Porém, em meio a todo esse cenário de tragédias – naturais ou anunciadas – que acumulam perdas incontáveis para milhões de pessoas por todo o planeta, essas discussões umbilicais de opiniões insustentáveis pouco importam. Independentemente do resultado das discussões, as perdas ocorreram. Perdas que poderiam ter sido evitadas, não só por meio de ações mais maduras e humanas dos governantes, mas, principalmente, por meio de ações pessoais, conscientes, independentes de quaisquer negações ou afrontas entre políticas concorrentes.
Faltou, para uma parcela importante da humanidade, um espelho que invadisse seu próprio olhar para assombrar as noites de sono. Faltou alma. Infelizmente, essa falta persiste. É bastante difícil avaliar se em maior ou menor escala, individualmente. Os valores que têm conduzido nossos atos nestes anos, muito mais notáveis nesta década, parecem se sustentar pelo outro e não por si próprio, independentemente da insanidade que possa representar.
– “Se o outro faz, deve estar certo, deve ser correto, não será perigoso…”
E, se for perigoso…
– “Isso jamais acontecerá comigo!”
Algo que se deixa conduzir ou que conduz? A pretensão é provocar seu pensamento, leitor e leitora, sua crítica e autocrítica, fazer observar os paradoxos que temos vivido e que foram incorporados à normalidade do cotidiano, um certo “novo normal” que tanto é citado, mas pouco é entendido.
Esse novo momento histórico trará alguma luz, vinda como uma epifania, que permita definir o valor de uma vida, não importando a espécie, desde que vida? Temos presenciado abominações executadas contra o outro sob a perspectiva do certo ou errado, da possibilidade de ser ameaçador para alguma condição de manutenção e estabilidade de um todo. São explicações extremadas em seus discursos, entre o religioso e o científico, esta mesma uma polarização que já não deveria mais estar em voga, claramente inexpressiva para uma mente lúcida que compartilhe a existência neste planeta.
Como qualificar ou quantificar uma vida? Pode parecer uma questão atual, presente diariamente em todos os últimos mil telejornais em virtude de uma pandemia que continua a rondar suas presas desavisadas, mas vem de longa data. Me deparei com essa questão, a da responsabilidade sobre seus atos e os efeitos sobre outros, no início dos anos 1980, com um filme que tomei para mim, assim como tantos outros cujo afeto poucas pessoas fora de um círculo mais “nerd” poderiam entender: “Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan”.
Nesse filme, que percorre os conceitos de vingança e perdas, ambos como causa e efeito mútuos, há um diálogo que é, no mínimo, perturbador. Dois personagens, ao discutirem os rumos de suas ações, sob a ética e a moral do remoto Século XXIII, argumentam que “as necessidades da maioria se sobrepõem às necessidades da minoria, ou de apenas um…”
Pode parecer tolo, uma citação em um filme de ficção científica, mas foi o que vi acontecer nos primeiros meses de 2020, quando os leitos de UTIs faltaram, e foi necessário escolher quem ocuparia uma vaga… o velho ou o jovem? Saudável ou com comorbidades? Rico ou pobre? Sexo? Cor? Crença? A qual “maioria” as pessoas que tiveram a tarefa aterradora de uma escolha entre vida e morte se remeteram? A quais necessidades? Como diferenciar um do outro? Simplesmente agir mecânica e racionalmente? Em relação à vida de outros? Por estatísticas?
Professor universitário, pesquisador e divulgador científico com formação multidisciplinar promove a convergência de conteúdos para provocar um pensamento mais crítico e atuante sobre a Sociedade e a Cultura. Mestrado e doutorado nas áreas de Comunicação e Tecnologia, desenvolve estudos e projetos relacionados à Teoria do Tempo, Narrativa e Cultura. Atua como Colaborador da Berkeley University of California. Nerd, cinéfilo e aquarista, ama livros, música e, principalmente, cães.