Laísa Cardoso
De certa forma, ter uma deficiência é como ser imigrante num país xenófobo. Nossa presença consegue causar incômodo e ser necessária ao mesmo tempo. No caso dos imigrantes, incômoda porque destoa daquilo que é tido como regra (o idioma, os costumes e o tom de pele); necessária porque cabe aos estrangeiros exercer funções que os nativos se acham bons demais para exercer. No nosso caso, porque a necessidade de inclusão empaca na barreira do capacitismo.
Não importa se você vem de um país rico, de um país pobre ou se carrega consigo qualificações variadas na bagagem – passadas e dobradas, prontas para serem usadas. Se seu destino é um país onde os imigrantes não são bem-vindos, suas chances de ter acesso à saúde, educação e renda em pé de igualdade com os nascidos naquele lugar são muito pequenas. O caso das pessoas não é diferente: independentemente de nossa condição médica resultar em lesões/impedimentos leves ou graves, ou de sermos extremamente capazes (por conta da deficiência) e capacitados (por conta do nível de qualificação), nossas possibilidades de inserção e ascensão sociais também são menores.
O contrário, no entanto, (quase) nunca acontece. Se por acaso o imigrante que chega vem de um país rico e/ou é alguém que não tem algum tipo de deficiência, capazes e capacitadas ou não, essas pessoas têm mais chances de serem incluídas e de ascender socialmente. (Se vocês pararem pra dar aquela googlada nas estatísticas relativas à inclusão/ascensão de imigrantes vindos de países pobres e de pessoas com deficiência e compará-las com as referentes a imigrantes vindos de países ricos e de pessoas sem deficiência, ou se simplesmente prestar mais atenção nos papéis sociais que cada um interpreta (e em como é tratado em função disso), vai perceber que as pessoas do primeiro grupo quase sempre têm menor escolaridade, mais dificuldades de obter tratamento médico quando necessário e menos dinheiro para se sustentar.)
Para nós, hoje, interessa tratar do segundo caso – do das pessoas com deficiência. Primeiro, porque não disponho de dados suficientes para fazer comparações e análises mais aprofundadas; segundo, porque, como sabem, se tem uma coisa que gosto de fazer, essa coisa é puxar a sardinha para o meu próprio lado, ou seja, da deficiência; terceiro, porque tenho um bom motivo, mas para conhecê-lo vocês vão ter que continuar lendo.
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Acabemos, pois, de vez com esse mistério. Já que estamos no ano em que a chamada Lei de Cotas (a saber: o disposto no Art. 93 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991) completa 30 anos, falaremos sobre a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Na verdade, falaremos sobre a falta dela. Em resumo, o referido normativo estabelece que “a empresa com 100 ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% a 5% dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas.” Aqui, eu não vou entrar no mérito do quão justos esses critérios são (porque tenho limitação de espaço e porque falamos disso em Privilégios: os nossos, os seus e os meus) – somente no de serem ou não efetivos, tema da minha dissertação de mestrado (“Pessoas com deficiência e inclusão no mercado de trabalho: um estudo sobre lei de cotas, conflitos e cont(r)atos”, de 2016), entre outras tantas fontes que podem ser consultadas e questionar acerca do tema.
Considerando que até então não havia nada (além da caridade e do paternalismo) que obrigasse os empresários a contratar pessoas com deficiência, a promulgação dessa lei foi, sim, um passo muito importante nessa nossa briga por igualdade de direitos e oportunidades. Entretanto, 30 anos depois, menos de 1% das pessoas com deficiência em idade de trabalhar (pouco mais de 400 mil pessoas, até antes de começar a pandemia) encontra-se formalmente empregada e as razões para isso vão desde a “opção” pela contratação de beneficiários reabilitados, que (em tese) não demandam do empregador modificações no espaço e nas relações de trabalho (que seriam necessariamente dispendiosas e/ou inviáveis, de acordo com o empregador), passando pela oferta de vagas subalternas “exclusivas para pessoas com deficiência”, chegando mesmo ao ponto de se optar pelo pagamento da multa prevista no dispositivo a cumprir a cota – isso tudo sem falar na crença de que pessoas com deficiência não são suficientemente capazes ou capacitadas para exercerem determinadas funções.
De fato, ainda são raros casos em que os processos de recrutamento e seleção são verdadeiramente inclusivos, quase tão raros quanto os casos em que essa inclusão existe para além da contratação. E embora sejam poucas as garantias legais que temos para além das cotas, como a Lei nª 14.020, de 06 de julho de 2020, que diz em seu Art. 17 que “a dispensa sem justa causa do empregado pessoa com deficiência será vedada”, e o próprio Estatuto da Pessoa com Deficiência, que trata especificamente do direito ao trabalho em seus Arts. 34 e 35, ainda podemos estimular a mobilização popular e contar com a militância.
Como comentamos (e comentaremos) diversas vezes: mudanças não acontecem do dia pra noite e em se tratando desse tema específico há que se avançar muito mais jurídica e socialmente. Em outras palavras, há que se pensar mais e melhor nas causas e efeitos relativos ao acesso das pessoas com deficiência ao emprego, mas deixo esse aspecto da discussão para um segundo momento – mais especificamente, para a conversa que teremos nessa segunda parte desse texto.
Stranger Beings: o estranho nosso de cada dia
Laísa Cardoso
Mestre em Ciência Política pela UnB, consultora em acessibilidade e digital insistencer (porque só na base da insistência é que se muda alguma coisa).
Olá Revista com tempo adorei o seu conteúdo!!!eu tenho mais de 350 atividades lúdicas objetivas e autoexplicativas.
Aos Interessados
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