Os últimos meses têm sido, pelo menos para mim, particularmente peculiares e me colocado diante de inúmeros reveses e desafios variados. Embora haja quem se divirta com quem acaba enfiando o pé na jaca, já adianto: eu não tô aqui pra isso. Não tenho a mais remota intenção de servir de exemplo; eu tô aqui pra propor e apresentar desafios e questionamentos que (espero eu) te ajudem a ver o que existe para além da órbita que circunda seus próprios umbigos. Pois muito bem: já que tive a oportunidade de estar aqui, é melhor que eu comece colocando todas as cartas na mesa, uma por uma, frase por frase, letra por letra.
E por onde começar se não com uma boa e velha treta? Foi assim que me ocorreu dar início a essa série de conversas mostrando como (e porquê) deficiência e privilégio não são conceitos (ou status) necessariamente opostos e mutuamente excludentes, tampouco uma espécie de clube de vantagens em que você ganha isenção de imposto, atendimento prioritário e vaga exclusiva no estacionamento pela bagatela de ter comprometida a funcionalidade de seus olhos, ouvidos, mente, braços ou pernas.
Ter uma deficiência não é a melhor coisa do mundo; também não é uma tragédia – tudo depende de como e onde ela se expressa. Num ambiente em temos acesso a recursos e estímulos, às limitações e impedimentos decorrentes de nossa condição médica afeta bem menos nosso ser e estar no mundo; aonde recursos e estímulos são escassos, há bem menos pontes (interações acessíveis, inclusivas e justas) do que muros (experiências de exclusão, preconceitos e de constrangimentos inúmeros).
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Embora nós, pessoas com deficiência, representemos cerca de 15% da população mundial, segundo estimativas feitas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em parceria com o Banco Mundial1, nem todos possuímos limitações/impedimentos tão graves que nos impeçam de exercer nossos direitos e deveres sem adaptações. No entanto, são essas pessoas (que aqui chamarei de “privilegiados”, para não chamar de “oportunistas”) que mais facilmente se beneficiam de políticas públicas para pessoas com deficiência2. Não porque sofram, necessariamente, de deficiência de caráter (daí o uso do termo “oportunismo” ali em cima), mas porque pessoas sem deficiência e espaços acolhem e se adaptam muito melhor àqueles cujas limitações/impedimentos não ficam à mostra e/ou implicam menores custos (materiais ou humanos) para adequação.
Mesmo não enxergando lá grandes coisas, já consigo ver daqui o nariz torcido de vocês, mas gostaria de questioná-los: entre uma pessoa com visão monocular e acuidade visual suficiente para dirigir, ler e escrever sem o uso de óculos, e uma pessoa com cegueira total, quem é mais facilmente incluída na sociedade? Entre um surdo profundo e alguém com deficiência auditiva que possui implante coclear e é oralizado, quem tem menos dificuldade de se comunicar com não falantes de LIBRAS? Entre um tetraplégico e alguém que usa prótese na perna, quem tem mais chances de se locomover sem grande dificuldade por aí? Entre alguém com autismo leve (funcional), que se comunica sem dificuldade, e uma pessoa com deficiência intelectual severa, que não é capaz de realizar tarefas “simples”, como amarrar os próprios cadarços ou usar garfo e faca sozinho, quem mais provavelmente será tratado como incapaz de tomar decisões sozinho durante toda a vida? (Como não são perguntas fáceis, vou até dar a vocês alguns dias (até que a segunda parte deste texto seja publicada) para digerir isso tudo, mas com a condição de que voltem aqui me respondendo com a mais pura e provavelmente dolorosa sinceridade.)
1 Para mais informações, acessem, recomenda-se o acesso aos painéis disponíveis na página do Banco Mundial e ao Relatório Mundial Sobre Deficiência disponível na página da OMS, ambos em inglês.
2 Para mais informações, recomenda-se a leitura do artigo “How do people with disabilities fare in the labour market?”, disponível na página da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e do artigo “Diversidade pode gerar valor para uma empresa?“, disponível no portal Catraca Livre. Também recomenda-se a leitura da minha Dissertação de Mestrado, intitulada “Pessoas com deficiência e inclusão no mercado de trabalho : um estudo sobre lei de cotas, conflitos e cont(r)atos“, apresentada em 2016.
Mestre em Ciência Política pela UnB, consultora em acessibilidade e digital insistencer (porque só na base da insistência é que se muda alguma coisa).