Série: Além do arco-íris
Escrito por: Martina Colafemina
Dentro do movimento LGBTQIA+, há diferentes grupos e pautas além do arco-íris da bandeira. O amor entre duas mulheres, por sua vez, ainda é o motivo do ódio de alguns.
A luta é diária. Para as lésbicas e todos os integrantes do movimento LGBTQIA+, a frase é quase um mantra, e tem ajudado esses grupos a se impor cada vez mais diante dos olhos dos que se afligem com a liberdade alheia. Por isso, para celebrar a diversidade, a ComTempo traz “Além do arco-íris”, uma série de reportagens especiais sobre cada grupo que constitui o movimento LGBTQIA+.
O primeiro estudo sobre lesbocídio no Brasil foi feito pelas pesquisadoras Maria Clara Dias, Suane Soares e Milena Peres no Núcleo de Inclusão Social da UFRJ. Publicado em março de 2018, o estudo traz dados de crimes de ódio voltados a lésbicas, coletados de 2014 a 2017. Entre os casos está o de Luana Barbosa dos Reis, mulher negra, lésbica e não feminilizada, espancada até a morte por três policiais em abril de 2016, em Ribeirão Preto-SP, por solicitar a revista de uma agente mulher.
A pesquisa, denominada “Lesbocídio – As histórias que ninguém conta”, também apontou que o estado de São Paulo é o que mais mata lésbicas no Brasil. De 2014 para 2017, houve um aumento de mais de 237% de casos de lesbocídio, sendo que somente de 2016 para 2017, o aumento foi de 80%. O estudo ainda contempla as faixas etárias das vítimas e os meios de homicídio. Os assassinos, em sua maioria, são homens, conhecidos ou não das vítimas.
Carla Mimessi, psicóloga e jornalista, nasceu e cresceu em Assis, cidade do interior de São Paulo com cerca de 80 mil habitantes. Assim que assumiu ser lésbica, passou por muitas situações de discriminação. “Mesmo muitas vezes não me assumindo em público, mesmo não me impondo, sofri muitas situações de preconceito. Mas muitas, muitas mesmo. Eu perdi todas as minhas amizades. Meus colegas do colegial, quando a coisa se tornou pública, não me cumprimentavam. Meu irmão não sentava na minha mesa no bar”, relata Carla. Várias dessas situações, tanto pelo medo quanto pela reviravolta, a marcam até hoje, aos 55 anos.
“Teve um caso que foi muito forte, que eu me lembro com muita clareza. Eu estava sentada em um bar, que era o bar que a gente frequentava. Era cidade pequena, só tinha alguns bares. Era um movimento enorme. O que acontecia sempre era que você sentava sozinha na mesa, e ficava sempre uma mesa ao lado onde sentavam vários homens, e eles ficavam a noite inteira te falando coisas. Provocando, ofendendo, tentando te diminuir. Ou dizendo que você não tinha encontrado um homem de verdade ainda, aquelas coisas que geralmente eles falam. Já houve até dias em que o dono do bar colocou esses caras para fora, porque me conheciam e me respeitavam. Um dos episódios que mais me marcou aconteceu com três rapazes negros”, explica. A jornalista conta que durante toda a noite foi provocada pelos três, e que mesmo assim não lhes deu resposta. “Eles levantaram. Fiquei aliviada, pensei que tinham ido embora. Quando eu saí do bar, eles estavam do lado de fora. Um do lado do muro e os outros dois encostados no carro. Quando eu passei, eles insistiram. Eu parei, e naquele momento falei várias coisas. Falei, por exemplo, que eles tinham uma história toda sofrendo sob a besteira que é o preconceito, e que eles não tinham aprendido nada. Disse que o inimigo não era eu. E foi muito curioso porque eu nunca mais os vi, um deles era famoso na cidade, era capoeirista, todo mundo tinha medo dele, e depois de um ano, eu estava no bar e ele chegou. Veio para perto de mim e perguntou: ‘posso sentar aqui?’. Eu respondi ‘Depende, se for para sentar numa boa para conversar, você é muito bem-vindo. Mas se for para me ofender, não’. E ele sentou e me pediu desculpas. Ele falou que aquela situação o tinha marcado, que ele nunca tinha pensado no que eu tinha dito”, lembra-se Carla.
Para a publicitária Leticia Azevedo, 26, ser uma mulher lésbica é somar opressões. “Como uma mulher lésbica eu sofro violência contínua, tanto por ser mulher como por ser lésbica. Meu relacionamento é fetichizado para alguns homens héteros, diversas vezes recebo propostas para meu namoro ganhar um novo integrante. É cruel. É como se não fosse válido, como se eu tivesse me assumido lésbica apenas para realizar alguns desejos doentios. Nenhum homem chega em um relacionamento heteronormativo perguntando se pode participar. Pelo contrário, se chega em uma menina comprometida, ele pede desculpas ao homem. A mulher é sempre invisível”, alega ela. A violência também se faz presente de forma velada e na cobrança pela feminilidade. “Já ouvi de uma ex-amiga: ‘Você é lésbica, não homem. Não precisa se vestir desse jeito como um homem’. Desde então, eventos sociais como casamentos e formaturas me assustam, dos que eu puder ter uma desculpa para fugir, eu fujo. Lembro perfeitamente de não ter participado das fotos da minha formatura da faculdade, pois todas as meninas iriam de vestido, maquiagem e salto. Eu me senti desconfortável com a situação. Passei o dia todo chorando e me sentindo menos mulher”, relata Letícia.
Além de ser um país violento para mulheres e lésbicas, o Brasil também passa por uma onda de conservadorismo que tem permitido que alguns agressores sentissem a liberdade de agir, e por isso, tem proporcionado um cotidiano ainda mais difícil. “Eu estava no shopping com a minha namorada, nós sentamos em um dos bancos para terminar nosso milkshake e eu peguei na mão dela. No mesmo instante um guarda apareceu dizendo que nós não podíamos fazer ‘aquilo’ no shopping. Quando questionei o que seria ‘aquilo’, ele apenas respondeu que havia crianças ali. Minha única reação foi sair o mais rápido possível daquele shopping e chorar. Eu me senti tão pequena. Outra situação também aconteceu em um shopping. Era época de eleições e nós passamos de mãos dadas por um quiosque da Cacau Brasil. O atendente do quiosque olhou a gente o tempo todo e gritou ‘O Bolsonaro vai ser presidente!’. Não respondemos”, expõe Letícia. A situação fez com que ela entrasse em contato com o shopping e com a Cacau Brasil, que se desculpou e demitiu o funcionário.
Vanessa Delai, 21, estudante de Psicologia, teve a principal memória da discriminação gravada pela própria família. “A discriminação que mais me marcou veio da minha família, tanto por palavras quanto por ter sido colocada para fora de casa, por todos terem dificuldade de aceitar. Sem contar os olhares na rua que percebo, alguns comentários que escuto”, frisa. Apesar disso, ser lésbica para a estudante nos dias atuais representa um misto de sentimentos. “Eu tenho o privilégio de estar cercada por pessoas que me aceitam, que me entendem, só que não é o tempo todo que eu vou estar cercada por essas pessoas. Sempre vem aquela insegurança de quando eu vou sair para algum lugar, ou procurar um emprego, ou até mesmo trabalhar, do que as pessoas vão achar, se isso vai influenciar, se eu vou sofrer preconceito de alguma forma. O ponto principal disso para mim, pelo menos, é a insegurança de como isso pode afetar nas minhas relações para fora do meu meio. Ao mesmo tempo, é gratificante por ver tudo o que o movimento está conseguindo, e estar participando disso, também, tanto como mulher quanto como lésbica, ver essa mudança”, finaliza Vanessa.
Aurora da aceitação
Desde criança, Letícia já percebia que as mulheres pareciam mais interessantes. “Cheguei a um ponto em que pensei que precisava ser homem, porque era o que eu tinha sido ensinada. Fui ensinada que para amar outra mulher eu não podia ser mulher. Lembro de dormir várias noites desejando acordar diferente, eu devia ter cerca de 6 ou 7 anos. Conforme fui crescendo, fui entendendo, porém minha aceitação foi lenta”, conta Letícia. Aos 13 anos, ela se apaixonou por outra menina e foi correspondida, o que causou dor no início, fazendo com que ela escondesse o relacionamento e reavaliasse seus sentimentos constantemente.
“Ficamos juntas por cerca de quatro anos e toda a minha confusão fez com que nosso relacionamento fosse extremamente doloroso e chegasse ao fim. Quando esse relacionamento acabou eu me forcei a me relacionar com homens. Eu já estava com 17 anos e continuava não me aceitando. Foi uma época horrível. Aos 19 anos eu comecei a pesquisar mais, conheci alguns movimentos dentro do LGBTQIA+, fiz amizades incríveis e extremamente importantes para o meu amadurecimento. Então, eu finalmente fui capaz de gritar para o mundo quem eu era e me orgulhar disso”, expõe a publicitária.
O questionamento de Vanessa sobre a própria sexualidade aconteceu mais tarde, por conta do ambiente religioso em que cresceu. “Para mim era estranho, porque eu venho de uma família religiosa. Eu sempre percebi que era mais próxima de meninas, que gostava mais de estar com meninas, sentia mais atração por meninas. Eu lembro que via todas as minhas amiguinhas gostando de meninos e eu não conseguia. Mas eu não me questionava na época. Com a chegada da adolescência, eu me sentia diferente com relação à proximidade entre meninos e meninas, o que era estranho porque, de novo, eu via minhas amigas saindo e conhecendo meninos e eu não tinha vontade. E aí eu sentia que de algumas meninas em específico eu gostava mais, sentia uma certa atração, mas acho que na época eu me reprimia bastante”, comenta ela. Ao se desprender da religião e parar de frequentar as reuniões, o processo de aceitação começou a andar.
Carla também não conseguia entender o fascínio que tinha por algumas amigas desde criança. Porém, só teve um relacionamento com outra mulher na faculdade. “Até então, eu já havia tido vários namorados. Mas até aí, o contato que eu tinha com algumas amigas começou a interferir nas relações. Só que eu não conseguia entender, eu fui entender bem mais tarde, com 20, 21 anos que aquilo eram várias paixões. Só fui entender mesmo quando tive uma paixão muito forte que se concretizou. Aí é que fui entender que tudo aquilo que eu tinha passado anteriormente, tudo aquilo que eu tinha sentido eram paixões. Mas eu levei muito tempo, fui muito lerda nesse sentido”, ri Carla.
Hoje, a jornalista acha graça desse processo, já que tudo estava ali o tempo todo, mas não foi percebido. “Aí é que você vê o preconceito que tem em você mesma. Mesmo sem saber, mesmo sem nunca ter pensado sobre isso. Era tão naturalizado que fosse com um homem que você não pensava que aquilo que estava sentindo podia ser outra coisa. Então aí eu acho que já vem a nossa criação, aquele negócio do caminho que a gente tem que seguir, que já está predestinado. E isso para mim foi tão forte que eu nem consegui ver o que sentia”, destaca Carla. Em Ribeirão Preto, anos depois dessa descoberta, ela encontrou um dos grandes amores da vida.
“Eu acho que é raro encontrar uma pessoa que te complete. Eu não casei em cartório, nada disso. Mas era um casamento, com tudo que um casamento tinha direito. Até a enteados, a netos. E foi uma experiência muito interessante, ela era uma pessoa muito fantástica. Uma pessoa que tinha uma história de vida impressionante. E eu aprendi demais”, revela Carla. A lembrança que fica dos anos de plenitude é a alegria. “O que mais me marcou, você me pergunta. A alegria. Porque todo dia tinha uma mesa de café da manhã, tinha um bilhetinho carinhoso, todo dia tinha respeito, todo dia tinha um cuidado muito grande. Então, eu só consigo pensar em coisas boas. Eu só consigo pensar em alegria. É curioso isso, né. Você ter conseguido ter uma vivência tão intensa em que a alegria sai de coisas cotidianas. Eu acho que isso é a verdadeira felicidade. E nesse ponto eu me senti muito plena. Eu acho que sou muito feliz porque eu tive poucas relações, mas todas muito intensas, e acho que em todas consegui viver essa felicidade”, finaliza. Daisy Gomes, a esposa de Carla, faleceu em 2016.
Velha roupa colorida
Elas venceram. Mas o sinal está aberto para aquelas que são jovens. Apesar de o mundo ainda ser um local inseguro para as lésbicas, a luta diária garante novos caminhos.
Vanessa acredita que o posicionamento é uma das maiores ferramentas para a abertura desses caminhos. “Eu busco trazer meu posicionamento nos meus meios de discussão, porque hoje em dia o posicionamento é uma das coisas mais importantes, independente do lugar em que estamos. Trago esse assunto à tona em forma de diálogo e tento desconstruir isso nas pessoas ao meu redor”, comenta a estudante. “O preconceito ainda vem muito em piadinhas, as pessoas acham que não tem problema e que aquilo não é homofóbico, mas a gente sabe que na verdade é. Hoje o preconceito não é tão desmascarado quanto antigamente, mas ainda existe. Só que ao mesmo tempo dá para ver que está acontecendo certa mudança, mais diálogos estão sendo abertos para isso”, expõe.
Para Carla, as pessoas continuam conservadoras. Porém, tanto as lésbicas quanto os outros grupos LGBTQIA+ têm aberto caminho se impondo. “Eu não acredito que o mundo tenha mudado. Eu não vejo menos preconceito hoje. Comigo, por exemplo, tudo aconteceu na década de 1980. Era tudo muito velado. Você não ia à porta de um bar gay e via as pessoas ficando livremente, imagina! As pessoas se continham muito quando tinham algum comportamento que era meio desviante em relação ao resto. Era muito velado e por ser velado, você consequentemente não dava gatilhos para reações extremadas. Hoje, por exemplo, eu vejo muito mais reações extremadas do que via antes, mas por quê? Porque as pessoas estão indo para a rua, as pessoas estão se impondo. Às vezes as pessoas até queriam te agredir lá atrás, na década de 1980, mas não tinham como. Porque como você não se expunha, não deixava claro seu sentimento, não colocava aquilo em público, o preconceituoso não tinha como justificar uma ação extremada. Hoje não, as pessoas se colocam, se posicionam, acaba ficando tudo muito mais escancarado”, expõe. Ela acredita que o Brasil ainda é um país extremamente preconceituoso, mas que o posicionamento foi a chave para mudar a realidade.
“A pauta LGBTQIA+ vem ganhando cada vez mais importância e tem sido cada vez mais discutida, o que é ótimo. Mas a nossa realidade ainda está longe de ser perfeita, vivemos em uma época com muito conservadorismo que nos empaca em várias conquistas. Ainda temos países onde quem eu sou é considerado crime, ainda temos diversas mortes motivadas por homofobia, até alguns meses atrás, homens gays não podiam doar sangue no Brasil. Mas sim, eu vejo uma mudança”, salienta Letícia. Ela acredita que do ponto de vista da perspectiva histórica, a comunidade LGBTQIA+ vive uma situação melhor, em que muitos direitos foram conquistados, em que a homofobia é crime e em que ela pode, finalmente, se casar com a mulher que ama.
A publicitária procura estar engajada dentro do movimento por meio de doações, do apoio a artistas LGBTQIA+, do estudo, entre outras participações. “Procuro comparecer a eventos, a palestras e a paradas do orgulho LGBTQIA+. Inclusive, fica aqui minha indicação para conhecer o trabalho da ONG Primavera de Sertãozinho”, expõe Letícia.
Em 29 de agosto de 1996, acontecia o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas no Rio de Janeiro. Assim, a data ficou institucionalizada como o Dia da Visibilidade Lésbica no Brasil. Ainda que uma história de amor e luta seja invisibilizada pelos que não sabem o que é isso, os caminhos se abrem com muito suor para as próximas que vêm. O amor de uma mulher para outra é revolucionário.
A série “Além do arco-íris” visita, no próximo episódio, a letra G do LGBTQIA+, e traz relatos e vivências da comunidade gay. É amanhã, não perca!
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