Homofobia: ela também começa dentro de casa

Diminuição, xingamentos, intimidação. A violência contra os gays, antes dos ataques homofóbicos da rua, está enraizada e fadada a começar dentro de casa.

Escrito por: Marcos Pitta

Hoje é segunda-feira e meu relógio de pulso está marcando sete e meia da manhã. Me visto, coloco uma roupa confortável, calço meu tênis de corrida, pego minha garrafa d’água e saio pra correr no parque da minha cidade. Fazer exercícios físicos para manter a saúde em dia é essencial. 

Ah, que coisa, não? Nem me apresentei. Sou Edu, tenho 26 anos, me formei em Medicina e tenho uma vida estável. Enquanto corro no parque, não consigo explicar o que acontece, mas ouço vozes e começo a pensar que elas vêm em minha direção. De repente, nada mais ouço ou vejo, apenas sinto. São mãos que me empurram e quando percebo estou caído no chão. Sinto dores. Dores intensas. Na verdade, acho que já não sinto mais nada. Acho que já não estou mais no parque correndo para começar o meu dia mais disposto. Na verdade, acho que não estou mais nessa vida.

O que posso notar, agora, é que já chegou terça-feira e o relógio do pulso de um colega meu está marcando nove e meia da manhã. Ele tem costume de acordar mais tarde que eu, é estudante ainda, não trabalha e, por isso, tem esse privilégio de acordar mais tarde. Ele saiu para comprar algumas coisas no centro da cidade e quando se deu por conta, estava no chão, caído, ensanguentado, sentindo muita dor também, como eu senti. Isso aconteceu com ele, exatamente 26 horas depois de mim. 

Seguindo essa lógica, no dia seguinte, ou seja, na quarta-feira, às onze e meia da manhã, um outro amigo meu vai sentir a mesma coisa. E essa matemática não saiu da minha cabeça de narrador desta reportagem. Saiu de dados do Relatório Anual de Mortes LGBTQIA+ do Grupo Gay da Bahia que contabilizou, em 2019, uma morte de pessoas LGBTQIA+ a cada 26 horas no Brasil. 

Isso classifica nosso país como o que mais tem crimes contra as minorias sexuais no mundo inteiro. Em 2019, foram 329 mortes violentas, sendo 297 homicídios e 32 suicídios. Houve uma queda de 22% em relação a 2018, quando foram registradas 420 mortes. Mesmo assim é um número expressivo. 


Da rua para casa ou de casa para a rua?

Crimes violentos atingem a população todos os dias, assim como os que acontecem apenas por causa da sexualidade de alguém. Porém, estamos acostumados a escutar sobre violências contra homossexuais lá na rua.  Mas e dentro de casa? A violência não é configurada apenas quando envolve a agressão física, ela existe no seio familiar e isso tem muito a ver com a maneira como vivemos.

Para a advogada e vice-presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB/SP (Ordem dos Advogados do Brasil),  Priscila Sanches Salviano de Oliveira, o fato de aceitar ou não o filho “está relacionado, com certeza, com a cultura”. 

Priscila Sanches, advogada

“Somos criados em uma sociedade heteronormativa, pois, uma vez que é colocado que somente pode existir relacionamento entre homens e mulheres, isto é, sexo oposto, ter um filho homossexual é sair dessa dita “normalidade”, do senso comum”.

Priscila, que também é mestranda em Psicologia e Saúde, explica que “se formos estudar de maneira correta e deixarmos de lado a religião, nossos preconceitos e dogmas, entendemos que a sexualidade é diversa e que gostar de pessoas do mesmo sexo não tem nada de errado, pois estamos falando de orientação sexual, e esta a gente não escolhe, somente sente. Precisamos entender que amar outra pessoa, que seja do mesmo sexo  ou não, é somente amar, e isso é o suficiente pra nossa evolução como ser humano, não deveríamos nos preocupar com quem a outra pessoa está dormindo”.

A advogada diz ainda que na sua opinião, a rejeição da própria família é a que mais pesa para a pessoa LGBTQIA+: “O que mais se procura, pelo menos em um primeiro momento, é a aceitação daqueles que nos amam e achamos que é incondicional. O entender-se pertencente à comunidade LGBTQIA+ não é algo simples, requer coragem e, acima de tudo, carinho, afeto e amor daqueles que amamos, portanto, ser rejeitada é o início de muitos problemas que a pessoa vai passar como, por exemplo, ser expulsa de casa”.

Segundo a profissional, a sociedade pode até ter papel importante de ser acolhedora, pois hoje “contamos com organizações que defendem os direitos humanos, a diversidade sexual e de gênero, como por exemplo a OAB, que possui tal comissão e acaba servindo de suporte, porém sabemos que nada substitui a família”.

Uma das questões levantadas pela ComTempo com a advogada é sobre o que a pessoa pode fazer para se proteger da família, caso haja violência e até mesmo a expulsão de casa, como Priscila mencionou, e a resposta foi que o ideal “é que se procure ajuda de instituições aptas a receber esse tipo de demanda, além do mais, deve-se procurar proteção policial, uma delegacia, quando existir algum crime. Já quando a violência acontece nas ruas, a polícia precisa ser acionada para que inquérito seja realizado e a pessoa agressora responda pelo crime cometido”, diz, reforçando que desde 2019 a LGBTfobia é crime e o Supremo Tribunal Federal concretizou como inafiançável e imprescritível.

A advogada explica também como funciona o âmbito legal para a defesa da comunidade LGBTQIA+: “O que se tem como medidas de proteção para a comunidade são resoluções e a participação dos Tribunais Superiores, e não leis. A lei que temos é a de nº 10.948/2001, de âmbito estadual (São Paulo), que dispõe penalidades a serem aplicadas à pratica de discriminação em razão de orientação sexual e dá outra providências, são penalidades financeiras a empresas que praticarem discriminação. Em 2011, o STF reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo e em 2013, o Conselho Nacional de Justiça 175/2013, na ausência de legislação específica, reconheceu o casamento entre pessoas do mesmo sexo em âmbito nacional. Em 2018 o CNJ regulamenta alterações de nome e sexo no registro civil de pessoas transexuais – provimento 73/2018, e em 2019, nosso Supremo Tribunal Federal aprova a criminalização da homofobia”, explica.

Portanto, de acordo com Priscila, temos todo o sistema judiciário tentando suprir a falta de Leis que protegem a comunidade: “Existem também órgãos de classe, como no caso da OAB que em súmula 11 proíbe a inscrição de bacharel em Direito nos quadros da OAB que tenha praticado violência contra pessoas LGBTQIA+, em razão da orientação sexual, identidade de gênero e expressão de gênero”.


“Os traumas dentro de casa, na infância, causam feridas que carregamos para o resto da vida”

Téo* relatou, em entrevista a ComTempo, que desde cedo nunca seguiu “o que era esperado de um menino”. Ele se caracterizou, na infância, como quieto, delicado, estudioso, e que tudo isso era diferente da ideia de moleque “levado” que todos esperavam que ele fosse. Por isso, ele logo entendeu que lhe foi dado um lugar, o de exclusão. 

Nesta época, nos anos 90, o gay, ou existia numa representação caricata, como um personagem cômico com o propósito de ser piada, ou simplesmente não existia. Téo, então, só foi ter referências de homens gays, na adolescência, com a internet. 

Para muita gente as agressões começam com a rejeição. No meu caso, ela se iniciou em casa, com a inexistência da presença do meu pai na minha vida. Nunca consegui criar conexão com ele. Ele sempre se mantinha mais distante, desinteressado. Por muito tempo, a única interação que tive com ele era pra tomar esculacho, esses eram os únicos momentos em que ele se fazia presente. Apanhei, levei tapa na cabeça, ele me diminuía, me culpava por problemas do relacionamento, problemas sociais…

Sei como sou privilegiado, pois não sofri agressões sérias dentro de casa, sempre tinha minha mãe pra interceder, e não tive meu pai dentro de casa por muito tempo também. Eles se separaram quando eu tinhas entre 10 e 11 anos, mas essa não é a realidade da maioria. Os traumas dentro de casa, na infância, causam feridas que carregamos para o resto da vida, e que nos atormentam de diversas maneiras quando adultos.

A escola também não foi o melhor lugar do mundo e continua não sendo para quem é LGBTQIA+. Pelo menos não se você tem qualquer tipo de gosto, trejeito ou qualquer característica que possa levar as pessoas a deduzirem que você é gay, lésbica, trans… É na escola é que a exclusão acontece. Meu Deus, como era difícil fazer amigos. Essa fase foi um grande limbo. Os meninos, na maioria das vezes, se incomodavam com qualquer contato. Era uma vergonha para eles se qualquer outro visse eles conversando comigo por mais que um minuto. Eu sempre buscava a companhia das meninas que me acolhiam, mas como a escola segue um formato bastante restrito, principalmente em relação a separação de gênero, em muitos momentos eu não tinha para onde escapar, então acabava sozinho. Eu odiava quando tínhamos que fazer separação de grupos por gênero. “Meninos para um lado, meninas para o outro”. E eu sozinho, né? O grupo dos meninos simplesmente fingia que eu não existia.

No meu caso, o grupo das meninas acabava me acolhendo mais, só que as que acabaram por virarem minhas amigas mais próximas, já tinham o grupo com número meio certo, não sobrava uma pra fazer comigo. A sorte era quando uma faltava, caso contrário, ia com alguém que a professora escolhia, porque sempre acabava sem dupla. Para mim, nessa fase de infância e escola, a pior parte, sem dúvida, era o recreio. A exclusão, as “brincadeiras”, me assustavam menos quando tinha um número menor de pessoas e, normalmente, nesse momento, não tinha professor ou inspetor (pelo menos não na minha escola), eram só os alunos, de todas as séries, juntos. Eu só rezava pra que naquele dia, as meninas não resolvessem passar o recreio no banheiro, porque né, não pode menino no banheiro de menina e aí eu teria que passar o recreio sozinho.

Não é nada legal, nessa idade, ter um grupo rindo de você, de quem você é. Mas o que realmente não é justo, é viver esse tipo de situação tão cedo, por algo que só passaria a fazer parte da minha vida mais tarde, na adolescência. Mas, desde criança, a sociedade já pesa nos nossos ombros, antes mesmo de isso vir a fazer parte das nossas vidas, quando nem entendemos o porquê. Quando não conseguimos ver sentido ou entender o motivo pelo qual estamos sendo ridicularizados, excluídos, agredidos… A conclusão que fica é de que o mundo não é um bom lugar. Pelo menos não pra gente.

Para o Téo, a confusão maior começa quando começa o processo de entendimento do porquê as risadas aconteciam. É neste momento que ele começava a esconder essa parte dentro de si mesmo, negando, tentando reproduzir, ao máximo, um comportamento que faria com que ele fosse aceito. Isso incluía esconder os seus desejos, e ele se sentia vivendo duas vidas, uma que ele criou para se proteger da sociedade e a outra que ele ele escondia de todo mundo.
Tudo isso desencadeou problemas que seguem Téo até hoje: depressão, ansiedade, problemas em se relacionar, medo e insegurança, por exemplo. Mas o Téo não está sozinho, ele conseguiu falar que gostava de meninos. Isso aconteceu aos 15 anos, quando ele gritou em alto e bom som e começou a aceitar essa parte dele. A terapia o ajudou.

Foi aí que passei a reconhecer meu lugar e ver que eu era normal, que não precisava me esconder, porque não tinha nada de errado. Eu sabia que não seria fácil, a visibilidade e aceitação hoje são muito maiores do que quando eu estava na escola, e foram conquistadas com o esforço de muitos. Nessa época eu já conseguia acessar a internet de casa para buscar informação e conhecer o que seria o mundo gay, para buscar referências, para entender que ser gay me colocava num grupo que estava lutando por direitos e visibilidade. Ainda bem que desde lá já caminhamos bastante, não deixando de lembrar que ainda temos muito o que avançar para que esse tipo de situação não exista nas próximas gerações. Hoje, o mundo está muito mais aberto para ouvir e entender. Eu mesmo tive que entender muito do que sentia, do que vivi, mas hoje consigo ver que não tem problema ser quem sou, que as pessoas são diversas e plurais e que ninguém pode te diminuir, negar sua existência ou te excluir da sociedade.

O Brasil teve progresso em muitas partes. Já há algum tempo, temos o casamento legal entre pessoas do mesmo sexo, tivemos recentemente a homofobia reconhecida como crime. Num governo conservador como o atual, de Bolsonaro, infelizmente, é impossível esperar por algum progresso. Pelo contrário, podemos esperar por retrocessos. Neste momento precisamos ficar ainda mais de olhos abertos para não perder nenhum direito, para não retroceder nenhum passo.

“Minha família nunca me apoiou. Para ser sincero, acho que nunca irá apoiar”

Ouvimos também o relato do Otto*, e ele tem a infância muito clara na mente até hoje. Não muito diferente da história do Téo, o Otto também conta como sofreu na escola e faz um alerta quando diz que na sua época ainda não se discutia o bullying, “era chamado de zoação”. Foi também por ter uma característica física diferente que a situação no ambiente escolar era ainda mais esdrúxula. Otto era deixado de lado em muitas circunstâncias, tanto pelos garotos, quanto pelas garotas, e foi somente na adolescência que ele começou a entender melhor tudo o que sofria e que não devia aceitar a imposição de como ser, se vestir ou andar.

Na infância eu tinha o cabelo grande, até o ombro, e gostava muito de Sandy e Júnior, Xuxa e do grupo É o Tchan, os que faziam bastante sucesso na época. Eu dançava, cantava as músicas, sem medo, maldade ou julgamentos, porque aquilo, para mim, não tinha nada demais. Porém, sempre alguém da família fazia comentários ou me mandava “tomar jeito”. Mais tarde fui entender que “tomar jeito” era ter “postura de homem”, na linguagem deles. 

Na adolescência, acabei aceitando melhor o que eu era, me abri para alguns amigos, pude conversar com outras pessoas através de bate-papos na internet para entender melhor. Mesmo assim, não foi fácil. O modo no qual fui criado e como vivi na sociedade até então, me fez também ser preconceituoso e não aceitar certas pessoas e atitudes. Me envergonho disso e já pedi desculpas para algumas pessoas com as quais fui rude e não respeitei. Para minha sorte, fui cursar faculdade na capital do meu estado e isso me fez abrir os olhos, ter contato com outras pessoas que tiveram experiências de vida bem contrárias à minha, viveram e fizeram coisas que jamais imaginaria. Fui desconstruindo com a nova vida que levava no campus. 

Minha família nunca me apoiou. Para ser sincero, acho que não irá apoiar, com exceção do meu irmão e alguns primos. Isso, para mim é bem difícil. Se aceitar nessa sociedade não é fácil, não é pra qualquer pessoa, passamos por muita coisa, por muita humilhação, e aquele suporte que você espera ter, não existe. Tudo isso me apertou tanto, me deixou tão sem rumo na vida, que cheguei a desistir, não ligava mais para o curso no qual estava, não ligava mais para amigos, comecei a usar drogas e beber exageradamente, a ponto de ir parar no hospital onde uma pessoa, vendo meu estado, me alertou o quão bela era a vida e que não devia fazer aquilo comigo, que eu era uma pessoa tão diferente das demais e devia lutar e enfrentar todas as barreiras e viver. E a partir daí, fui viver realmente e me aceitar, tendo apoio ou não da minha família. 

A primeira pessoa que tive essa conversa foi com um amigo. Ele nunca me julgou, desde a primeira vez que nos conhecemos, e foi a primeira pessoa no qual me apresentou um amigo, que me viu como casal. Às vezes digo que foi mais família que a minha de sangue devido todo apoio e suporte que ele me deu. 

O Otto contou que tem uma situação de homofobia que ficará para sempre em sua memória. Foi em sua época de escola, quando um garoto chegou a agredi-lo, utilizando de palavras como: gay, bicha, viado… mas também de tapas e murros nas costas. Para tentar não passar novamente por isso, toda vez que Otto via esse garoto, ele desviava o caminho e abaixava a cabeça.

Neste caso, o tempo ajudou. Otto encontrou a mesma pessoa anos depois, já adultos, e uma conversa foi capaz de proporcionar um pedido de perdão. O tempo também fez com que Otto não admitisse mais passar por situações como as que passou anteriormente.

Vivo a minha vida sem prejudicar ou fazer mal pra ninguém, só quero ser o que sou, ir onde quero ir, abraçar, amar e poder viver como todos. Sempre que vejo algo parecido eu tento apoiar a pessoa que sofreu, faço denúncias, pois não é certo, não quero que ninguém passe pelo que passei. 

Sobre a situação do país em assuntos como este, da homofobia, Otto diz que notou uma evolução. “Temos muito mais apoio do que tínhamos há 10 anos. Hoje somos mais livres, temos mais direitos reconhecidos. Infelizmente, regredimos bastante com os atuais governantes, que incitam o ódio, o preconceito. Isso é triste. Sinto que devia participar mais ativamente das decisões da comunidade e apoiar, mas faço tudo dentro do que posso”, conclui.

Algo que sempre digo é: viva, independente do que o outro irá dizer de você. Se apaixone, viaje, tenha fé, persista, ame você acima de tudo. Não tenha medo de ser o que é.  

Deixo um trecho da música do Caetano Veloso que diz: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Por mais provações e sofrimentos, um dia terá o deleite, a realização e verá que muitas coisas te fortaleceram, que agora é sua vez de se deliciar, se jogar. Viva!


“Ele preferia ter um filho estuprador a gay”

Com o Fred* a homofobia dentro da família também aconteceu. Ele conta que sempre foi uma criança agitada e libertária. Ele cresceu dizendo que “o legal é ser diferente” e que “não devemos ter vergonha de quem não nos conhece”. Ele conta ainda que atualmente permanece com um pouco desse espírito descontraído e despreocupado, mas que muita coisa mudou e, infelizmente, essa mudança não aconteceu da melhor forma.

Me descobri gay aos 10 anos, numa noite de extrema angústia e tristeza. Pela primeira vez eu estava gostando de alguém da escola, um garoto. Como frequentador assíduo da igreja católica, no meio do meu processo de catequese, não conseguia entender o motivo do meu Deus ter me castigado de tamanha maneira, afinal,  com tantas pessoas no mundo, por que ele havia de escolher justamente a mim pra viver essa vida que, na minha cabeça, era de isolamento e frustração?

Foram anos indo à igreja e pedindo por uma mudança, pedindo o fim daquele sentimento e, acima de tudo, pedindo perdão, porque eu realmente acreditava que era culpado. Obviamente, nada disso resolveu e, aos poucos, comecei a engolir a ideia do meu novo normal. Veja bem, não me aceitava, mas precisava continuar minha vida, e achava que ignorando aquele problema, ele iria embora.

Não foi.

Com 13 anos fiz amizade com três garotas que, futuramente, provaram-se não ser tão boas amigas. Nessa época, eu já entendia que não era hétero e, ainda na tentativa de negar a realidade, comecei a me entender como bissexual. Claro que eu não cogitava contar para alguém que eu sentia algum tipo de atração por homens: viveria minha vida normalmente, namoraria uma garota, casaria com uma garota e, no final das contas, essa “suposta atração” iria desaparecer, não é? Engano meu. Nesse mesmo ano decidi me assumir, e as primeiras pessoas que souberam disso foram as minhas três amigas, afinal, eu confiava nelas e elas nunca me abandonariam. 

Me abandonaram. 

No mesmo dia da revelação, pediram “espaço” para entender tudo que estava acontecendo, e nunca mais fizeram menção de falar comigo, muito pelo contrário, me segregaram totalmente e foi uma questão de tempo até que minha sexualidade virasse assunto da escola. Dias depois, pisei no colégio e vivenciei uma clássica cena de filme teen estadunidense, com todos me olhando e se afastando de mim enquanto eu andava pelos corredores. No intervalo, várias pessoas vieram falar comigo, de forma vexatória, claro. Percebi, então, que a bomba havia explodido: eu havia sido assumido.

O bullying começou. Eram dias de piadas maliciosas, perguntas indecentes e, até mesmo, brincadeiras pejorativas, vide a mais frequente em que “quem conseguir chegar mais perto e por mais tempo do gayzinho ganha”.   Eu não ligava muito, sempre ia para a biblioteca e esperava o tempo do recreio passar. Mas, as “brincadeiras” pioraram.

Aquelas três “amigas” começaram a espalhar boatos mentirosos cada vez mais frequentes e de teor sexual: diziam que eu havia ficando com o menino X, que eu havia transado com o colega Y e coisas bem mais indecentes que não gosto de lembrar, muito menos compartilhar. As histórias chegaram ao conhecimento de alguns professores que, ao invés de me ajudarem, começaram a repassar esses boatos e até mesmo fazer piadas em aula, quando eu faltava.

Depois de meses passando por isso, não conseguia mais aguentar e comecei a chorar na frente da classe toda, que se calou porque, imagino, entenderam como tudo aquilo estava refletindo sobre mim. Minha professora de Ciências me mandou para a diretoria, não por punição, mas porque era a primeira vez que ela ouvia sobre o bullying que eu estava passando e queria que os culpados fossem punidos. 

Comigo na sala, o professor responsável pela escola começou a ir atrás do boato, chamando pessoa por pessoa, até que as minhas três amigas surgiram na porta da diretoria. Prontamente, elas confirmaram que eu havia contado para elas sobre ser gay e, na maior falta de senso existente, o diretor liberou a todos e ralhou comigo por querer inventar essa história para chamar atenção. 

Mais tarde, meu pai veio me buscar: bravo, ranzinza e sem falar muito. Alguma coisa estava errada. Então, descobri que após eu deixar a diretoria, o diretor ligou para minha casa e pediu, explicitamente, para que minha mãe transferisse a ligação ao meu pai. Era “assunto de homem”. Contou tudo e, como verdades universais, disse que eu era gay, confirmou os boatos existentes (que nunca aconteceram), e depois ainda reconfortou meu pai: “ele é criança e uma boa educação ainda pode consertá-lo”.

Meu pai nunca me bateu, nunca encostou um dedo em mim, mas tenho as marcas de sua criação até hoje. A ligação estragou qualquer relação com ele, os xingamentos começaram: inútil, frouxo, bichinha, mulherzinha. Passei a adolescência ouvindo isso e sendo obrigado a frequentar os mesmos lugares que ele: aprendi a pescar, dirigir barcos, jet skis, construir coisas e, mais do que isso, aprendi a esconder minha sexualidade.

Foi apenas no 2º ano do ensino médio que isso começou a mudar: no ano anterior meus pais haviam se separado três dias antes do meu aniversário e, por mais triste que isso possa parecer, foi o melhor presente que recebi. 

A partir daí, me senti mais leve e comecei a ser cada vez mais autêntico. Não digo que de cara comecei a dobrar a manga da camiseta e falar “amapô”, mas eu podia, finalmente, assistir meus filmes, ler meus livros, escutar minhas músicas e criar o meu gosto pessoal, não o do meu pai, que era o que eu tinha até então.

Descobri, então, que o mundo é repleto de LGBT’s e que eu não estava sozinho. Eu sabia que era diferente desde a 5ª série, mas foi apenas no 2º colegial que me percebi realmente ser gay, e que não havia nada de errado com aquilo. Há até uma lembrança boba de quando uma amiga minha pediu para eu pegar o celular no bolso dela – que tinha as mãos sujas de biscuit –  dizendo que “não poderia confiar em um hetero para isso”. 

No meu primeiro ano de cursinho, ficou acordado que meu pai me levaria. É claro que eu não estava feliz, mas minha mãe não dirigia e eu nunca havia andado de ônibus, então, aceitei a proposta pensando que era só me manter calado que não haveria problemas. 

Foi nesse ano, entretanto, que eu não aguentei mais me esconder, e decidi me assumir publicamente. A conversa com minha mãe não durou 5 minutos: foi o velho relato clichê de que ela já sabia, que me amava, que nada mudaria e que meu pai não poderia saber.

Eu, teimoso, não dei ouvidos à última parte. Quando meu pai me levava ao cursinho, insinuou sobre minha sexualidade de forma pejorativa, esperando que eu ficasse calado como sempre, mas foi aí que se surpreendeu quando eu soltei um “você realmente quer saber?”, e em seguida um discurso enorme falando sobre como eu gostava de meninos, que eu realmente era gay e que era aceitar ou me perder. 

Talvez influenciado pelos filmes de temática LGBT, soltei essa última frase na tentativa de fazê-lo ceder a tudo isso e fingir que não havia problemas, mas não foi isso que aconteceu. Passei o trajeto inteiro ouvindo sobre como eu era a maior vergonha da vida dele, que ele preferia ter um filho estuprador a gay, que eu era um bandido, entre outras coisas que machucariam qualquer um. Quando saí do carro, como um bom adolescente rebelde, mandei a retórica que havia preparado durante todo o caminho: “obrigado pelos 18 anos aos quais você se prestou a esse papel mas, a partir de hoje, eu não te considero mais meu pai”. Fechei a porta, entrei na sala de aula e, como um flashback da 8ª série, comecei a chorar, dessa vez sem diretores para me “ajudar”, mas com verdadeiros amigos que fizeram questão de cuidar de mim ao longo do dia.

Hoje, não converso mais com meu pai e realmente não sinto falta. Tenho uma irmã, perfeitamente heterossexual, que ele também abandonou, explicitando que o problema não era apenas a minha orientação sexual, mas talvez a inércia e preguiça dele em assumir o papel de pai.

Com o relato do Fred, fica evidenciado que a homofobia vai muito além da violência física sofrida nas ruas. Ela começa dentro de casa muitas vezes. Para entendermos melhor as consequências desse preconceito da parte de quem a pessoa deveria receber apoio, o psicólogo Vitor Beck comentou sobre os impactos por traumas de rejeição na pessoa já na fase adulta, como a família deve acolher e também explica que nada disso é influência ou problema.

ComTempo – Como uma pessoa, já na fase adulta, é impactada por traumas de rejeição familiar ainda na infância e na adolescência por conta da sexualidade?

Vitor Beck, psicólogo

Vitor Beck A formação de vínculos afetivos e sociais na infância contribui para a aquisição de novos conhecimentos, bem como para a promoção de habilidades que favoreçam o desenvolvimento social e intelectual, prevenindo, inclusive, alguns transtornos psicológicos. Entre as habilidades sociais, que são fundamentais para o desenvolvimento do indivíduo, podemos destacar a importância de lidar com emoções e sentimentos, identificando e expressando os próprios sentimentos, a autonomia, cooperação, resolução de problemas, a empatia, se interessando pelos demais, compreendendo os sentimentos e emoções do outro, além de lidar com a raiva, o medo e a frustração, permitindo que seja desenvolvida uma competência social adaptativa, produzindo maior qualidade de vida.

Quando pensamos em uma criança ou adolescente que se desenvolve em um ambiente não adequado, o qual não favorece a promoção de um repertório comportamental socialmente habilidoso, que tenha modelos de comportamentos não assertivos, e principalmente, no caso da rejeição familiar devido à sua sexualidade, sendo impossibilitada de se expressar da maneira como é, ou então sendo castigada ou repreendida por fazê-lo, muito provavelmente acarretará influências negativas em sua vida adulta.

Diante disso, penso que como consequências dessa infância, pode-se destacar a presença de inúmeras patologias psíquicas e/ou problemas relacionados, como depressão, ansiedade, insegurança, problemas com autoestima, dificuldades para se relacionarem socialmente, autocontrole pouco desenvolvido, além de doenças psicossomáticas, que são manifestadas em nosso corpo quando nosso emocional não está bem resolvido. Tudo vai depender de como e do quanto esse indivíduo desenvolveu habilidades e estratégias de enfrentamento necessárias para lidar com essa rejeição.

CT – Como a família deve acolher uma pessoa LGBTQIA+?

Vitor – A sexualidade, ainda hoje, é um tema pouco frequente dentro da maioria das famílias, uma homossexualidade, ou qualquer outra forma de se expressar “diferente”, menos ainda. Podemos relacionar esta questão a uma dificuldade dos pais e familiares em lidarem com estes assuntos, muitas vezes decorrente da cultura em que se desenvolveram, evitando a expressão da sexualidade de um modo geral.

Visto que a família é um local de referência, segurança, conforto e afeto para um indivíduo, ou pelo menos deveria ser, é importante que, ao tratar-se de um indivíduo LGBTQIA+, essa família busque por informações e conhecimento a respeito da causa, demonstre atenção, apoio e segurança, fortalecendo o vínculo afetivo, além de favorecer um maior bem-estar ao indivíduo LGBTQIA+, garantindo maiores condições de qualidade de vida. O suporte familiar é um fator protetor importante quando relacionado a um menor índice de desenvolvimento de psicopatologias e também de suicídio.

CT – Quais os impactos que o preconceito, tanto dentro de casa quanto fora, traz para a saúde mental de uma pessoa LGBTQIA+?

Vitor – Os impactos são diversos. Além do desenvolvimento de possíveis patologias psíquicas e/ou problemas relacionados, como ansiedade, depressão, insegurança e baixa autoestima, o impacto mais severo é o suicídio.

Vivemos em um país que lidera o ranking de violência contra indivíduos LGBTQIA+, sendo que a taxa de suicídio desta população é seis vezes maior quando comparada à população heterossexual. A cada 26 horas, acontece uma morte LGBTQIA+. Devido a estigmatização sobre a orientação sexual, identidade e expressão de gênero, essa população se torna vulnerável a um maior número de estressores e, de acordo com alguns estudos, o ambiente familiar é um grande provedor destes estressores e é onde esses indivíduos mais sofrem violência.

CT – E na escola, como fica a cabeça do adolescente ou da criança que sofre preconceito por parte dos outros alunos? Como a família pode ajudar neste caso? E se faltar a família, como os professores, diretores, a escola em si pode ajudar?

Vitor – Quando pensamos no preconceito presente na realidade escolar, as manifestações de violência podem ser variadas, como a violência psicológica, o bullying, que pode ser manifestado tanto pelos alunos, quanto por professores e outros profissionais, a violência física e, em alguns casos, até a violência sexual, acarretando muitos prejuízos psicológicos como crises de ansiedade, comportamentos depressivos, fobias, afastamento do ambiente escolar, além de comprometer a aprendizagem e o desenvolvimento intelectual e social.

Se pensarmos em uma família qualificada, provavelmente o indivíduo terá um repertório de habilidades melhor desenvolvido e, consequentemente, o impacto será menor. Porém, na grande maioria dos casos, a família atribui à escola o papel de realizar o processo de cuidado e orientação sexual.

Sendo assim, quando falta a família, é de extrema importância que a escola se posicione, a fim de evitar que a integridade dessas crianças e adolescentes seja comprometida.

E, de que maneira a escola pode colaborar neste processo? Através de ações psicoeducativas. O ideal seria que em toda escola tivesse um psicólogo inserido na equipe, mas sabemos que essa não é a realidade em nosso país. A educação sexual, por exemplo, seria uma maneira bastante eficaz, visto que discutir educação sexual com crianças e adolescentes significa prepará-los para a aceitação das diversidades e de si mesmo, valorizando a identidade e a relação com o outro, além do que, esse processo educativo esclarece as relações entre os alunos e colabora com os professores e educadores, que se deparam com essas questões e nem sempre possuem competências necessárias para lidarem com elas. Nesse processo, a escola pode se apropriar de estratégias como jogos, brincadeiras, debates e encenações, onde as crianças e adolescentes possam participar ativamente e serem protagonistas.

CT – Como explicar para quem ainda resiste em entender que a sexualidade não é

questão de escolha, influência ou que não é só uma fase?

Vitor: Quando falamos em sexualidade, eu sempre fico atento para fazer correções pontuais, porque, ainda hoje, muitas pessoas se referem à orientação sexual como uma questão de escolha e/ou preferência. Às vezes eu até questiono, se em algum momento da vida destas pessoas, apareceu alguém com um questionário pedindo para que escolhessem sua orientação sexual, da mesma maneira que escolhem uma alternativa correta em uma questão de prova, por exemplo. Costumo brincar que escolha e/ou preferência nós deixamos para comida, por exemplo, “eu prefiro pastel de queijo” ou então, “eu escolho colocar o feijão por cima do arroz, e não por baixo” (risos), ou seja, de nada tem a ver com orientação sexual, que se refere a qual gênero seu desejo afetivo-sexual é direcionado, e que não precisa ser a um único gênero, como no caso dos bissexuais ou dos pansexuais, assim como, não necessariamente precisa ser direcionado a um gênero, como os assexuais.

Sobre lidar com aqueles que resistem em adquirirem o conhecimento para compreenderem e aceitarem a sexualidade do outro, penso que é importante trazer essa reflexão para essa pessoa, então “você acredita ser possível, através de psicoterapia, ou de alguma orientação específica eu mudar sua sexualidade?” ou então, “você se vê capaz de fazer uma escolha sobre sua sexualidade, ou foi algo que aconteceu naturalmente?”, então é como se eu colocasse um espelho na frente desta pessoa e a fizesse pensar, porque ela acredita que essa mudança, ou essa escolha, é capaz de acontecer com o outro e não com ela? É claro que o processo é um pouco mais complexo, mas é por este caminho.

*Os nomes reais das fontes que relataram suas histórias para a construção desta reportagem foram preservados e, por isso, utilizamos nomes fictícios.

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