Ermelinda Vitar da Silva

Gabriela Brack

Em gestos rápidos, num quarto de hotel barato, ela me confia sua história. E talvez eu não tenha tido tanta noção dessa responsabilidade até de fato sentar para escrever.

Responsabilidade porque, em princípio, se trata da história de vida de uma pessoa, o que, por si só, já é algo grandioso. Segundo, porque é uma história carregada de dor, sofrimento, mas ela faz questão de dizer e contar que também teve muita diversão.

Como definir Ermelinda Vitar Silva, 52 anos (completos em 17 de março, anterior a entrevista, feita um mês antes)? Em 5 anos de jornalismo, e na quarta edição do Persona apresentado pela ComTempo (a primeira através de mim), trago uma entrevista sem conclusões. Sem definições.

Num encontro por acaso, numa das ruas do Centro de Bebedouro-SP, por volta de 18h, em dia de fechamento de edição (não da ComTempo) ela passa por mim com seu violão envolto por uma capa: “você é fotógrafa?”. Minha primeira ideia foi ignorar, confesso. Nos minutos seguintes já estávamos no meio de uma conversa em que, se houvesse abertura, ela já me contaria tudo o que contou nesta entrevista.

Marcamos para o dia seguinte, num dos hotéis da cidade. Em duas manhãs de dias consecutivos, tivemos conversas regadas a detalhes. Ermelinda conta com facilidade (até se “perde” nos tantos recortes de sua própria fala), e com simplicidade tudo o que aprendeu com o sofrimento, a diversão e as andanças.

ComTempo – Onde começa sua história?

Ermerlinda – Em Três Pontas-MG (já querendo mostrar um documento que cite sua cidade de nascimento, na tentativa de comprovar o que diz). Só não tenho na carteira de motorista (CNH) porque tirei em Guaratinguetá-SP. Vivi em Três Pontas até meus 17, 18 anos. Depois disso fui trabalhar com o Baú da Felicidade, do Silvio Santos, sabe? Que as pessoas pagavam o carnê mensalmente… Eles estavam na minha cidade e eu perguntei o que precisava para trabalhar com eles. Eles disseram “é só arrumar as malas e entrar na Kombi com a gente”. No mesmo mês fui embora. Fomos para o lado de Machado, ainda em Minas, depois fui parar em Goiás…

ComTempo – E como era sua vida em Três Pontas?

Ermelinda – No começo de tudo tinha minha mãe de criação e minha mãe biológica, que foi criada por ela. Minha mãe de criação era branca, ficou viúva, tinha umas posses e minha mãe biológica, que morreu de tanto beber, disse que foi sequestrada quando tinha 3 anos. Ela nasceu em São Paulo. Contava que a família dela era de lá, que tinha uma irmã gêmea. Minha mãe de criação queria levar as três crianças (a mãe de Ermelinda e suas duas irmãs), mas meu avô não queria dar. Um dia ele foi trabalhar, deixou as crianças sozinhas, e ela pegou a mais bonitinha, que era minha mãe biológica, e levou embora para Minas. Foi para uma cidade chamada Nepomuceno, onde trabalhava. E depois de lá, foi para Três Pontas. Minha mãe morreu e eu fiquei devendo a ela, porque sempre dizia “eu ando o Brasil todo e vou achar seus familiares”. Ela foi batizada na Igreja da Penha, e registrada em Vila Matilde. O padre me deu o batistério, mas eu também queria ir onde meus avós nasceram, em Guaxupé. Tinha pouca informação. Fui ao cartório onde eles se casaram e disseram que só sabiam que eles não tinham morrido. Fiquei devendo isso a ela… (repete). Em Três Pontas morava minha mãe biológica, minha mãe de criação, eu e mais nove filhos. Tinha meu irmão Varley que morreu de tanto beber… Minha mãe ficou grávida de mim com 18 anos, e me “guardou” (escondeu a gravidez) por 9 meses. As pessoas da minha terra falavam “você tem que amar muito sua mãe, porque ela sofreu muito por você”. Se minha mãe de criação soubesse, pegaria ela de chicote. Essa mulher que nos criou era ruim, muito violenta. Ela nunca teve um filho dela, criou vários de outras famílias. Quando nasci, em 17 de março, às 5 horas da tarde, foi de surpresa, porque minha mãe de criação não sabia que ela estava grávida. Minha mãe engravidou de mim quando foi passar umas férias com a patroa dela em Santos, na praia. Ela se envolveu com meu pai, que eu não conheci, e quando ela descobriu que estava grávida, eles colocou a aliança no dedo e disse que era noivo e não assumiria. A patroa sabia que minha mãe de criação ficaria brava, combinou com o médico (o único da cidade) que ele dissesse que era um quisto (um cisto no útero) sempre que ela sentisse dor. Minha mãe de criação pegou o machado para nos matar, quando eu estava nascendo. A sorte é que passou na hora a parteira da cidade, ouviu os gritos e nos salvou. Minha mãe de criação deixou minha mãe sem comer, sem tomar banho, ela sofreu muito, então fugiu e foi morar na zona (casa de prostituição) em Varginha. Ela me abraçou muito, me beijou e foi embora. Sempre me contava isso. A minha mãe de criação sempre foi muito brava, batia em mim e meus irmãos, “sapateava” em cima da gente, judiava, deixava sem comer… Com 8, 10 anos, ela me pegava e me levava na zona para eu ver minha mãe. Via que minha mãe não tinha condições, ela apanhava, mas o que eu poderia fazer por ela com 8 anos? Ela morou com um rapaz que também era da nossa cidade, eles se conheceram na zona e foram morar juntos. Os dois começaram a beber, beber… Eu rezei muito e rezo pela alma dela até hoje. Ela sofreu muito.

ComTempo – Você conseguiu estudar? Como foi sua infância?

Ermelinda – Eu concluí o primário (1º ao 4º ano) em 1979 e tenho a 5ª série incompleta. Já troquei seis vezes de colégio, repeti quatro vezes o 1º ano. Em um deles os professores eram muito bravos, batiam na gente. O foco deles era orelha, nariz. Deixavam a gente de frente para o quadro-negro, ficávamos sem recreio. Depois fui para uma escola que consegui fazer até o 4º. Mas não era muito incentivada a estudar. Apanhava na escola. Meu apelido era “bizorrão” (besouro). Ia toda descabelada para a escola, e o pessoal falava “olha o cabelo dela!”, e a classe inteira ria. A professora xingava todo mundo, eu chorava, depois me batiam na rua… Uma vez me jogaram no meio de uma planta cheia de espinhos. Também me chamavam de “macho-fêmea”. Na minha classe tinha uma menina, a Virgínia, que sentava comigo na carteira e tinha o cabelo bonitinho, de franjinha, e eu queria ser como ela. Quando minha mãe podia fazer alguma coisa na minha cabeça, era trancinha, coque, mas eu não gostava. Queria ser como Virgínia, mas Virgínia era branca (risos). Um dia fui trabalhar numa casa de família, e lá tinha spray de cabelo e muitas coisas. Comecei a fazer uma franjinha com a tesoura, e para mim estava o máximo (risos). Minha mãe me bateu tanto, mas tanto! Ela me sentou numa cadeira no quintal, pegou uma tesoura grande, pesada, bateu na minha cabeça com a tesoura e começou a cortar. Deixou bem curtinho! Toda vez que eu apanhava os vizinhos iam me salvar, minha madrinha de batismo falava “Santo Padre Victor, protege ela”, esse santo era da minha terra e foi escravo. Eu não queria ir para a escola daquele jeito, cheia de buracos no cabelo, machucada, e aí que os colegas começaram a me zoar mesmo. Me chamavam de “hominho”, “macho-fêmea”… E depois da aula, juntava quatro, cinco, me batiam. Eu chegava em casa chorando, toda rasgada, e apanhava de novo. Minha mãe dizia “você tem que aprender a se defender”. Essa minha mãe de criação não foi 100% ruim, teve momentos bons, mas a maior parte são lembranças negativas. Tinha os “Chips” (série de TV estadunidense entre as décadas de 70 e 80), motoqueiros da Califórnia, e eu queria ser como eles. Quando andava de bicicleta andava de capacete e os imitava. Tinha um amigo e andávamos pela cidade. Eu era Poncherello e ele o Jon Baker (protagonistas da série). Zoávamos muito (risos). Uma vez estava descendo a rua e bati com um amigo meu, pneu com pneu. Em outro dia foi um caminhão. Eu estava descendo sem freio de bicicleta e ia frear no pé. A avenida era estreita e para não bater na carreta, me joguei na calçada. Bati a cabeça na parede… Já fiz cada coisa (risos). Foi divertido. Minha vida foi muito sofrimento, mas também foi diversão. Tenho o apelido de Aline, até fui no Programa do Ratinho com esse nome, por conta daquela música “e eu chamei, chamei, Aline, estou aqui” (cantarolando). Adorava cantar essa música, era sucesso na minha época. Participei de um concurso da Feira Agropecuária (em Três Pontas) que tem até hoje. Uma menina, que se chamava Aline, cantou muito bem, e eles me confundiram com ela, e eu fiquei como Aline (risos). Quando tinha circo na minha terra, eu sempre vendia pipoca, pirulito, e conseguia assistir as coisas. Numa sessão, em tinha uns 16 anos, eles queriam quatro casais que se beijassem por 8 minutos na boca, sem soltar. Quem ganhasse, teria um ingresso da sessão da noite, que era mais caro. Eu tive que beijar um cara feinho, com a boca fedida (risos). Nós ganhamos. Ele queria sair, e eu agarrava ele, porque queria ganhar o ingresso. Contaram para minha mãe que eu estava beijando o cara, e ela ficou doida. Já batia em nós à toa, então apanhei muito. Já aprontei muito quando era jovem, até passei um mês na cadeia (risos), porque a juíza de menor estava de férias. Andava com os moleques, ia para o centrão bagunçar. Saímos tocando as campainhas, e fiquei numa cela sozinha, mas os homens ficavam mostrando (referindo-se ao órgão genital) e eles falavam “olha aqui”. Mas não aconteceu nada comigo, porque estava com os PMs. Já aprontei muito. Tinha o sonho de ter uma bicicleta, e um dia estava voltando da escola e vi uma Caloi azul, tipo “monareta”.  Vi a bicicleta parada no meio fio, e achei que estivesse perdida. Eu não sabia andar, então fui empurrando. Ela era maior que eu (risos). Cheguei em casa falando “olha o que eu achei, mãe!”, e logo chegou um rapaz correndo, bufando, falando que era dele. E eu ainda tentei retrucar com o cara. Minha mãe começou a me bater, e falava “você nunca mais faça isso”. Me batia na cabeça, dava chutes, murros, e eu insistia “mas eu achei” (risos).

Leia a reportagem na íntegra na quarta edição da Comtempo.

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