Série: Além do arco-íris
Escrito por: Martina Colafemina
É um mundo cruel de se enfrentar sozinho. Porém, a comunidade gay, com a ajuda de familiares e unidos aos outros grupos LGBTQIA+, tem vencido batalhas importantes, como a derrubada da restrição a doações de sangue por homossexuais. Nesse episódio da série “Além do arco-íris”, abordamos a letra G do LGBTQIA+, que representa os homens gays
“Dar o nome” é uma gíria que quer dizer dar o melhor em alguma tarefa. No posicionamento, na luta por conquistas, no enfrentamento diário de situações discriminatórias e vexatórias – que vão de agressões verbais a homicídio – e na construção de uma história, dar o nome é uma expressão que combina com a comunidade gay brasileira. No último dia 11 de maio, mais um passo na conquista de direitos: o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria, julgou inconstitucional a resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que proibia, até então, a doação de sangue por homossexuais.
Desde 11 de maio de 2020, portanto, a recusa de doações por conta de gênero ou sexualidade é considerada uma violação da dignidade e pode caracterizar constrangimento ilegal, e deve ser denunciada às autoridades competentes. As recusas ainda valem, independentemente da sexualidade ou do gênero, para os demais casos de impedimento previstos pela lei, como por exemplo, peso mínimo de 50 quilos, gravidez, amamentação e tatuagem nos últimos 12 meses. As denúncias podem ser feitas à ouvidoria do hospital, clínica ou banco de sangue e pela Central de Atendimento da Anvisa (0800 462 9782). Também pode ser feito um Boletim de Ocorrência.
Em Ribeirão Preto-SP, no Banco de Sangue do Hospital São Lucas, Leonardo Gabarra foi um dos primeiros meninos homossexuais a exercer essa conquista na prática. O adolescente de 17 anos já tinha esse desejo há bastante tempo, mas se via entravado pela resolução da Anvisa. “É uma sensação agridoce. Ao mesmo tempo em que fico felicíssimo ao saber que finalmente podemos doar sangue, me revolto ao lembrar quanto tempo levou até conquistarmos este direito. Doar sangue é um ato de amor ao próximo e o antigo impedimento desperdiçava milhares de litros de sangue anualmente. Apesar de tudo, é maravilhoso saber que posso ajudar outra pessoa e perceber que a sociedade está mudando”, relata Leonardo.
Ele foi estimulado pela mãe, Lucimara Veronez, 41, que é doadora desde os 18. “Minha filha tem 17 anos e também já é doadora. O Léo tinha esse desejo, porém, havia esse empecilho absurdo! No dia da decisão do STF fiquei mega feliz, muito emocionada! No dia da doação, estava explodindo de alegria e ao mesmo tempo apavorada. É claro que essa parte a gente não conta para o filho. Antes de ir ao banco de sangue, entrei em contato com uma amiga advogada que me orientou e ficou de plantão, caso ocorresse algum impedimento. Mas para nossa grata surpresa, deu tudo certo e a doação aconteceu”, comemora Lucimara. A mãe também coordena o grupo Mães pela Diversidade em Ribeirão Preto. O grupo está presente em todo o Brasil, com o propósito de acolher famílias de pessoas LGBTQIA+.
“Nosso foco é atuar no acolhimento às famílias LGBTQIA+. Não somos um movimento social, sabemos de sua importância, no entanto, respeitamos nosso local de fala como pais ou mães de pessoas LGBTQIA+, nós apoiamos os movimentos! Os protagonistas sempre serão nossos filhos, que sentem na pele e enfrentam situações de preconceito em seu dia a dia.
Os maiores problemas na vida de uma pessoa LGBTQIA+ iniciam dentro de casa e o trabalho de acolhimento e empoderamento dessas famílias é de extrema importância para que eles entendam que não se trata de uma escolha, e dessa maneira, ‘saiam do armário’ junto com seus filhos”, explica Lucimara. Ela decidiu participar da associação assim que o filho assumiu sua sexualidade. “Léo veio conversar comigo e não tive problemas em aceitar sua orientação, no entanto, meu maior inimigo sempre foi o medo do preconceito que iríamos enfrentar juntos. Descobri a associação Mães pela Diversidade e fui buscar conhecer e entender o funcionamento. Ali, descobri um mundo de muito amor e muita luta! Mães e pais unidos pelo mesmo objetivo: busca de garantia de direitos e uma sociedade melhor para nossos filhos”, esclarece a mãe.
O medo que persiste
O Brasil lidera o ranking de diversas pesquisas dos países que mais matam LGBTQIA+ no mundo há anos. O Grupo Gay da Bahia, entidade que registra dados de violência há 40 anos no Brasil, registrou no último relatório 141 mortes no período de janeiro a 15 de maio de 2019, das quais 126 foram homicídios e 15 suicídios. O estado que lidera a lista de mortes é São Paulo, seguido pelo Pará e pelo Rio de Janeiro.
Fazer parte dessa comunidade, para Leonardo, não é fácil. “A gente acorda com medo de não voltar para casa à noite. A inclusão do LGBTQIA+ na sociedade está ocorrendo lentamente e eu desejaria que fosse mais rápido. Porém, nossa comunidade é muito resiliente e sempre tenta dar um jeito de contornar as dificuldades que passamos. Estamos aqui para mostrar todo o bem de ser e amar quem você é e quem você quiser”, exprime ele. Desde que assumiu a homossexualidade, ele conta que as pessoas se afastaram e tentaram reprimi-lo.
“Sempre que estou com algum amigo na rua, escuto xingamentos. Também sofri muito com a pressão de me enquadrar em um padrão. Felizmente nunca ocorreu uma agressão física, mas essas pequenas coisas cotidianas nos afetam demais”, alega Leonardo. Por isso, ele procura estar sempre engajado dentro do movimento. “A luta pelos nossos direitos não pode acabar enquanto ainda existem LGBTQIAs sendo espancados, humilhados e até mesmo mortos. Apesar de já termos conquistado várias coisas, ainda há muito o que se fazer”, complementa ele.
No dia em que Leonardo revelou a sexualidade para a mãe, ela não conseguiu dormir. “Na noite em que ele conversou comigo, eu não consegui dormir, coisas de mãe. Em minha mente só apareciam situações de violência e sofrimento, e olhando na internet, esse medo aumentou ainda mais. Quando você pesquisa números e se depara com a informação de que estamos em um país onde mais matam LGBTQIA+, como é possível ter paz, sabendo que seu filho pode ser agredido ou morto simplesmente por ser quem ele é?”, desabafa Lucimara. Ela também se lembra de situações em que teve que ouvir piadas e comentários sobre o filho.
“Léo sempre foi uma criança diferente de outras, ou seja, para uma mãe observadora fica evidente a diferença de comportamento entre uma criança e outras do mesmo sexo e faixa etária. E desde essa época eu já passava por situações de piadinhas, sabe? Não acredito que seja por maldade das pessoas, mas por falta de empatia mesmo. Às vezes eu chegava no trabalho e comentava com colegas que o Léo fazia ginástica artística ou outra atividade e lá vinham os comentários do tipo: ‘Ah esse menino, não sei não hein?!’”, lembra-se Lucimara. Porém, o amor e apoio que vêm de casa, além do estímulo para que Leonardo seja ativo dentro da causa, dão forças para perpassar o medo. “Meu filho é um adolescente muito bem resolvido. Não digo que não sofra, devido às situações que ele já passou, mas em casa, ele sempre teve nosso apoio. Sempre o estimulo a ser ativista! A causa precisa de pessoas engajadas, que falem e lutem por aqueles que não têm força!”, finaliza Lucimara.
Orgulho e liberdade
Leonardo nunca foi próximo do padrão de masculinidade imposto a um menino. “Não gostava de futebol ou de brincar de lutinha, só tinha amigas e era um ‘ratinho de biblioteca’. Apesar disso, na minha cabeça, a única coisa que me diferenciava dos outros meninos eram os gostos distintos”, lembra-se Leonardo. Foi na puberdade, da mesma forma que os meninos héteros descobriram que eram héteros, que Leonardo se descobriu gay. “Hoje, procuro ser quem eu precisava conhecer na época, acolhendo jovens com medo de se assumir e mostrando para todas as pessoas que existimos e que somos dignos de amor”, conclui Léo.
Evandro Oliveira, estudante de Publicidade e Propaganda de 20 anos, também sabia que não era igual aos outros meninos. “Só tive a certeza dessa diferença quando alguém chegou e me perguntou se eu era gay. Pronto! Naquele momento eu sabia que era diferente, só não entendia o que vinha a ser gay nesta sociedade. Eu era uma ótima criança viada! Gostava de brincar de boneca, juntava meus bonecos para que eles formassem um casal que vivia no castelo encantado, dançava a música do O Clone com burca na cabeça e dava escândalo no calçadão de Ribeirão Preto porque queria uma Barbie. Poc desde pequeno”, ri Evandro. As situações nessa fase de descobrimento, para Evandro, marcaram para sempre.
Ser gay, negro e afeminado é um desafio diário. “Posso encarar isso de duas maneiras: deixando com que o racismo e a homofobia me impeçam de evoluir, ou fazendo com que me provoquem o suficiente a encontrar minha voz e ser a melhor versão de mim mesmo. É necessário ser potência e encorajar outras bichas pretas afeminadas a mostrarem que estamos vivos e podemos construir um mundo de mais amor e respeito”, expõe ele. Para ele, é um dever de toda pessoa LGBTQIA+ estar engajado no movimento: a luta não é apenas sobre garantir direitos, mas sobre honrar a todos que deram a vida para que hoje muitos estejam vivos, trata-se das vidas e dos corpos de toda a comunidade.
O desafio é diário, também por conta da discriminação, que vem em dobro. “O que ocorria com mais frequência era o olhar pejorativo quando adotei as tranças coloridas. Agora está mais aceito, porém dois anos atrás era olhar de julgamento, ainda mais para um jovem negro de cabelo colorido. Foi mais velado do que escancarado”, revela o estudante. “Eu agradeço todos os dias por nunca ter sido violentado fisicamente. É uma dor horrível que vários de nós enfrenta diariamente, uns vão até ao óbito. O mais próximo que já presenciei de discriminação descarada foi um rapaz agredir verbalmente um casal de amigos, demonstrando todo seu ódio e repugnância. Pessoas mais próximas no local vieram até nós prestar socorro, porém, aquela rápida cena sempre vai estar marcada em mim”, frisa Evandro.
“Olho para trás e vejo Marsha P. Johnson, Lacraia, Vera Verão e Silvetty Montilla. Exceto Silvetty, todas já se foram deixando um legado a ser continuado. Hoje temos Érica Malunguinho, Bianca Della Fancy, Glória Groove, Liniker. São diversas personalidades negras e LGBTQIA+. Ou seja, não estou sozinho. Existem outras personalidades que estão fortalecendo a comunidade negra e LGBTQIA+ a serem potência, principalmente nos dias atuais”, reitera Evandro.
Ele é esperançoso de que o mundo ainda se tornará um lugar mais humano, em que o respeito será fundamental em todas as relações. Caminhar é preciso, para atar novos laços e desfazer velhas convenções.
A série “Além do arco-íris” da ComTempo visita, no próximo episódio, a letra B do LGBTQIA+, e traz relatos e vivências da comunidade bissexual.
A ComTempo tem como principal objetivo, abordar temas que precisam de mais liberdade, atenção, aprofundamento e espaço para discussão na sociedade.