Por Deborah Ribeiro
“A dor é inevitável, o sofrimento é opcional”. As reflexões e os ensinamentos de Buda tem ajudado Lucimere Aparecida de França a superar e enfrentar os desafios do dia a dia. É difícil, mas com a prática tudo torna-se mais fácil.
Carinhosa e com um belo sorriso estampado no rosto, Mari, como gosta de ser chamada, esperava a reportagem com certa ansiedade. Não escondia a felicidade em poder compartilhar a sua trajetória. E que história!
Sua deficiência visual não impediu de enxergar possibilidades onde não há. Sempre lutou pelos seus sonhos sem medo de ser feliz.
Seu ingresso à universidade lhe abriu portas para novos aprendizados, provocando reflexões em todos a sua volta. E no decorrer desta linda trajetória, descobriu que quem tem amigos tem tudo.
Atualmente, Mari se recupera de uma operação da qual retirou um tumor do cérebro. A superação, segundo ela, é alcançada todos os dias. A luta pela a vida é diária e a ordem da vez, é comemorar uma vitória de cada vez.
Comtempo – Quando e onde você nasceu?
Mari – (risos). Terei que falar minha idade. Nasci em 27 de junho de 1971, em Ribeira, cidade paulista, mas vivi boa parte da infância em Apiaí. Por conta da cirurgia minha memória anda falhando.
Comtempo – Quem são seus pais? Você tem irmãos?
Mari – Ivo de França (in memorian) e Iracema dos Santos Dias. Ao total tenho 12 irmãos, dos quais seis são do casamento dos meus pais. Tenho muitos irmãos, mas não temos muito contato. Nenhum deles estão aqui agora. Cada um mora em uma cidade diferente e isto acabou nos distanciando.
Comtempo – Como foi sua infância?
Mari – Foi muito boa, tanto em Ribeira como Apiaí. Como a minha mãe teve seis filhos, um atrás do outro, morei um tempo com as minhas avós. Embora fôssemos em seis, tinha muitas dores nos olhos e dei um pouco de trabalho nesta fase.
Comtempo – Que tipo de trabalho? Você nasceu com deficiência visual?
Mari – Nasci com glaucoma congênito, mas enxergava muito pouco, com dificuldades. Mas, aos seis anos, perdi completamente a visão. Nesta fase, fiquei muito revoltada por não poder enxergar, mas passou como tudo na vida passa. O fato de não enxergar nunca me limitou em nada. Sempre soube que conseguiria alcançar meus objetivos, mas com um pouco mais de dificuldade. Só não sabia como fazer e por onde começar. Em Apiaí não havia ninguém que pudesse me orientar. Mas, tudo mudou, quando chegou a cidade, uma pessoa (Durvalino) de bom coração que se prontificou a me ajudar, desde que mudasse para Sorocaba. Ele me cedeu um apartamento e minha avó me ajudava financeiramente.
Comtempo – Quais brincadeiras costumava brincar?
Mari – De tudo. Pulava corda, do foguinho, num ritmo mais lento, até o fogão. Também gostava de brincar sozinha e o fato de não poder enxergar não limitava a diversão. Às vezes, me machucava como qualquer outra criança. As minhas avós ficavam preocupadas, mas me divertia muito sem me importar com os perigos. A minha adolescência também foi muito boa.
Comtempo -Nesta etapa, você frequentou a escola?
Mari – Não. Passei a frequentar a escola quando me mudei para Sorocaba, aos 19 anos.
Comtempo – Como era a relação com seus pais?
Mari – Era uma relação saudável, mas sem muito carinho. Digamos que era uma relação respeitosa.
Comtempo – Sua família te acompanhou para a mudança?
Mari – Me mudei sozinha, aos 19 anos. Meu pai queria me esganar e foi totalmente contra a mudança, na época. Ele questionava: “o que uma menina deficiente visual irá fazer numa cidade grande?”. Mas, o Durvalino e a Baby (amiga com quem dividia o aluguel) conversaram com ele. Cheguei à cidade analfabeta, mas com muita vontade de aprender. Então, comecei a estudar. Logo, depois, a Baby foi embora e fiquei um tempo morando sozinha.
Comtempo – Como foi morar sozinha e em outra cidade?
Mari – Foi desbravador todas estas experiências porque nunca havia frequentado uma escola. Tive dificuldades porque não sabia nada e os deficientes visuais que conheci já frequentavam o ano letivo normal. Então, corri atrás do tempo perdido. Neste período, conheci o Wagner, que se tornou meu namorado e, depois, meu marido. Ele sempre estudou, mas frequentava a Associação Sorocaba de Atividades para Deficientes. Simultaneamente, a Baby foi embora e acabei engravidando da Ingrid, em 1993. Com a gravidez, voltei para Apiaí e meu pai me indagou na época: “então, você voltou com o seu diploma?” (gargalhadas). Ele me jogou na cara. (risos). Mas, este período de três anos foi muito importante para meu crescimento. Me tornei independente e conheci muitas pessoas.
Comtempo – Como foi a maternidade?
Mari – Tudo mudou rapidamente. Não tive dificuldades, me sai muito bem e tirei de letra (fala com confiança). O que muda é o cuidado. Por exemplo, não vou conseguir limpar uma criança com lenço umedecido, mas vou dar um banho (se ela evacuar). Depois, de dois anos, nasceu minha segunda filha, Isabela. Mesmo, com as meninas, voltei a estudar em Apiaí.
Comtempo – E o casamento com o Wagner?
Mari – Foram 17 anos vivendo como marido e mulher. Vivemos um tempo em Apiaí e, depois, voltamos para Sorocaba. Agora, somos amigos e muito amigos. Nos falamos todos os dias, conseguimos manter uma relação respeitosa. Assim como eu, ele também é deficiente visual. É professor de educação especial, já aposentado. O curioso é que ele vive em Apiaí e eu moro Sorocaba, onde ele nasceu com a minha ex-sogra. (risos)
Comtempo – As suas filhas nasceram com a mesma deficiência?
Mari – Não. Na minha família, apenas eu sou cega.
Comtempo – Você estudou Fisioterapia. Porque escolheu esta profissão?
Mari – Já havia feito especialização de massoterapia e, sempre me interessei em me formar na área da saúde. No começo foi difícil, mas com o tempo, fui fazendo amizade e fomos estudando juntos. Os alunos me acolheram. A Carol (Ramos) e a Stefani (Ribeiro) me davam muito apoio. Como as provas eram oral, tinha que saber tudo na ponta da língua. Até pedi para o coordenador (Danilo Armbrust) do curso comprar uma peça anatômica para poder palpar, mas ele não concordou. Disse que ficaria muito caro por se tratar de material sintético.
Comtempo – Então como fazia para estudar o corpo humano?
Mari – A massoterapia me ajudou neste sentindo. Mas a Caral passou a fazer os músculos com fita de lã. A convivência com os alunos foi fundamental para esta adaptação e com os professores também. Alguns ajudaram e outros não, como a Maysa e o Leonardo. Este último, foi um excelente professor para os meus colegas, mas não para mim. Ele utilizava muita linguagem corporal. Por exemplo, ele explicava determinada matéria assim: “este músculo aqui só pode fazer este movimento’. Ele não pronunciava os nomes e eu ficava perdida na aula. Já a professora Camila me utilizava como modelo tanto nas aulas práticas como nas teóricas. Então, quando ela explicava determinado músculo ela o apalpava. Sabia do que se tratava.
Comtempo – Como você conseguia estudar para as matérias dos professores que não cooperavam?
Mari – Às minhas amigas passaram a sentar na frente e me diziam qual músculo os professores estavam explicando. Elas também passaram a gravar as aulas o que facilitou nosso grupo de estudo.
Comtempo – As universidades e os professores brasileiros estão preparados para a inclusão?
Mari – Eles precisam avançar muito. Infelizmente, existem poucos deficientes visuais que frequentam a universidades, porque os professores não estão preparados.
Comtempo – O que mudou na Mari depois da faculdade?
Mari – O estudo me ajudou muito a ser uma pessoa melhor. A oportunidade do conhecimento me abriu janelas em todos os sentidos. É difícil até responder esta pergunta (risos). Mas, posso dizer que aproveitei todos os momentos, criei fortes laços de amizades e voltei a sonhar.O estudo me ajudou a entender que sou capaz de qualquer coisa. Só é preciso determinação e força de vontade.
Antes, de fazer o curso de Fisioterapia, me especializei em massoterapia e foi outro processo de aprendizado. Mesmo enfrentando esta doença não vou desistir da minha maca.
Comtempo – Sofreu algum tipo de preconceito?
Mari – No primeiro semestre, uma professora (Maysa) me questionou o por que estava cursando Fisioterapia se não poderia enxergar, dando a entender que não poderia exercer a profissão. No momento, isso me deixou muito triste, senti vontade de chorar. Mas, estava acompanhada por uma moça que me disse: “Você irá superar tudo isso”. Fui a primeira aluna com deficiência visual da universidade. Então, era algo novo para todos, alunos e professores. Mas, ouvir de uma docente que eu não poderia exercer a profissão por ser cega, ainda no primeiro semestre, me deixou muito triste. Foi um balde de água fria. Mas, segui em frente com meu sonho. Acredito que nenhuma condição física possa obstruir o caminho dos que sonham e se dedicam. Isso vale para todos, independente de qual for sua limitação.
Comtempo – Pensou em desistir nesta trajetória?
Mari – Isso acabou me dando mais força para continuar a caminhar e fui me adaptando a cada obstáculo que iria surgindo. No final do ano passado, comecei a sentir paralisação no braço. Não sentia dor, mas meu braço ficava imóvel. O pessoal da faculdade insistiu para que eu fosse ao médico, mas não queria. Estava no penúltimo semestre e queria focar no estágio. Por insistência dos meus amigos e professores, fui ao médico e recebi o diagnóstico de que tinha um tumor no cérebro.
ComTempo – Prestes a se formar, como foi receber a notícia de que estava doente?
Mari – Estava crente de que iria me formar com as minhas amigas. Tinha muitos planos e veio esta notícia. Não esperava. Estava terminando meu estágio, finalizando uma etapa. Mas, agora, não teria que lutar apenas contra o preconceito, mas sim pela vida. Senti um verdadeiro mix de emoções, é difícil até mesmo descrever. Havia momentos de desânimo e questionamentos e, outros de confiança, perseverança. Mas, Deus manda força e cuida da gente. Fiquei muito tempo internada no Hospital Regional de Sorocaba, antes e depois da cirurgia. Antes, da biópsia fiquei quase um mês. Depois, tive, uma convulsão e fiquei mais um tempo. Esta convulsão me abalou. Fiquei abatida, mas me recuperei. Ao total, fiz 30 sessões de radioterapia e, agora, estou na quimioterapia.
Comtempo – Morando sozinha, quem te acompanhava no hospital?
Mari – Minhas amigas se uniram para me acompanhar. Elas fizeram uma escala e cada uma ficava um dia. Ao total, contei com a ajuda de 20 pessoas.
Comtempo – Sentiu medo da cirurgia?
Mari – A cirurgia era muito arriscada, poderia perder a fala e todos os movimentos e isto não aconteceu. Meu único pedido ao médico era que eu voltasse da cirurgia falando. Gosto muito de conversar e não falar me dava medo. Já não exergo, me resta então falar. Não gosto de chegar na casa de alguém e a televisão fica ligada. Gosto de um bom bate-papo. (risos)
Comtempo – Como está sendo o tratamento?
Mari – Conquistei grandes avanços e estou conseguindo me equilibrar. Estou esperançosa, comemorando as pequenas vitórias. Este processo não é fácil, tem dias que achamos que não vamos dar conta, mas tudo passa e o sentimento positivo volta.
Comtempo – E a faculdade? Pretende terminar o último semestre?
Mari – Não sei se conseguirei voltar porque acabei perdendo a minha bolsa. Gostaria de voltar, mas meu foco é cuidar da minha saúde e estar bem. Só assim poderei fazer o que quiser.
Comtempo – Nos conte um momento feliz?
Mari – O nascimento das minhas filhas Ingrid. Todos os momentos com elas são bons e o apoio destes últimos meses foi essencial para a minha recuperação.
Comtempo – E um triste?
Mari – Quando meu ex-namorado (Lucas) terminou comigo. (semblante triste). Namoramos por sete anos.
Comtempo – Qual sua opinião sobre a acessibilidade nas ruas?
Mari – Sempre fui muito ativa e andava a pé toda a cidade. O grande problema é a falta de planejamento, além da infraestrutura precária. Colocam postes sem planejamento nas calçadas. Era um desafio e tanto se locomover numa cidade como Sorocaba.
Comtempo – O término com o Lucas foi mais triste do que receber o diagnóstico de câncer?
Mari – Acredito que não foi o término em si. Mas, a falta de apoio dele. Ele até participou no começo do tratamento. Mas, na primeira oportunidade foi embora. Ainda estou na fase de superação. Infelizmente, gosto ainda gosto dele.
Comtempo – Vamos mudar de assunto, o que gosta de fazer?
Mari – Gosto de praticar atividade física, passear. Também gosto de comer, mas agora, estou fazendo dieta, por conta dos medicamentos acabei engordando. Mas, sempre gostei de andar de bicicleta e frequentar chácaras, uma confraternização.
Comtempo – Qual atividade você praticava?
Mari – Praticava dardo e corrida, representando Sorocaba nos Jogos Regionais. Não tive a oportunidade de participar do Estadual por conta da doença.
ComTempo – Você trabalhou como apresentadora do programa de televisão “Um outro olhar” na cidade de Votorantim. Como foi participar desse projeto?
Mari – Foram três anos de muito aprendizado, cujo foco era abordar a inclusão e deu muito certo. O convite foi inesperado e surgiu em um programa de televisão que participava como convidada. Lembro-me que apresentador disse, ao vivo, que iria ter um programa sobre inclusão. O piloto era eu e mais um moço que apresentava. Depois, houve um rodízio e outras pessoas tiveram oportunidades de apresentar.
Comtempo – Qual conselho você daria?
Mari – Aconselho que aproveite todas as oportunidades e não tenham preguiça diante do desafios.
Comtempo – Qual o seu sonho?
Mari – Andar como antes. Antes, era independente. Hoje, conto com uma cuidadora que auxilia. Mas, se locomover sozinha é a minha próxima meta.
Comtempo – O que dá sentido à sua vida?
Mari – Às minhas filhas, meus amigos e a minha recuperação.
Comtempo – Para você o que é que significa amizade?
Mari – A amizade é um sentimento poderoso e foi fundamental na minha vida, especialmente neste processo de recuperação. Ter amigos é tudo.
ComTempo – E superação?
Mari – Superar é viver cada dia, independente se temos alguma deficiência ou não. Superar é enfrentar um desafio por vez. Hoje, ainda não superei a doença, estou na batalha e no caminho da superação. Acredito que você terá que voltar para dar continuidade nesta história.
A ComTempo tem como principal objetivo, abordar temas que precisam de mais liberdade, atenção, aprofundamento e espaço para discussão na sociedade.