Como são as manifestações culturais pelo Brasil e como grupos fazem para manter a tradição viva nos seus estados.
Aline Antunes, Kimberly Souza, Lívia Régis e Tiago Rodrigues
As festas típicas no Brasil reúnem o que há de mais especial em nossa identidade: a união da população, a representatividade de cada cultura e a resistência para manter cada uma das iniciativas de pé, apesar de todos os impasses do passado, presente e futuro.
Essas manifestações culturais e coletivas são caracterizadas pela presença marcante das tradições regionais, rituais religiosos, comidas, músicas, danças e roupas típicas. Tudo é feito de forma coletiva e, quando necessário, passa por adaptações para continuar sendo o momento mais esperado do seu povo.
Com a pandemia da Covid-19, as festas típicas brasileiras sofreram severos impactos. Inicialmente, com o cancelamento dos eventos que, como o próprio nome diz, visam unir a população local. Com o tempo, novos formatos foram adotados para manter as iniciativas ativas, como a realização de eventos online, transmissões ao vivo, campanhas solidárias e propostas drive-thru. Tudo para envolver todas as pessoas em uma atmosfera única, mesmo que à distância.
Para matar a saudade e reforçar a importância da manutenção cultural no Brasil, contamos as histórias e as realidades de algumas das festas mais características do nosso povo.
Suraras do Tapajós: o primeiro grupo de carimbó de mulheres indígenas do Brasil
“A gente leva nossa luta através da música, a gente leva nossa voz e isso ecoa muito além dos nossos territórios”. Essas são palavras da Luiara Borari, mulher indígena que faz parte do grupo de carimbó Suraras, fundado na região do Tapajós, mais precisamente na Vila de Alter do Chão, em Santarém, Oeste do Pará. O grupo é o primeiro composto somente por mulheres indígenas no país. Ele carrega a representatividade do povo da região, é visto como inspiração para tantos outros e atua contra o preconceito e qualquer estereotipo criado em cima da luta indígena feminina.
Surara significa guerreiro ou guerreira na língua indígena Nhengatu. A própria denominação já fala por si só, visto que esses povos sofrem desde a chegada do branco no Brasil e sempre buscaram resistir. Um passado marcado por tanto sangue dos parentes derramado, agora tem sido escrito com uma boa dose de carimbó. Não que a batalha tenha se tornado mais fácil, afinal, nós podemos acompanhar várias formas de retrocesso contra os povos originários, mas agora essa representatividade pode ser pregada através da música. As Suraras não se resumem apenas a uma banda de carimbó, elas formam uma associação criada em 2016 por mulheres de várias etnias do baixo Tapajós, onde habitam 14 povos indígenas: Apiaká, Arapiun, Arara Vermelha, Borari, KaraPreta, Jaraki, Kumaruara, Munduruku, Maytapú, Tapajó, Tapuia, Tupinambá, Sateré-Mawé e Tupaiú. A associação organiza rodas de conversas, oficinas onde trocam saberes ancestrais, promovem ações dentro da causa indígena e tem se desenvolvido de forma orgânica. O coletivo é exemplo para mulheres e outros movimentos sociais que se articulam na causa.
O grupo musical foi fundado em abril de 2018 e, desde então, tem sido uma ferramenta para alcançar espaços através das letras compostas que pregam o empoderamento feminino indígena com muitos elementos culturais da região. Atualmente, a banda é formada por Adelina Borari (maraqueira), Estefane Galvão (banjista), Luiara Borari (curimbeira), Carol Arara (voz principal). Elas fazem parte do movimento de carimbó que antes era composto somente por homens. As mulheres que eram inseridas somente na dança, hoje tocam instrumentos, cantam e compõem letras. As composições reforçam o empoderamento feminino indígena, a cultura regional estabelecida por elas através do contato com a natureza e os saberes regionais. “Temos o cuidado de selecionar músicas que exaltam a natureza, a força feminina e nossa ancestralidade. Com muito ritmo, dança e batuque, nosso objetivo é colocar a figura feminina em evidência e mostrar que podemos ocupar todos os espaços”, relata o grupo em uma postagem nas redes sociais.
Em 2019, as Suraras se apresentaram no Acampamento Terra Livre (ATL) que é realizado em Brasília e é o maior encontro de articulação dos povos indígenas do Brasil, onde representaram o povo do Tapajós. Outra participação do grupo foi no festival de GRLS, em São Paulo, ao lado de Gaby Amarantos, em 2020. Essa foi uma das últimas apresentações presenciais antes da pandemia, depois elas passaram a promover lives no Instagram @surarasdotapajos onde acumulam mais de 13 mil seguidores. As Suraras lançaram seu primeiro EP no Spotify e Deezer também em 2020, que contém as músicas como “Guerreira Surara” e “Filha da Encantaria”, que foram gravadas com a produtora independente Selo Alter do Chão. O nome do álbum é Kiribasáwa Yúri Yí-Itá e significa ‘A Força Que Vem das Águas’ em Nhengatu. O grupo também lançou o primeiro videoclipe “Suraras na Beira do Rio”, gravado de forma profissional e disponível no Youtube.
As Suraras, tanto como coletivo quanto como grupo musical, revelam a importância da representatividade da luta indígena, sobretudo, a feminina. A força que vem das águas, na verdade vem dessas mulheres que empoderam outras mulheres, inspiram e buscam cada vez mais ganhar espaço na sociedade. Essas guerreiras que travam uma luta atual, mas que possui uma bagagem histórica e representam tantas mulheres indígenas sem acesso a direitos e ao respeito que mereciam, devem ter mais reconhecimento. Num país onde a democracia está por um fio, ser mulher já é uma luta. Agora ser mulher e indígena, é a maior prova de resistência.
Carimbó: patrimônio cultural dos povos originários na Amazônia
Unindo elementos indígenas e africanos, o carimbó é uma manifestação étnico-cultural que representa os povos da Amazônia através da hibridização entre vivências ancestrais e narrativas tradicionais, compostas por sons, danças, vestimentas e crenças repassadas por gerações através da oralidade.
O termo “carimbó” faz referência direta a um de seus principais instrumentos musicais, o tambor chamado curimbó, de origem tupi, onde curi significa madeira e mbó significa escavado. Este instrumento é formado por madeira perfurada, complementado com couro ressecado de boi em uma de suas extremidades, que permite a produção de sons através de batuques com as mãos ou pedaços de madeira.
Assim como em qualquer gênero musical, o carimbó pau e corda tocado pelo grupo Suraras do Tapajós dispõe de uma variedade de instrumentos característicos desse ritmo, além do curimbó.
A pesquisadora Bruna Fuscaldo (2014) descreve minuciosamente alguns passos que compõem as apresentações musicais, desde o momento que o tocador do instrumento se senta sobre o curimbó e, com as mãos, bate o tambor com a marcação rítmica característica desta manifestação. Além do curimbó, outros instrumentos como rabeca, violão, cavaquinho, banjo, flauta, clarineta, saxofone (sopro), pandeiro, maracas, matracas e caxixi podem fazer parte da apresentação.
Desta forma, é possível perceber que as manifestações culturais tradicionais da Amazônia fazem parte desse processo, onde é explícita a falta de visibilidade, inclusão e reconhecimento, principalmente em comparação ao Sul e Sudeste do país, onde estão localizados os grandes centros e o foco para a produção de eventos de incentivo à cultura. Falando sobre eventos culturais, as rodas de carimbó fazem parte da propagação tradicional desta manifestação e são caracterizadas pelo seu dinamismo entre dança, canto e expressões livres a partir da interpretação de cada pessoa.
Esta dança, quando é apresentada por grupos como os parafrodrolclóricos ou por grupos de carimbó institucionalizados possui coreografias exatas e vestimentas específicas. Já nas rodas de carimbó de raiz, normalmente quem dança é o público presente, não havendo, neste caso, vestimenta ou coreografias específicas, embora o uso da saia seja algo usual, assim como o passo básico, que evidencia o cortejo dos homens e um jogo de sensualidade das mulheres. Conforme os tocadores vão marcando o ritmo com os instrumentos, o cantador canta os versos principais, que depois serão repetidos por todos os presentes. É conhecido como cantador de carimbó o cantor principal, que puxa os versos e refrãos. O tirador de carimbó é aquele que inicia o canto. Quem toca o tambor é batedor de carimbó e os dançarinos, dançadores de carimbó (FUSCALDO, 2014, p. 4). Semelhante a outras manifestações culturais que surgiram a partir das raízes dos povos originários, o carimbó é símbolo de resistência e luta pela valorização do povo e de suas vozes através da arte e deve ser fomentado de dentro pra fora, ou seja, a partir das pessoas desta região, para as os admiradores de fora, por meio do incentivo e comparecimento em eventos culturais, da inserção destas narrativas tradicionais da cultura amazônica, em espaços de ensino e também na produção de materiais de divulgação através das redes sociais, onde fica cada vez mais fácil compartilhar e difundir informações. Fuscaldo (2014) pontua que: “Reconhecer, afirmar, valorizar e estimular a produção do carimbó é fortalecer as comunidades tradicionais amazônicas, o amazônida, o paraense”.
Rosa Linda: a quadrilha nordestina mais antiga de Pernambuco
No Nordeste, a grande festa da cultura é a de São João, como é popularmente chamada a festa junina. Com o passar dos anos, ela ganhou novos traços e ficou cada vez mais com as características do povo nordestino. A celebração para comemorar uma tradição religiosa ganhou novas cores, sabores e significados. Regada com muita dança, comidas típicas e brincadeiras, as noites de junho são esquentadas pelas tradicionais fogueiras, que também mantêm a chama da cultura cada vez mais acesa. A fogueira tem origem bíblica e segundo esse livro sagrado: a mãe de São João teria acendido uma fogueira para avisar à Maria, mãe de Cristo, sobre seu nascimento e até hoje essa tem sido uma festa que fala sobre celebração.
E foi com o intuito de celebrar a vida que surgiu a quadrilha nordestina Rosa Linda, que segundo a direção, é o grupo mais antigo em atividade em Pernambuco. “A Quadrilha Rosa Linda foi fundada em 1976 por Elvira do Nascimento Gusmão, em seu aniversário naquele ano. Para comemorar, fez uma quadrilha improvisada com familiares e vizinhos. Nos anos que seguiram, a história se repetiu e foi crescendo, envolvendo as ruas vizinhas, pessoas foram sendo convidadas, em poucos anos já fazia apresentações, animando outras comunidades, no formato tradicional, ao som de sanfona, triângulo e zabumba. Uma brincadeira que se transformou em patrimônio para nossa cultura”, conta a vice-diretora do grupo, Valquíria Gusmão.
A quadrilha junina é um estilo de dança folclórica coletiva e é ainda mais popular no Nordeste, onde acontecem as grandes apresentações todos os anos no mês de junho. Dançada em pares, as apresentações trazem alguns passos bem tradicionais, como o casamento, pois a dança representa a realização de um matrimônio, homenageando o santo casamenteiro, Santo Antônio, com seu dia também comemorado em junho. Com roupas e adereços caipiras, essa é uma grande celebração. “O ciclo junino carrega toda tradição de um povo, suas comidas, as cores, o calor da fogueira, é nossa festa, junto com a Rosa Linda, se transforma no melhor período do ano, tem um significado importante, é a concretização de mais uma página da história da Rosa Linda e de nossas histórias pessoais, é como oxigenar a alma”, exalta Valquíria.
Todas as apresentações são feitas para um número muito grande de pessoas e existem até festivais para escolher os melhores grupos, mas para chegar até essas exposições existe toda uma preparação que dura meses, como é o caso da Rosa Linda. “Nossa diretoria pensa o São João o ano inteiro, montamos nosso projeto em novembro em várias reuniões, tema, figurino, trilha sonora e atividades para captar recursos. A execução das atividades sempre tem a participação da sociedade, nosso espetáculo é o resultado de muito esforço e dedicação da comunidade. A produção é feita por mão de obra interna, membros da própria brincadeira vão dando sua contribuição conforme suas habilidades, o estímulo e valorização da produção interna garante manter um grupo unido e estimulado”.
“Os ensaios inicialmente eram na sede da quadrilha, um local simples, localizado no Alto da Bela Vista, em Paudalho, no interior de Pernambuco. Anteriormente, erguido pela comunidade, usando bambu, carnaúba e palhas de coqueiro, com o passar dos anos foi feito um espaço de alvenaria, ainda simples. Contudo, a quadrilha tomou um porte com maior número de dançarinos e o local ficou pequeno, então os ensaios passaram a ser agendados em espaços públicos, como quadras e o salão de festas da cidade. Temos uma escassez de espaços públicos para fazer nossos ensaios, contudo buscamos nos adaptar aos dias e horários disponíveis em outros espaços”, revela a organização da Rosa Linda.
Para os nordestinos, o mês de junho é sinônimo de história, cultura e amor de um povo que se une para fazer uma grande festa acontecer. “A Rosa Linda mobiliza muita gente, por ser referência na cidade, por ser um grupo forte e organizado. Nunca nos surpreendeu tal mobilização, trabalhamos para manter esse vínculo: Rosa linda e população. Temos o papel de manter a manifestação de uma forma mais tradicional, sem perder a essência, e acreditamos que neste fato está a diferença em nosso trabalho. A satisfação e o prazer em mostrar o resultado não têm definição. São meses debruçados na produção de figurinos, adereços e ver o vibrar, os aplausos e elogios transformam todas as noites sem dormir em puro prazer. O objetivo de tudo é essa entrega, oferecer à população um trabalho à altura do que a cultura e a quadrilha merecem”, completa Valquíria Gusmão.
A festa de São João é um dos eventos mais aguardados pelos nordestinos todos os anos, mas toda essa animação precisou ser um pouco contida devido a pandemia do coronavírus. Além de fazer falta para a população, os grupos juninos sentem muito e precisaram traçar estratégias. “São dois anos bem difíceis, a sensação de vazio tomou conta de nossos corações. Contudo, criamos mecanismos para não ficar desconectados dos amantes da cultura, através das redes sociais, promovemos lives e esse ano fizemos uma campanha de arrecadação de alimentos para famílias que, com a pandemia, estão passando por um momento difícil”, desabafa Valquíria.
“Essa foi a forma que encontramos para comemorar os 45 anos da quadrilha, podendo assim unir a comunidade e dançarinos em prol das pessoas, o carinho dispensado à Rosa Linda, mantendo a essência da manifestação junina, agregar e, assim, trazer um pouco de alegria para as famílias que receberam a ajuda. Assim seguimos, promovendo ações de forma virtual. Para abrilhantar essa comemoração, tivemos o lançamento de um documentário que conta um pouco sobre a história da quadrilha, que está disponível no YouTube, “Com Chita e Paetê se faz História”. Oferecemos à população esse registro, um presente nesses tempos de novo normal, um presente não só pra essa, mas para as gerações futuras”, revela.
Quermesse: o banquete em celebração à boa colheita na roça
As famosas quermesses estão diretamente ligadas ao catolicismo e à chegada dos portugueses ao Brasil quando, no mês de junho, são rezados terços em família e levantados mastros para Santo Antônio, São João e São Pedro.
A partir do século XX, a festa foi ganhando novos contornos e sendo celebrada nas zonas rurais, não só como a manutenção daquela identidade católica, mas também como um ritual conjunto em que se preparavam quitutes à base dos vegetais que eram colhidos na lavoura.
“O que é colhido nesse período do ano, como milho e a mandioca, proveniente da herança indígena, dá origem a pratos como biscoito de polvilho, bolo de fubá e milho, canjica”, conceitua a historiadora Nainôra Freitas, citando os doces à base de laranja, mamão, coco, leite, abóbora, batata-doce e amendoim como parte desse universo.
Aliado à religião e à culinária, as quermesses foram chegando aos centros urbanos, se transformando nessas grandes festas que são vistas, em especial, no interior de São Paulo. Diferente da tradição, esses eventos possuem cunho social para apoiar igrejas, ONG’s e causas locais. Além disso, trazem outros tipos de comida, como o cachorro quente e o pastel, para oferecer um cardápio mais amplo à população participante.
Nainôra reforça uma perspectiva problemática com a vinda das festas rurais aos centros urbanos: o estereótipo do caipira. “Os moradores das zonas rurais vestiam sua melhor roupa de domingo para ir às festas: a saia de chita com remendos, porque era a única que tinha; a calça-curta que encolheu durante a lavagem. Se tinha sardas, é porque naquela época não tinha protetor solar. O dente tinha cárie porque não tinha acesso ao dentista”.
Olha o Arraial de Belo Horizonte!? É Verdade!
A clássica, a aclamada e tradicional festa junina da capital de Minas Gerais, o Arraial de Belo Horizonte, criado em 1979, ocorreu pela primeira vez neste ano em formato online devido a pandemia de Covid-19
Entre 19 e 29 de agosto, a edição de 2021 trouxe o Concurso de Figurinos Juninos, série de lives Prosas Juninas, com nomes relevantes da cultura junina do Brasil e a Gastronomia Junina, com chefs renomados de BH.
Na escolha do melhor figurino, foram 35 quadrilhas juninas, todas de Belo Horizonte, divididas entre o grupo Especial, com 13 equipes, e no de Acesso, com 22. No dia 29 de agosto, foi revelado o vencedor: na categoria especial, Arraiá do Formigueiro Quente, recebendo o prêmio de R$ 7 mil. Já na de Acesso, o prêmio de R$ 6 mil ficou com a Quadrilha Arraiá da Vaca Loka.
De casa, era possível assistir às performances e votar no site do Arraial de Belo Horizonte. A quadrilha com mais votos recebeu o troféu “Prêmio Júri Popular – Concurso Municipal de Figurinos 2021”. Após o período de oito dias disponível para a escolha, foram computados 1.685.922 cliques a favor da Quadrilha Trem D’ Minas, dando-lhe a vitória com 24,77% dos votos.
Mesmo com o sucesso e a boa audiência online, essa popular cerimônia estava acostumada com outro ambiente. Com música e dança ao vivo, com cheiros e gostos hipnotizantes e com muita aglomeração. Até o endereço é outro, mais real, uma famosa praça no Centro de Belo Horizonte.
Quadrilha europeia à brasileira, com toques mineiros
Apesar de ter sido impedido de ocorrer em alguns anos, por questões políticas, o Arraial de Belo Horizonte foi ganhando destaque nos 12 mil metros quadrados da Praça Rui Barbosa, mais conhecida como Praça da Estação, cartão postal de BH inaugurado em 1987.
“O Arraial de Belo Horizonte já visitou outros espaços da cidade. Mas não tenho dúvida que seu lugar é a Praça da Estação. Ele nasceu em 1979, com a ideia do então prefeito Maurício Campos de reunir no Centro quadrilhas que já existiam na periferia da cidade para promover um grande encontro”, enfatiza o presidente da União Junina Mineira (UJM) e líder da Quadrilha São Gererê, Jadison Nantes, de 39 anos.
Contornado por 12 postes com estética clássica, a Praça da Estação é um famoso palco de shows, intervenções culturais e sociais da cidade. Mas há dois anos não recebe arquibancada e nem plateia. Lá, não se ouve palmas no ritmo da música de quadrilha e nem se sente o aroma das comidas típicas dessa festa que Minas Gerais degusta como ninguém.
Antes de chegar em Minas Gerais, a festa de quadrilha desembarca no Brasil pelos portugueses, primeiro no Rio de Janeiro, no século XIX, sede da corte brasileira na época. Como MG possuía muitas riquezas, os colonizadores europeus subiram para o estado mineiro. Com isso, a comemoração veio junto e se alinhou ao catolicismo.
Atualmente, tanto no interior como na parte mais central do estado, há solenidades com os nomes de três santos católicos. Santo Antônio, São João e São Pedro. No calendário, os dias dessas figuras religiosas são celebrados em 13, 24 e 29 de junho, respectivamente. Em razão disso, os 30 dias do sexto mês do ano são a favor de honrar e celebrar os três santos destacadamente populares nessa religião.
De acordo com Jadison, esse deve ser o motivo da tradição ser relevante em MG. “A religiosidade, em certo momento, passa a caminhar lado a lado com a questão da quadrilha junina. Eu acho que esse é o motivo para essa tradição ser tão forte em nosso estado”.
E essa não é apenas uma opinião de Jadison. Segundo dados da festa em 2019, no site da Prefeitura de BH, pouco mais de 100 mil pessoas foram a soma dos presentes no evento naquele ano. O que fez dele a maior festa junina do Sudeste brasileiro.
“Acredito que o Arraial de Belo Horizonte seja uma das competições entre quadrilhas juninas mais antigas do Brasil, pois ocorre desde 1979. E o povo mineiro sente que essa é uma cultura genuinamente nossa, também em função das festas religiosas”, reforça o presidente da UJM.
Com 42 anos de história, essa festança já sofreu diversas metamorfoses antes de ser realizada online.
1979 – No primeiro ano, era chamado de “Forró de Belô”, apelido carinhoso utilizado pelos belo-horizontinos. Nessa época, a festa já ocorria na Praça da Estação.
1980 – A Empresa Municipal de Turismo de Belo Horizonte (Belotur) passou a coordenar o evento. O objeto era preservar e divulgar a festa junina como expressão cultural.
1994 – A festa passa a ser denominada “Arraial de Belô”, envolvendo escolas municipais e comunidades de toda Belo Horizonte.
2004 – BH foi sede do encontro das lideranças dos quadrilheiros juninos da região Sudeste do Brasil. Isso garantiu a participação de quadrilhas juninas da Bahia e Distrito Federal.
2005 – Arraial de Belô recebe o “I Festival Nacional de Quadrilhas Juninas”, com 10 estados reunidos, consagrando o arraial uma das maiores festas juninas do Brasil.
2016 – A programação contou com quadrilhas nas nove regionais da capital de MG, com a final na Praça da Estação. Com mais de 120 mil pessoas presentes, consolida-se o maior junino já realizado em BH.
2017 – No seu 39º ano, “Arraial de Belo Horizonte” se tornou o nome oficial da festa. Foi contemplado no Edital de Festejos Juninos lançado pelo Ministério do Turismo e pela Embratur. Com isso, a capital mineira inseriu-se entre os cinco maiores destinos turísticos, ao lado de Bragança (PA), Campina Grande (PB), Corumbá (MS) e São Luís (MA).
2018 – A gastronomia mineira e pratos típicos foram destaque no Concurso Prato Junino, Vila Gastronômica na Praça e Circuito Gastronômico em vários restaurantes da cidade. Adicionado a isso, cerca de 50 quadrilhas se apresentaram no Concurso Municipal, Grupo de Acesso e Especial.
2019 – Na edição 41, grandes shows sertanejos reuniram 100 mil pessoas somente na praça, nos dias do evento. Um “anarriê” colorido, lindo e com muitas famílias presentes.
2020/2021 – Devido à Covid-19, o evento não foi realizado. Em 2021 ganhou uma versão online com destaques aos elementos das capitais mundiais de São João.
Com tanta história, manifestações artísticas e cores, Nantes comenta que nunca pensou que ficaria sem o arraial. “Jamais imaginávamos um ano sem festa junina, sem o Arraial de Belo Horizonte. Foi um ano de sofrimento para todo mundo, mas também houve muita consciência, o quadrilheiro entendeu que era o momento de preservação da vida”, disse.
Era uma vez, antes da pandemia… Pula fogueira iaiá, pula fogueira, ioiô
Com o número elevado de público em 2019, as pessoas assistiram de perto a Quadrilha Pipoca Doce se consagrar campeã do Concurso Municipal de Quadrilhas.
O tema sustentado pelo grupo era uma homenagem ao mineiro Santos Dumont, pai da aviação, nascido na cidade João Gomes, que atualmente se chama Santos Dumont, município da Zona da Mata de Juiz de Fora (MG). Ao todo, 24 pares fizeram parte da coreografia, mais o marcador e equipe de apoio.
Antes da Covid-19, a rotina do grupo era iniciar ensaios em janeiro de todo ano, sempre aos sábados e domingos. Quando faltam apenas três meses para o Arraial de Belo Horizonte, o ritmo é intensificado. Os casais se encontram todos os dias para praticar os passos. Com a pandemia, essas reuniões se resumiram às redes sociais e videochamadas.
Enquanto os casos de Covid-19 ainda eram menos que 30 no Brasil, em março de 2020, a equipe manteve a organização daquilo que seria apresentado durante junho e julho. Naquele ano, o homenageado da vez seria outro mineiro, também mundialmente conhecido, nascido em Ouro Preto: Antônio Francisco Lisboa, o célebre escultor Aleijadinho.
“Tivemos que parar tudo. Depois de dois anos sem arraial, a gente pretende voltar com tudo em 2022”, revela o Presidente da Quadrilha Pipoca Doce, Rômulo Santos, 51.
Santos se mostra confiante em ter a companhia do público junto aos quadrilheiros o mais breve possível. “Eu acredito que, se a gente continuar seguindo os protocolos, podemos ter um arraial presencial. Fazer isso é o que a gente gosta. Contribuímos com essa cultura por amor. Realmente, não vemos a hora de voltar a ensaiar, ter contato com as pessoas e estar nas festas. Isso não tem preço”, reforça o quadrilheiro.
Ao final, Rômulo deixa uma dica para quem deseja ser campeão. “Vencer o Arraial de Belo Horizonte é muito difícil. É um campeonato altamente disputado, e por qualquer décimo, uma coisinha à toa, a equipe acaba não levando o prêmio. Em 2018, ficamos em segundo lugar, perdemos o primeiro devido ao tempo da dança, questão de segundos. Mas, um ano depois, fomos campeões. Por toda essa dificuldade, damos muito valor ao título e temos muito prazer em falar sobre essa conquista”, finaliza.
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