Quando questiono o preço – e não o valor – de uma alma, não me reporto apenas àquelas que não estão mais presentes fisicamente, mas, também, àquelas que permanecem, muitas vezes respondendo por seus atos e escolhas. Qual o preço de uma alma que escolhe entre liberar verba para a compra de oxigênio para um hospital ou utilizar essa verba “para outros fins”? Como se fosse possível crer que haveria a necessidade de escolha! Qual o preço pago por essa alma, para que agisse de maneira tão obscena? Por quanto essa alma se vendeu?
Não me refiro, também, a valores financeiros. Isso deve ser óbvio a vocês, mas é importante deixar claro. Os valores pagos a uma alma que se prestou a uma escolha absurda são intangíveis, na maior parte das vezes. São fundamentadas em percepções quebradas, conceitos erguidos sobre alicerces de areia fofa.
Por outro lado, as almas que já passaram têm seu preço mais calculável, a partir daqueles que permaneceram. O preço não está apenas na dor, na saudade, na indignação, na ausência. Está, também, na interrupção de um futuro. Não estamos considerando perdas por atos criminosos óbvios. As perdas notadas neste momento são resultado dos infinitos malabarismos executados por uma legislação que parece aberta a interpretações verborrágicas, desviantes, e às manobras que a política realiza com maestria para realizar esse espetáculo. Para as almas, cuja etiqueta de preço eu provoco qualquer legislador ou estadista a fixar, qual seria a base de cálculo? As perdas de dignidade, referências, afetos nos últimos meses seguramente resultaram em um saldo de vítimas compatível com qualquer conflito bélico. Considere o simples ato de aglomeração de pessoas em eventos ou a necessidade de proteção física, como uma máscara devidamente vestida.
Ainda, e tão cruel quanto a fatalidade direta da pandemia, as perdas em decorrência dos descalabros executados em muitos hospitais que se mostraram incapazes – jamais incompetentes – em atender pacientes de outras tantas enfermidades por falta de recursos básicos… faltou gaze… faltou anestésico para o procedimento de intubação… faltou decência para aqueles responsáveis por suprir essas instituições em momentos críticos.
Da mesma forma, faltou alimento nas mesas dos desempregados, dos órfãos, dos sobreviventes.
Faltou perspectiva…
Mas, como bons espetáculos, principalmente os de ilusionismo, fazem uso de luzes cegantes e diálogos envolventes, havia, sim, uma perspectiva para a retomada, apesar do combustível, do gás engarrafado, das taxas de juros, da cesta básica, da luz, da inflação estarem em um avanço descontrolado, ou melhor, inevitável, segundo algumas figuras públicas ligadas ao governo e à economia. O povo é quem não conseguia entender.
E, assim, nos vemos em uma encruzilhada que, seguramente, somará mais alguns números ao preço já bastante alto que estes últimos poucos anos têm cobrado de nós: vem aí o Réveillon, em seguida o Carnaval. Assim como vieram os eventos esportivos, todos abarrotados de pessoas imunizadas, distanciadas e devidamente protegidas, vieram, também, as aulas presenciais, as exposições, os eventos ao ar livre em parques e avenidas, os bares e restaurantes e mais um tanto de outras atividades profissionais.
Que fique muito claro que não sou contra nenhuma dessas atividades. Ao contrário, espero por algumas delas com alegria. De alguma forma é necessário retornarmos à vida coletiva, que seja segura, consciente e respeitosa em relação à vida.
Mas que seja de “alguma” forma, não de “qualquer” forma.
Nosso saldo já está no vermelho…
Professor universitário, pesquisador e divulgador científico com formação multidisciplinar promove a convergência de conteúdos para provocar um pensamento mais crítico e atuante sobre a Sociedade e a Cultura. Mestrado e doutorado nas áreas de Comunicação e Tecnologia, desenvolve estudos e projetos relacionados à Teoria do Tempo, Narrativa e Cultura. Atua como Colaborador da Berkeley University of California. Nerd, cinéfilo e aquarista, ama livros, música e, principalmente, cães.