Antes de prosseguir, recordemos: comecei essa conversa comparando a situação de imigrantes vindos de países pobres e a de pessoas com deficiência, ambos grupos marginalizados e alvos de preconceito – preconceito esse que se expressa e se impõe de modo semelhante num e noutro caso. Falei também que no caso contrário, ou seja, no caso de imigrantes vindos de países ricos e de pessoas sem deficiência, o mesmo não acontece, pelo menos não com a mesma intensidade. Por fim, considerando o 30º aniversário da Lei de Cotas (a saber: o disposto no Art. 93 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991), decidi falar sobre a (falta de) inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.
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Agora que podemos continuar, continuemos: o processo de inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho (e nas demais esferas da vida pública) vem evoluindo nos últimos 30 anos, não só em função das normas impostas em forma de lei, mas também (quiçá principalmente) em função de uma maior conscientização dos empregadores, das próprias pessoas com deficiência e da sociedade como um todo em relação aos benefícios que a inclusão nos traz. Espaços e relações acessíveis e acolhedoras, sensíveis às diferenças, geram mais empregos, que geram mais consumo, que geram mais emprego, que geram mais consumo, que… vocês entenderam.
Embora ainda sejam muitos (milhões, inclusive) os que pensam na deficiência como necessariamente incapacitante e, por isso, acabam agindo de forma capacitista (determinando, ainda que simbolicamente, o que podemos ou não fazer, os espaços em que é ou não nos permitido estar e assim por diante), a mobilização social e política das últimas décadas tem feito isso mudar. Se há 40 ou 50 anos era natural(izado) que pessoas com deficiência ficassem escondidas em casa ou em hospitais; se não se concebia a possibilidade de uma pessoa com deficiência ser capaz, capacitada e produtiva; etc, hoje já não é mais assim. E não é mais assim porque Estado e sociedade nos vêm prestando favores ao criar normas e formas de nos incluir; não é mais assim porque nós, pessoas com deficiência, fomos, vamos e iremos atrás daquilo que é nosso por direito – sermos tratados com dignidade e respeito.
Além disso, com o advento da internet e o surgimento das redes sociais, militar (falar sobre a importância e necessidade da inclusão em seus mais diversos âmbitos e aspectos) tem ficado cada vez mais fácil, assim como cancelar (por meio de denúncia ou boicote) quem está descumprindo a Lei de Cotas, ou excluindo pessoas com deficiência de outra forma. É verdade que as informações hoje em dia caminham a passos largos enquanto militância e cancelamentos avançam a passos lerdos, e que é preciso (mais do que nunca) exercitar o senso crítico e o discernimento, mas o importante nisso tudo é que estamos indo em frente em detrimento daqueles que querem e propagam o retrocesso.
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Existem ainda alguns pontos que preciso frisar antes de concluir nossa conversa de vez. Primeiro, pessoas com deficiência que ganham, sozinhas, seu próprio dinheiro através do acesso ao emprego tendem a fortalecer sua autoestima e impulsionar sua autonomia; segundo, adaptações (sejam elas espaciais ou ferramentais) não são necessariamente caras e inviáveis, especialmente no caso de grandes empresas, cujas limitações orçamentárias tendem a não ser um elemento impeditivo; terceiro, a presença de pessoas com deficiência nos espaços (seja no ambiente de trabalho, na escola, na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê…) hoje faz com que as gerações futuras lidem melhor com as diferenças que existem entre nós, de modo tal que talvez nem precisemos mais de cotas no mercado de trabalho daqui alguns anos.
É por isso e para isso que ações afirmativas (como é o caso da Lei de Cotas) existem: por conta da existência de uma desigualdade e para pôr fim à ela. Ocorre, no entanto, que elas vêm sendo usadas no Brasil para obtenção/manutenção de voto – por isso não são devidamente fiscalizadas; por isso quase não há punições quando são descumpridas; e por isso temos que estar atentos (e fortes) para rompermos com esse ciclo. Ações afirmativas não deveriam ser utilizadas ad aeternum; antes, elas devem nos possibilitar andar com as próprias pernas (e cadeiras, e bengalas, e implantes cocleares…), mas eu duvido que vocês já tenham se dado conta disso.
Mestre em Ciência Política pela UnB, consultora em acessibilidade e digital insistencer (porque só na base da insistência é que se muda alguma coisa).