Perigos da automedicação

Como a pandemia influenciou o aumento do consumo de remédios

ESCRITA POR: LÍVIA RÉGIS

De acordo com a farmacêutica Daniela Phelippin, a automedicação é “o ato de utilizar medicamentos por conta própria, sem orientação e que, muitas vezes, é vista como uma solução para o alívio imediato de alguns sintomas ou dores, mas essa ação pode ser muito prejudicial ao paciente”.

Em entrevista a ComTempo, Daniela destaca os perigos da automedicação, e explica como essa prática aumentou com a pandemia e a disseminação de fake news.

ComTempo – Quais riscos a automedicação pode trazer à saúde em todas as faixas etárias?

Daniela Phelippin – Os riscos da automedicação são muito diversos. O tipo de medicamento utilizado e as doses interferem diretamente nesse risco. Importante ressaltar como principal risco que o uso de um medicamento por conta própria pode mascarar sintomas importantes como febre e, assim, piorar o quadro clínico. Além disso, a automedicação pode piorar doenças que o paciente já tem (e pode nem saber), interferir com outros medicamentos que já utiliza de forma contínua, potencializando ou diminuindo seu efeito, e até levar ao óbito. Ressalto também que é uma prática extremamente perigosa e que se torna ainda mais nociva em grupos mais vulneráveis, como crianças (que os pais automedicam), idosos que têm o sistema imune mais comprometido e pessoas que já possuem doenças crônicas, como diabéticos e hipertensos. Uma pesquisa recente do Conselho Federal de Farmácia (CFF) revela um dado assustador e preocupante: 77% dos brasileiros fizeram uso de medicamentos nos últimos seis meses, e 25% o faz todo dia ou pelo menos uma vez por semana. Há outros resultados de muita atenção: no Brasil, ocorre um modo diferente de automedicação, a partir de medicamentos prescritos. Nesse caso, o paciente passa pelo profissional da saúde, tem um diagnóstico, tem prescrição, mas não usa o medicamento conforme orientado, alterando a dose prescrita. Esse comportamento foi relatado pela maioria dos entrevistados (57%), especialmente homens (60%) e jovens de 16 a 24 anos (69%). A principal alteração foi a redução da dose (37%). O principal motivo alegado foi a sensação de que “o medicamento fez mal” ou “a doença já estava controlada”. Mas caso esse medicamento seja um antibiótico, a atitude é ainda mais preocupante, pois reforça a resistência bacteriana, que é um dos grandes problemas atuais de saúde pública, e deve ser combatida. Quando o paciente para de tomar o antibiótico prescrito, percebe que os sintomas melhoraram e acredita estar curado. Acontece que essa melhora dos sintomas é ocasionada pela morte somente das bactérias mais susceptíveis, mais fracas. As bactérias mais resistentes ainda estão vivas, apenas baqueadas. Parando o tratamento nesse momento, essa bactéria mais resistente volta a se multiplicar. Nesse momento, aquele mesmo antibiótico não terá mais efeito, pois essa bactéria já é resistente e será necessário um antibiótico mais potente ou uma associação de antibióticos. Por isso, é essencial jamais parar no meio o tratamento com antibiótico.

CT – O que leva as pessoas a se automedicarem?

Daniela – Podemos citar vários motivos. Temos uma grande variedade de produtos ofertados, aliado a uma sociedade não informada e não crítica sobre os riscos do uso de medicamentos. Temos também a visão errada de que a farmácia é apenas um estabelecimento comercial e um sistema de saúde que busca acessibilidade, mas nem sempre a acessibilidade é real. A farmácia muitas vezes é vista como um local apenas comercial e de acesso rápido. Além disso, o ser humano por si só é imediatista e busca o alívio rápido dos problemas, e isso reflete na sua saúde. Muito comum ouvir as frases: “vou tomar um comprimidinho que passe rápido a dor”, ou “meu vizinho tomou e foi ótimo”. Voltamos novamente ao fator cultural, que influencia as ações repetidamente erradas. A pesquisa recente do CFF também revela exatamente isso: familiares, amigos e vizinhos foram citados como os principais influenciadores na escolha dos medicamentos usados sem prescrição nos últimos seis meses (25%). Outro fator que não podemos deixar de comentar é o acesso às informações via internet. Um avanço que veio para nos ajudar também tem sua via contrária. Temos muito acesso à informação, mas nem sempre temos criticidade para entendê-la. Assim, o paciente lê muitas informações, mas não se aprofunda nelas. Fora o fato de que temos muitas informações erradas disponíveis em sites, blogs e redes sociais. Tal fato também está entre os fatores que contribuem para a automedicação.

CT –  O uso de analgésicos pode mascarar doenças sérias?

Daniela – Com toda certeza. Os analgésicos estão entre os MIPs (medicamentos isentos de prescrição) mais utilizados sem prescrição. Na maioria das pesquisas, os analgésicos lideram o uso inadequado, com 50% dos usuários, seguido dos anti-inflamatórios. Os casos mais relacionados são para dores de cabeça, febre e sintomas de gripe. Isso porque os analgésicos estão relacionados ao controle da dor. A pergunta é: qual o porquê da dor? Aí é que está! Os analgésicos irão controlar a dor, e não a causa dela, atrasando a procura ao médico e o possível diagnóstico precoce. Isso pode fazer com que a doença piore e depois fique muito mais difícil o tratamento e os prejuízos podem se tornar irreversíveis.

CT – Sobre descongestionantes nasais, podem trazer algum risco às pessoas que realizam o uso contínuo e até os carregam na bolsa?

Daniela – Pode sim. A congestão nasal inicia secreções naturais da região nasal. E como age um descongestionante? Eles contraem os vasos sanguíneos e, quase instantaneamente, o incômodo nasal, a dificuldade para respirar melhora, o que traz alívio rápido ao paciente. Passado o efeito do medicamento, os vasos voltam para o estado comum, ou seja, voltam a se dilatar. E, assim, a congestão volta. E o paciente, repetidamente, utiliza o medicamento. Dessa forma, esse processo acaba ficando crônico. É como se organismo, cada vez mais, precisasse do medicamento para poder respirar melhor. É como se o organismo ficasse “viciado”, tendo que utilizar cada vez mais o medicamento, em maior frequência, para ter o mesmo resultado. A indicação dos descongestionantes existe para casos específicos e em estágios específicos da congestão nasal. Se o paciente for criança, devemos ter ainda mais cuidado. A superdosagem pode aumentar a pressão, levar a reações cardiovasculares como coração acelerado a falta de ar, podendo chegar a paradas cardíacas. Sabemos que em épocas muito secas os incômodos com a respiração aumentam, em qualquer idade. A orientação é o uso de soro fisiológico a 0,9% para hidratação e limpeza das vias aéreas. Casos específicos devem ser avaliados por um profissional da saúde e diagnóstico médico. Sobre carregar qualquer medicamento nas bolsas: cuidado! Bolsa não é lugar de medicamentos, seja ele qual for. Por que? Porque a bolsa anda com a gente por qual lugar. Esteja sol, chuva, calor, frio. Os medicamentos não devem ser armazenados ao calor ou umidade. Isso faz com que o medicamento ou perca a função (o que não irá mais tratar) ou tornar-se tóxico (além de não tratar, pode causar mal ou dano ao paciente).

CT –  O que fazer para evitar a automedicação?

Daniela – A orientação é a maior aliada para evitarmos a automedicação. É a grande área da educação em saúde. Uma população orientada, além de saber dos riscos, torna-se responsável por sua saúde e por seu tratamento. Costumo dizer que o tratamento é equilibrado por três pilares: o médico, que prescreve e diagnostica corretamente; o farmacêutico, que orienta e dispensa corretamente; e o paciente, que usa o medicamento corretamente. Portanto, além disso, passamos pela formação de profissionais de saúde éticos e conscientes. Junto a isso, a melhoria e o acesso ao sistema de saúde, seja ele público ou privado, a real ação da farmácia como estabelecimento de saúde e não simples comércio, bem como a regulamentação e fiscalização das propagandas em medicamentos irão auxiliar em uma grande ação coordenada para se combater a automedicação.

CT –  Existem graus de automedicação, por exemplo, leves ou mais graves?

Daniela – Na verdade existem graus de intoxicação, ou graus de reações adversas a medicamentos, que podemos relacionar aos graus de gravidade. Grau leve é aquele que não requer tratamentos específicos e não é necessária a suspensão do medicamento que causou o problema. Muitas vezes essa reação é conhecida e descrita na bula. No grau moderado, já é exigida a modificação na conduta médica. Nem sempre é preciso suspender o uso do medicamento, mas podemos associar outro medicamento para conter o problema. No grau grave, requer a interrupção da administração do medicamento e tratamento específico da reação adversa. Normalmente, nesse caso, requer hospitalização para cuidado direto e observação da reação. E o último nível, irreversível, contribui direta ou indiretamente, para a morte de paciente.

CT – Sempre é importante falar com médicos ou farmacêuticos antes de tomar qualquer tipo de medicamento? Por exemplo, aquela dor de cabeça no meio do dia, um incômodo no estômago por algo que acabou de comer.

Daniela – Sempre! A orientação é sempre: procure um profissional da saúde. Para algumas situações clínicas, relacionadas em normas específicas, o farmacêutico também pode fazer a análise do caso do paciente e prescrever alguns tipos de medicamentos específicos, autorizados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). É importante ressaltar que, mesmo que o farmacêutico não possa prescrever, ele é habilitado a fazer a orientação correta e direcionar o paciente ao correto a se fazer em cada caso. A atenção farmacêutica é a ação direcionada ao farmacêutico de realizar as orientações corretas ao paciente e, atualmente, já é uma realidade o consultório farmacêutico que, particularmente, vejo a grande crescente desta área de atuação nos próximos anos.

CT –  Sobre a mistura de medicamentos e dosagens, o que isso pode causar? Qual o tempo adequado entre um medicamento e outro?

Daniela – As misturas ou interações podem causar diversos males ou danos. E qual o risco? Isso depende muito de qual os medicamentos envolvidos e quais as doses. Vou citar algumas interações comuns, inclusive com medicamentos que pode se adquirir por meio da automedicação e sem prescrição.

Antibióticos e anticoncepcionais: essa associação é um dos motivos de gravidez não programada. Isso porque mulheres que fazem uso de anticoncepcionais via oral (as pílulas) muitas vezes podem ter alguma infecção que lhe são prescritos antibióticos. Mas os antibióticos diminuem a absorção dos anticoncepcionais e causam a diminuição da ação, e maior chance de gravidez.

Antibióticos e vitamina C: uma interação perigosa e comum em épocas de Covid-19. Muitos pacientes buscam ingerir mais vitamina C para melhorar o sistema imunológico. Até aí, tudo bem. Porém, se esse paciente está utilizando um antibiótico, deve ser orientado a diminuir no período a ingestão da vitamina C, pois ela inibe a ação dos antibióticos. A infecção não será tratada corretamente.

Ácido acetilsalicílico (o famoso AAS) e captopril (anti-hipertensivo): o ácido acetilsalicílico pode diminuir a ação anti-hipertensiva do captopril, causando sonolência, moleza e até quedas.

Omeprazol e varfarina (anticoagulante): o omeprazol pode aumentar a ação da varfarina, causando sangramentos.

Ácido acetilsalicílico e insulina: O AAS pode aumentar a ação hipoglicemiante da insulina, causando quedas bruscas e desmaios.

E para finalizar os exemplos, temos uma associação muito comum e perigosa: bebidas alcoólicas e ansiolíticos, hipnóticos e sedativos (medicamentos controlados tarjas preta e alguns tarjas vermelha): álcool deprime o sistema nervoso central e potencializa o efeito desses medicamentos. Essa interação pode causar até a morte por falência cardiovascular, depressão respiratória ou grave hipotermia.

Por isso ressalto tanto: a utilização de medicamentos por conta própria e sem a devida orientação é um grande risco. Medicamento é coisa séria!

CT:  No caso de uma pandemia, como a do Covid-19, as pessoas estocarem remédios em casa ou tomar por conta própria, por acreditar em fake news de que determinado remédio é a cura ou ajuda a proteger da doença, o que isso pode representar tanto para quem comete o ato de armazenar medicamentos, quanto para aqueles que futuramente possam precisar daquele remédio?

Daniela – Por todos os pontos destacados nas discussões acima, estocar medicamentos é um risco à saúde. Um estudo realizado em março de 2020, a pedido dos Conselhos de Farmácia, pela consultoria IQVIA Brasil, constatou aumento significativo nas vendas de alguns medicamentos relacionados à Covid-19. A vitamina C, que teve grande divulgação como “efeito preventivo” contra o novo coronavírus em fake news, foi a campeã em comercialização, com crescimento de 198,23%. Também foi verificado crescimento no consumo da cloroquina e da hidroxicloroquina, as quais foram atribuídas à capacidade de curar a Covid-19. Até a data de hoje (a entrevista foi finalizada em junho), não existem estudos científicos que concluam seu benefício para a Covid-19. Deve-se ressaltar que a hidroxicloroquina era um medicamento com venda sob prescrição, mas que podia ser adquirido em farmácias. Hoje, esse medicamento teve sua legislação de dispensação (Portaria 344) alterada e, atualmente, faz parte do grupo de medicamentos controlados pela Anvisa, ou seja, só pode ser adquirida com prescrição médica e em duas vias.

Também os MPIs, muito relacionados à automedicação, tiveram aumento no consumo, que causam grande alerta. O paracetamol teve aumento de 83,56% em sua comercialização, e a dipirona, aumento de 51%. O ibuprofeno, que por um breve período foi relacionado ao agravamento de casos da Covid-19, teve queda nas vendas de 2,95%.  Esses e outros MIPs, adquiridos sem prescrição, também podem trazer riscos. Fica aqui, então, novamente, o alerta: não utilize medicamentos sem orientação e por conta própria. Medicamentos são nossos aliados na cura e tratamento de doenças, mas eles trazem grande fator de risco por si só. Utilizados de forma incorreta, esse risco pode aumentar muito e trazer grandes males, até irreversíveis. Informe -se sempre com um profissional da saúde.

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