Tem que ter coragem. E fé

Gabriela Brack

“Tenho expediente pra tudo! Até nasci sozinha”

Já sentiu que precisava fazer algo, sem saber ao certo a razão? Uns chamam de inconsciente. Ou de voz interior. Eu chamo de intuição. E ela despertou em julho, numa noite, numa sala da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), de um encontro que eu nem fazia parte, de um partido que eu nem sou filiada, com pessoas que em sua maioria eu nem conhecia. Foi assim.

Era um encontro de mulheres, com objetivos já determinados em função das pautas de mulheres no partido. E eis que ela faz sua fala. Simples, curta, mas inspiradora. Mas a intuição só veio depois.

Algumas intermediações, a ligação que faz o pedido e o tema acolhido com aquela mesma fala mansa, mas firme. Alguns episódios instigantes, mas o momento chega. Enfim, ali, na mesa da cozinha (onde no final pude experimentar o acolhimento mineiro que em quase 5 meses não veio), os 81 aos de idade foram resumidos na mais valiosa vivência-lição da travessia: a luta.

O Persona apresenta Ana Maria Cardoso. Ou dona Ana. Mulher. De luta. Danada, como dizia sua mãe, Maria, nascida da Lei do Ventre Livre, filha de escrava.

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À mesa da cozinha, com a fala mansa e firme, dona Ana fala de luta e resistência. (Foto: Gabriela Brack)

 

A senhora é nascida em Uberlândia mesmo?

Dona Ana – Sou nascida em Dores do Indaiá, Sul de Minas. Fui criada só na roça. Com 9 anos fui para a casa de uns fazendeiros que eram meus “padrim”, e criei lá, assim… trabalhando. Disseram que iam só tomar conta de mim, mas eu fui tomar conta dos filhos deles, foi diferente.

E os pais da senhora? Seus irmãos?

Dona Ana – Meus pais sempre trabalharam na roça, tive 9 irmãos. Inclusive eu nasci sozinha! (risos). No dia do meu nascimento (14 de janeiro de 1938), só estava eu e minha mãe. O pai era carreiro de boi, tinha ido levar coisas na cidade pro fazendeiro. Naquele tempo era parteira, mas não tinha quem ir atrás dela. Foi durante o dia. O horário a gente nem sabe, porque não tinham nem relógio em casa. Mas minha mãe fala que poderia ser ali pelo meio-dia. E foi sozinha (confirmando com um sorriso). Acho que é por isso que sempre falo que tenho expediente pra tudo! Até nasci sozinha, então tem que se virar! (risos).

A senhora sempre viveu na roça?

Dona Ana Maria – Me casei com 17 anos. Conheci meu marido na roça. Os pais dele eram donos de lavoura de café, Avelino Antunes Cardoso. Vivemos 54 anos casados, criamos 15 filhos. Foi uma luta muito grande nas roças, 20 anos trabalhando em carvoaria, um peso muito grande, porque a carvoaria não é fácil. Até que chegamos a pegar uma terra da Reforma Agrária (no Assentamento Rio das Pedras).  Vivemos lá por 13 anos, meu marido faleceu quando vim embora para dentro da cidade, mas numa paixão grande (sorri), porque quem morou só na roça, né, para depois ficar na cidade, não é fácil. Sente muita falta. Mas mesmo assim eu vou pra lá, porque tenho uma filha que mora no assentamento (Fazenda Tangará). Fico uma semana, para descansar a cabeça… Aqui dentro de casa tenho 3 filhos homens ainda, um é casado, mas a esposa trabalha também. Tenho 81 anos, e tomo conta de tudo. Nas folgas da nora, às vezes ela dá uma faxinazinha, mas é raro. Eu mesma (risos)… Um dos meus filhos, que é neto, porque eu crio desde que a mãe foi embora, quando ele tinha 1 ano, me ajuda, lava a garagem, a cozinha… Coisas mais pesadas, que precisa esfregar, ele faz. Mas eu que faço tudo (risos).

 Meu marido era muito trabalhador, um homem bom. Muito sistemático, mas muito bom! Para os filhos foi uma perda muito grande, até hoje lembram. Era muito filho, mas fome ninguém passou. Se fosse preciso ele trabalhava dia e noite. No final da vida já tínhamos terra, produzimos bastante coisa… Tínhamos umas 30 vacas, muito porco, galinha, tudo. O pomar era uma coisa linda. Está lá até hoje. Troquei a terra por duas casas, só que não gostei do lugar. Teve a falta do marido e o meu filho, pai desse menino que crio, morava comigo e adoeceu com câncer. A vida estava muito difícil, não gostei do lugar, que era muito barulhento, e meu filho tinha essa casa aqui. Ela estava tão feia, mas preferi trocar. Não fosse isso, eu estava no assentamento até hoje. Tem gente que diz que não gosta, não vale a pena, mas pra quem trabalha, vale a pena! A casa da minha filha é a coisa mais linda: ela faz doce de tudo, tudo, tudo! Vende ovos, vendia frango, mas agora está proibido, proíbem tudo, né? Domingo fui na casa de uma amiga minha, e ela tem tudo na horta, a coisa mais linda! Volto sempre lá, vejo o que estão produzindo…

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Na casa aconchegante e humilde, relíquias são guardas por dona Ana, como seus retratos de família. (Foto: Gabriela Brack)

 

Encontramos a senhora através de sua participação no PSOL. Conte-nos sua trajetória no partido.

Dona Ana – Hoje em dia participo muito pouco, pela idade. Tenho artrose na coluna, e ataca também as pernas e os ombros. Quando saio, tenho a muleta em punho. Mas atuava muito no PSOL. Fui uma das primeiras pessoas a assinar na ata pelo lançamento do partido, em Brasília-DF. A Dra. Marilda, que era advogada e uma “cabeça” do partido, hoje não está no PSOL mais, me chamou para ser a madrinha do partido. Me esqueci dos nomes das pessoas, porque tem tanto tempo! (tentando se lembrar). Mas lá estavam os “cabeças”, e no momento de assinar a ata, fui a primeira mulher camponesa a fazer isso! Muitas outras pessoas assinaram, mas a primeira mulher do campo fui eu (risos). Me aproximei do PSOL por essa advogada, mas principalmente porque estava sempre envolvida na política. Era muito ativa junto ao PT, porque tínhamos o Gilmar Machado, que já foi deputado e também prefeito de Uberlândia; e principalmente por conta da Pastoral da Terra, Criança, Operária… Sempre trabalhei com a igreja. Mas quando surgiu o PSOL, recebi o convite e fiz parte. O importante é que seja de esquerda. Porque a “direitona”… para o pobre não adianta (com um sorriso desconfiado). Já fui convidada a me candidatar tanto pelo PT como pelo PSOL, mas rejeitei. E ainda tive um amigo na direita, que também me convidou. Quando chegava perto dessas pessoas, é como se eu não existisse. A direita tinha interesse em mim por eu ter muito conhecimento com o povo da minha área. Muitos políticos de Goiânia, por exemplo, amigos, faziam questão de me visitar na roça. A Jorgetânia (Ferreira, também integrante do PSOL), conheço desde quando era casada, o ex-marido dela era muito meu amigo… Em encontros de movimento e do partido, todos os jovens vinham nos abraçar. Antes eu gostava de falar que minha cabeça era um computador, guardava tudo! Agora fiquei danada para esquecer os nomes das pessoas (risos).

E como a senhora enxerga a atuação do PSOL?

Dona Ana – Quase ninguém falava do PSOL. Era mais nossa turminha dos “sem-terra”, como as pessoas chamam, os assentados. Mas aqui e para fora, então… O PSOL cresceu muito! Aquela menina, Marielle (Franco), tinha uma força danada… Não a conheci, somente vi pela TV, revista, mas só de vê-la, já tinha um carinho pela luta dela. Esses outros partidos, principalmente da direita, têm ciúmes que o PSOL está crescendo. Mas com ciúmes, sem ciúmes, não vai deixar de crescer! O PSOL é o partido que está junto com o povo da roça, do campo, das pessoas “sem-teto”… Precisamos de um partido popular, que veja a dor do pobre. Os outros ficam lá, de boa, naqueles gabinetes, e não veem o que quem está na pobreza passa. E agora que entrou esse Bolsonaro ainda… Por isso temos que ir à luta! Lutar para que quando esse homem sair de lá, volte uma esquerda, ou então será difícil. E para o povo do mato, mais difícil ainda. Trabalhamos, mas na hora de vender a produção, somos barrados. Nunca tem uma cooperativa que dê a certificação, por exemplo… A Prefeitura não ajuda, e as pessoas do campo não dão conta de manter isso sozinhas. E tudo o que vão vender são barrados. Quem vende verdura de folhas, consegue, mas nesse tempo é difícil demais! Tem que ter liberdade de vender tudo o que produz na roça! Isso mexe com os latifundiários. E não deixam o pobre vender de jeito nenhum. Tudo é muito renegado. Eles conseguem pagar tudo quanto é registro. E nós? É produzir para deixar apodrecer. Há muitos assentamentos em Uberlândia, que eram do movimento, então, tem demais! Mas o movimento parou, porque com a política que temos agora, nem adianta fazer ocupação. Todos estão sendo muito judiados. As nossas ocupações era mais pacíficas (risos).

A senhora participou de muitas ocupações?

Dona Ana – Não sei nem falar quantas! Cheguei a ter revólver na minha cabeça. Minha colega Dulce estava comigo. Ela foi se afastando devagar, saindo… Mas eu, sei lá! Deus nos dava uma coragem, que eu não saí do lugar não! O rapaz estava bêbado, era filho de fazendeiro, dono da fazenda que tínhamos ocupado, e eu só disse pra ele, “eu nasci uma vez só, e vou morrer uma vez só também, do mesmo jeito que você. E às vezes você acha que eu morro aqui, e quem morre primeiro é você”. Nós fazíamos uma “portaria” nas ocupações, quando ele chegou com os jagunços, e as polícias ficaram lá em cima. Já chegou dizendo “quem é a tal da dona Ana ladrona de terra?”, porque já sabia que eu era liderança. E eu disse “Ana sou eu, mas não sou ladrona, fizemos ocupação porque essa terra está improdutiva”. E ele disse, “pois é, e se a senhora não ocupar terra mais?”. Aí o Jorge, um amigo que estava com a carabina atrás da moita, falou pra ele olhar o que estava mirando. Os caras que estavam com ele o agarraram e saíram arrastando. A polícia veio depois, mas se fosse pra ele atirar, teria atirado com ou sem polícia. A gente sabia que eles só queriam assustar. Mas tem que ter coragem. Não tinha medo quando aparecia polícia nas ocupações… Já fui processada muitas vezes. Já debati demais com Breno Lins, agora juiz, mas na época era promotor. Ele não gostava nem da minha sombra. Depois que me afastei do movimento, não vejo mais essas pessoas, até durmo melhor (risos).

 

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Um olhar gentil, que também guarda muito orgulho da luta travada. (Foto: Gabriela Brack)

 

Como a senhora passou a fazer parte dessa luta por moradia?

Dona Ana – Minha luta começou em Belo Horizonte, num bairro que hoje é uma parte do Jardim América. Meu pai vendeu tudo o que tinha em Dores do Indaiá, e foi comprar um lote em Belo Horizonte. Como era roceiro e não conhecia nada, deu dinheiro a um tio meu, que era casado com uma irmã da minha mãe. Esse tio pagou a primeira prestação e gastou o resto do dinheiro. Eu era casada, só tinha dois filhos na época, fui morar com eles, e passou 2 meses recebemos uma carta de despejo para sair do lote. Meu pai ficou sem entender… Mas eu toda vida fui mais viva. Falei “pai, o tio Afonso é capaz que comprou esse trem a prestação e gastou o dinheiro”. Chamei uma prima minha e fomos procurar a imobiliária. Vimos que só tinha sido paga uma prestação, e tínhamos que pagar todas as vencidas, senão seríamos despejados. Meu tio deu toda a desculpa, não pagou e veio o despejo outra vez. Meu pai não tinha mais dinheiro. Minha prima e eu ouvimos falar que estavam ocupando lá no Jardim América, fizemos nosso barraco com uns pedaços de lona, e nos mudamos. Essa ocupação me deu tanta dor de cabeça… Porque nesse tempo tinha a polícia da cavalaria, eles passavam à tarde ou à noite e arrancavam os barracos todos. Não tinham piedade. Um dos companheiros quis reagir e foi amarrado no rabo do cavalo e arrastado. Eu falei “não podemos mais deixar isso acontecer”. Essa foi minha primeira luta porque a gente viu o sofrimento. Falei com o povo que tínhamos que reagir, não deixar a cavalaria arrancar mais os barracos. A cavalaria vinha lá da Nova Granada, e conseguíamos vê-la descer de longe. Eu disse “quando eles estiverem vindo, os homens vão se esconder, quem eles querem machucar, e a gente vai pegar as crianças e ficar na linha de frente”. No dia que eles apareceram, eu peguei a Suelena, que era neném de braço, e fui pra frente. Ela tem uma história, por isso é da luta (risos). Minha prima pegou um dos filhos dela, as outras mulheres foram, e quando a cavalaria chegou, um dos capitães queria passar. Eu falei “passa, senhor. Vai matar um tanto de criança aqui e quantos anos vai pegar de cadeia? Porque nós não temos pra onde ir, e vamos ficar aqui”. Ele abaixou a cabeça, pensou, eu falei “nós não temos pra onde ir, não adianta vocês fazerem isso toda vez que vem cá”. Ele pensou, pensou, virou o cavalo e gritou com eles. Recuaram. Hoje minha família mora quase toda nesse lugar, onde é o assentamento do Jardim América. E a Suelena é a relíquia (risos).

Recado para as mulheres de luta

Dona Ana – O lembrete que deixo é inspirado na fala de uma menina de 15 anos do Assentamento 7 Irmãos (lembrando do dia do encontro na UFU): minha luta não foi fácil, foi grande, e até hoje tenho orgulho do que fiz. Digo principalmente para a mulher do campo. Primeiro a fé em Deus, e depois muita coragem. Como disse no encontro, primeiro fé em Deus, depois dá um nó na saia e segue em frente que a mulher chega lá. E eu cheguei. Fé em Deus e coragem. Dá um nó na saia e vai. Como aquela menina que eu vi falando no encontro. Um dia ela será Ana Cardoso. Se for preciso eu vou de novo, mas me aposentei (risos). Deus nos dá um dom pra tudo. E isso é muito bom, porque você deixa um rastro!

Muitas pessoas, quando chego no assentamento, me dizem “foi por essa mulher que consegui essa terra”. Muitos têm vaca, porco, plantação e não estão arrependidos de ter saído da cidade e ido pra lá. Pra mim é uma satisfação. O que eu tenho está bom demais, não precisa mais não! Comecei nova, pela grande precisão de não ver meu pai e minha mãe na rua. Toda a vida na roça, plantava, colhia, e foram pra cidade, mas quase que vai é pra rua todo mundo. Se não fosse eu e minha prima… Minha mãe falava que a gente era danada! (risos). Minha prima já faleceu, se chamava Conceição, e nós duas que enfrentávamos tudo. Companheira de luta. Muito danada também, como dizia minha mãe.

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