento das doações. Foram montadas equipes de funcionários da Prefeitura junto com voluntários para que essas doações chegassem ao seu destino, priorizando os locais atingidos como Pires, Córrego do Feijão e Parque da Cachoeira. Foi feito um acordo com a Prefeitura onde a Vale irá construir uma ponte sobre a lama para conectar os bairros de Casa Branca e do Córrego do Feijão à sede do Município de Brumadinho. Também foi feita uma parceria da Secretaria Municipal de Saúde com a Vale, colocando à disposição psicólogos, médicos, psicólogos e ambulâncias. Durante os velórios as famílias tiveram o suporte de profissionais da saúde e ambulâncias. Também foi feito um acordo da Prefeitura com a Vale para continuar a receber o CFEM (royalties do minério) de cada mês, durante dois anos, que daria em torno de 80 milhões, para evitar impacto no Orçamento Anual do Município. Desse valor, já foram depositados 20 milhões em fevereiro e serão depositados mais 18 parcelas de 3.3 milhões até 2020.  

ComTempo: Às autoridades tinham ciência dos problemas que a barragem estava sofrendo?

Hideraldo: Ainda está sendo investigado, portanto não podemos confirmar essa informação. 

ComTempo: Como vereador, como enxerga o futuro da cidade?

Hideraldo: Não podemos ficar apegados como fonte de renda somente à exploração minerária. É preciso organizar projetos para repensar na nossa economia. O Município de Brumadinho tem muitas riquezas que poderão ser ainda mais exploradas, como por exemplo o turismo da região. 

Temos como potencial o Instituto Inhotim, as pousadas, a beleza da nossa vegetação, o clima, as serras, as cachoeiras, a gastronomia, as danças típicas, enfim, explorar nossa geografia e a cultura da nossa região. Acredito que vamos superar esse momento difícil através de muito trabalho e união de nosso povo. 

ComTempo: Qual o papel das autoridades do legislativo num momento como este?

Hideraldo: Desde o início da tragédia, estamos tomando algumas providências como a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar possível negligência da Mineradora Vale S/A com relação ao “plano de ação e emergência de barragens” na Mina Córrego do Feijão, onde faço parte como Presidente. 

Também foi instaurando uma comissão de acompanhamento e fiscalização das doações recebidas pelo Município. 

A Câmara Municipal colocou à disposição o espaço público para realização de Audiências Públicas com a presença e participação dos parlamentares desta Casa, Deputados Federais e Estaduais, Ministério Público do Trabalho junto com a população, com o objetivo de acompanhar e esclarecer os direitos das famílias que perderam seus entes queridos na tragédia provocada pela Vale e também para apoio nos processos burocráticos de documentação de óbito, realização de velórios, bem como o oferecimento de transporte dos familiares das vítimas para hospitais, Instituto Médico Legal e outros locais necessários.

A Câmara Municipal realizou uma parceria com o INSS, para auxiliar ao cidadão sobre seus benefícios previdenciários e assistenciais do INSS. Os servidores do Serviço de Atendimento ao Cidadão (SERAC), foram capacitados pelo INSS para realizarem procedimentos de operacionalização dos pedidos, que incluem protocolo e autenticação de documentos.  

A imprensa, a apuração, a informação…

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A jornalista do Portal UOL, Luciana Quierati, acompanhou de perto os desdobramentos da tragédia. Esta foto do rio tomado pela lama foi registrada durante sua cobertura. (Foto: Luciana Quierati).

Ao final desta grande reportagem sobre a tragédia em Brumadinho, a ComTempo cumpre com a principal função do jornalismo: informar, apurar, ouvir todos os lados do mesmo fato. Em tempo, a equipe de reportagem entrou em contato com Vale e até o fechamento desta edição, não obtivemos resposta alguma da empresa.

A reportagem resolveu também perguntar à própria imprensa qual é seu papel diante de fatos como este. Nós entrevistamos Luciana Quierati, jornalista do portal UOL, que esteve em Brumadinho dias após a tragédia para acompanhar o caso de perto.

ComTempo: Como foi para você, como jornalista, estar no local da tragédia em Brumadinho? Lidar com vítimas e familiares? Como é cobrir um caso como este? 

Luciana Quierati: Cheguei a Brumadinho dois dias depois da tragédia, e a cidade vivia, como classificou um diácono de uma igreja local com quem conversei, um “velório sem corpo”. O clima era pesado, de tristeza. As pessoas estavam meio sem rumo, quase que não acreditando no que havia acontecido, porque a situação em si era bárbara e estúpida e porque todo mundo ali tinha um parente, um amigo ou um vizinho que estava morto ou desaparecido. Bem por isso, é uma cobertura delicada. Ao mesmo tempo em que você precisa conversar com as pessoas para se informar, ter a real dimensão do ocorrido, você não pode ser demasiadamente invasivo. Elas estão sofrendo, fragilizadas, e nem todo mundo quer falar com os jornalistas. Muitas vezes, deixamos de abordar alguém, pedir entrevista, por ver que aquele não é o momento mais adequado. 

 

ComTempo: Qual o papel da imprensa em situações como esta?

Luciana: A imprensa precisa relatar o que vê, investigar, apurar responsabilidades e dar voz às pessoas atingidas, que normalmente estão do lado mais fraco da corrente. Assim como no caso do rompimento de Mariana, ali também muita gente poderia vir a ficar sem uma resposta, sem um respaldo. Era uma tragédia que se repetia, e tínhamos ciência das consequências de casos assim. Mas há de ser ter um cuidado ético e de bom senso, com todas as partes. Em minhas apurações, ouvi relatos que não devem ser contados em uma reportagem. É preciso ponderar.

 

ComTempo: No caso de Brumadinho, como você se preparou para iniciar a pauta? Por onde começar? Por quais fontes?

Luciana: Eu trabalhei na redação em São Paulo, acompanhando a situação de longe, nas duas madrugadas que se seguiram à tragédia. No domingo 27, perto das 5h30, a Vale acionou as sirenes no centro de Brumadinho alertando para o risco de rompimento de outra barragem na cidade. Avisei nosso repórter e nossa videorrepórter que haviam viajado para Minas um dia antes para a cobertura e subi uma nota sobre o ocorrido. A situação estava se complicando. A chefia precisava enviar mais um repórter, e eu estava disponível. Dormi um pouco, arrumei minhas coisas e, no começo da noite daquele domingo, desembarquei em Belo Horizonte. Nossa equipe estava hospedada em Nova Lima (perto de BH e onde semanas depois uma comunidade chegou a ser evacuada), porque não havia vagas em Brumadinho, e ali me inteirei com eles de como chegar às áreas atingidas, sobre as estradas interditadas e outras questões logísticas. Na segunda cedo, fomos para Brumadinho. Poucos quilômetros antes da entrada da cidade, havia dois pontos importantes: o primeiro, um centro de acolhida disponibilizado pela Vale onde as famílias das vítimas passavam dia e noite em busca de notícias, e o outro, nas proximidades de uma faculdade, onde autoridades mantinham sua base de trabalho e onde as entrevistas coletivas eram dadas aos jornalistas. Seguimos para o centro de Brumadinho. Nossa missão era falar com as pessoas, saber como elas estavam, sobre seus parentes desaparecidos, suas casas perdidas. E então nos separamos. Eles foram para o bairro rural Córrego do Feijão, onde o rompimento ocorreu e que não fica muito perto do centro, tem que pegar estrada de terra, e eu fiquei circulando pela cidade e conversando com as pessoas nas ruas, no cemitério, velório, igrejas, comércio. Assim começou o trabalho, ouvindo gente, fazendo contatos. Na terça, fomos instalados numa pousada na principal via de Brumadinho, o que facilitou muito as coisas. Cada dia, a tarefa era acordar bem cedo, pegar o carro e ir atrás de histórias. Meus colegas e eu tínhamos acesso ao que o pessoal da redação não tinha. Os números de mortos e desaparecidos podiam ser checados a partir da redação, mas verificar que covas estavam sendo abertas aos montes, que os velórios estavam durando apenas dez minutos, tudo isso era um trabalho de verificação in loco. 

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Luciana acompanhou também amigos e parentes acendendo velas para as vítimas da tragédia. (Foto: Luciana Quierati)

ComTempo: E a pauta fotográfica, como foi pensada? 

Luciana: Fazíamos fotos das pessoas que entrevistávamos, dos locais que visitávamos, mas somente aquelas necessárias para ilustrar nossas reportagens. Imagens da lama, mais amplas, do cenário de destruição, isso tínhamos de agências, e a redação em São Paulo ficou encarregada de selecionar, fazer álbuns, etc. 

 

ComTempo: No momento de estruturar a reportagem, com tantos fatos acontecendo e dados se atualizando a todo momento, como organizar as ideias?

Luciana: Estávamos em Brumadinho para falar com as pessoas e ir atrás do que a redação não tinha acesso. Então, os números de mortos, feridos e desaparecidos e tudo o que vinha por meio de assessoria de imprensa ficavam por conta da redação. Muitas vezes, enviávamos nossos relatos, e os redatores e editores acrescentavam informações contextualizadas. Era um trabalho conjunto nesse sentido. Porque, enquanto corríamos atrás de uma história, várias outras estavam acontecendo, e não tínhamos como acompanhar tudo. Na terça-feira pela manhã, por exemplo, fui com nossa videorrepórter até o Córrego do Feijão e ali, perguntando para uns e outros, descobrimos que bem perto morava um funcionário da Vale que havia se salvado e visto a lama escorrer. Fomos atrás dele, e ele aceitou falar com a gente. No início da tarde, entregava meu texto com a história desse senhor e seguíamos para o centro de apoio às famílias, onde falei com muitas pessoas e, ao final do dia, escrevi sobre o que acontecia naquele lugar. No dia seguinte, também no centro de apoio, um contato que eu havia feito no dia anterior me levou a outro que, no fim do dia, me avisou que um temporal havia devastado uma outra comunidade, dentre as mais atingidas no dia 25 pela lama. Avisei a redação, peguei o carro e fui atrás. Acompanhei os trabalhos de ajuda às pessoas que tiveram casas destelhadas, que não tinham onde dormir naquela noite. Mais uma história para ser contada. E assim era a rotina. Corrida, com muita informação chegando, muitos contatos sendo feitos, mas tentando ordenar uma coisa de cada vez.

 

ComTempo: Devido à tragédia, como lidar com as vítimas e familiares sem se envolver com o acontecido, tem como manter a imparcialidade total em casos como este? 

Luciana: Sejamos nós, que estivemos lá, seja quem ficou na redação, quem acompanhou de casa, ninguém conseguiu se sentir alheio àquela situação. Todo mundo sofreu junto, porque todo mundo se pôs um pouco no lugar do outro, um lugar muito difícil de se estar. Na sexta-feira, horas antes de pegar o avião de volta a São Paulo, acompanhei velório e enterro da filha adolescente de um senhor que dois dias antes vi aos prantos no centro de apoio por falta de notícias dela. Foi tudo muito rápido. Vinte minutos para velar e sepultar o corpo. Como jornalista, fiz meu relato o mais profissionalmente possível, com todo o cuidado do mundo. Mas, como pessoa, ver aquele homem chorando desesperado e depois reencontrá-lo no seu momento de despedida, mexeu muito comigo. E acho que também mexeu com quem leu o texto que escrevi. 

 

ComTempo: Que experiência leva desta cobertura? 

Luciana: Acho que vou levar na memória cada momento vivido ali. É uma experiência muito intensa. Mas tem uma lição em especial. Quando estive no bairro onde a chuva destelhou quase tudo, entrei já à noitinha junto com os bombeiros e o pessoal da Defesa Civil em uma casa que ficava a cerca de 300 metros de onde a lama havia passado dias antes. Ou seja, a casa, bastante simples, escapou da lama da barragem, mas não da chuva torrencial, e o casal que morava ali perdeu praticamente tudo o que tinha, tudo encharcado. Quando os dois, ambos desempregados, seguiam para a casa de uma vizinha, onde passariam a noite, perguntei à senhora, uma diarista chamada Magda, como ela avaliava aquela situação. E ela me disse: “Chorei quando vi minhas coisas assim, mas nisso a gente dá um jeito. Eu estou com vida. Quem está ali embaixo [da lama] não tem”. Uma lição e tanto.

Na segunda-feira (25 de março) moradores de Brumadinho fizeram manifestação na entrada da cidade. O movimento aconteceu para que sejam retomadas às buscas pelos corpos das vítimas que ainda estão desaparecidas. Além da manifestação, foi realizado culto ecumênico.

Da equipe da ComTempo, os mais sinceros sentimentos a todas as famílias das vítimas. À cidade de Brumadinho, desejamos esperança e força para seguir em frente. À justiça, esperamos, como todos, respostas e ações.

Para fazer o download clique aqui: https://bit.ly/2uBSwsR

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