Kimberly Souza
Se apresente para a gente. Foi a indagação que iniciou nossa entrevista, em uma tarde de sexta-feira, por telefone: “Sou a Wallie Ruy, tenho 33 anos. Em São Paulo vivo, mas me considero do mundo”.
A Persona desta edição é, por si só, um grito de resistência que vem ecoando cada vez mais longe. É feita de agoras, de poesia e de muita arte.
Wallie Ruy é atriz, mulher trans y mais (sempre mais), como ela reafirma sempre. Nasceu no interior de São Paulo, estudou em Minas Gerais e, como disse no começo da entrevista é do mundo.
Talvez você não esteja ligando o nome à pessoa, a princípio, mas aqui vão duas grandes referências – só para começar: Wallie participou do clipe Vai Malandra, da funkeira Anitta e atua na série Carcereiros, da Rede Globo.
“Atuo também no Teatro Oficina, dou cursos no Senac, em áreas como teatro, tevê e publicidade. Paralelo a isso, participo de produções audiovisuais, no cinema, na televisão e em outras performances”
Comtempo: Quando e onde você nasceu?
Wallie: Nasci em Bebedouro, dia 05 de março de 1983, na Santa Casa. Minha gestação e meu parto foram complexos. Meu nascimento já significou uma prova de resistência a mim e à minha mãe.
Comtempo: Como e quando decidiu ser artista?
Wallie: Eu não decidi. Ser artista é orgânico e genuíno, é imaterial e a gente que transforma em algo material. Não sei ao certo se nasci ou se aconteceu, mas creio que está correlacionada à minha existência. Eu me entendi artista quando percebi que a vida tem ardores e isso envolvia processos. Existem caminhos que percorri durante o curso de artes cênicas (na Universidade Federal de Ouro Preto, em Minas Gerais), que eram orgânicos mas que adquiri técnicas para atingir o que eu desejava. Com a faculdade, agreguei amigos e percebi que é uma carreira que preciso me aperfeiçoar sempre.
Comtempo: Como foi seu processo de formação profissional?
Wallie: Estudei em Ouro Preto entre 2004 e 2008 e permaneci por lá por mais 2 ou 3 anos para trabalhar. E, desde quando comecei a graduação, eu trabalhava e estudava. Vim para São Paulo em 2010 para trabalhar com Produção, mas acabei trabalhando com o que não tinha nada a ver com a minha carreira, mas tinha a ver com o meu sustento. Depois de um tempo, abandonei tudo para seguir a arte. Hoje me sinto realizada e viva na minha fogueira.
Comtempo: Você participou do clipe da Anitta e atua na globo, em séries como Carcereiros e também no teatro. Como isso vem marcando sua carreira e sua vida?
Wallie: Digo que sou nascida no teatro. Falo que sou atriz, majoritariamente do teatro mas, desde 2017 estou inserida no audiovisual e através dele, é que veio a visibilidade. A gente pensa que só está realizado quando vai para a tevê, mas foi no teatro que me descobri enquanto ferramenta e fogueira. Com o Teatro Oficina eu tenho adquirido muito conhecimento e percebi que o fazer teatral acontece ao nosso redor. Atravessamos além da 4ª parede, ignoramos o teatro e passamos a dialogar diretamente com o público, se comunicar com a rua e além dela. A partir de 2016 iniciei um grande processo de visibilidade: participei do Liberdade de Gênero, no GNT e, a partir disso, houve um grande alcance às pessoas, identificação e muitos feedbacks. Também participei:
DocTrans, na GloboNews
Algumas publicidades da Avon
Primavera das Mulheres, no GNT
Toda Forma de Amor, no Canal Brasil (ainda não foi lançado)
Me chama de Bruna, na Fox
Transando com a Laerte, no GloboSat
Carcerários, da Rede Globo
Vai Malandra, clipe da Anitta
Comtempo: Como o preconceito te atingia e atinge hoje?
Wallie: Quando falamos de preconceito, falamos de lugar de fala e privilégios. Antes não se falava sobre trangeneridade, era algo pragmático. A referência que se tinha sobre mulheres trans era da prostituição como único caminho e eu conseguia me enxergar só nesse contexto, que eu jamais teria apoio profissional e familiar, que eu seria devastada por doenças sexualmente transmissíveis e as psicológicas. Eu recusava qualquer titulação porque eu não me encaixava. Minha aceitação começou com a Laerte, pois comecei a racionalizar e refletir e entendi que eu pertencia. De certa forma, antes disso eu rechaçava a transgeneridade mas, quando passei a aceita-lo, o sistema passou a me rechaçar. Hoje eu tenho representatividade política, mas não tenho (e não temos) acolhimento social. Ainda somos fadadas à prostituição. Nossa expectativa de vida ainda é de 35 anos. Ainda sofremos com violência psicológica, física, moral. Hoje se fala em inclusão, mas ela não nos integra. Hoje sofro de uma discriminação invisível, me olham, meu corpo é subjugado e hiperssexualizado. Mas tenho que enfatizar meus privilégios. Tive e tenho acolhimento familiar, social e dos amigos. Tenho uma graduação. Sou branca. Eu não sofro preconceito por estes motivos mas, enquanto minha mana preta da periferia sofre, eu também sofro e me torno responsável por ela. Enquanto não houver igualdade para nós duas e todas as outras, eu continuo sofrendo também.
Comtempo: O movimento lgbtq+ tem firmado seu espaço na sociedade. Apesar disso, vivemos em um momento político que permite ainda mais a violência. Acha que isso pode fazer o movimento regredir ou é uma oportunidade para avançar?
Wallie: Esse governo genocida não vai fazer a gente regredir porque o movimento não vem de hoje. A violência sempre existiu e hoje ela é incentivada. Minha população sempre morreu e, mesmo assim, a gente tem lutado e se firmado enquanto visibilidade política. Vamos encontrando novas maneiras de existir, quanto maior a pedra, maior a escalada, mas vamos continuar escalando e caminhando de mãos dadas.
Comtempo: Qual sua utopia?
Wallie: Não acredito em utopia. Tudo é possível, tudo é realizável. Mas, o que está distante de ser realizado, mas vai ser realizado em breve, é de que somos todos um só e precisamos encontrar maneiras de existir.
Comtempo: Qual seu sonho?
Wallie: É que as pessoas possam viver sem qualquer barreira ou impedimento. Meu sonho é que todos possam ver sem véus lhe tampando os olhos.
Comtempo: Como você vê a Wallie no futuro?
Wallie: É complexo, porque vivo muito o presente. As coisas se entrelaçam e, por isso, acredito que não exista passado e futuro. O melhor lugar é aqui. A melhor hora é agora. Wallie é aqui e agora.
Comtempo: Indique um livro, um filme, uma música e uma peça de teatro.
Wallie: O livro eu indico Teoria King Kong, de Paul Preciado, que conta o processo de existência enquanto corpo e fala da utilização de hormônios masculinos do autor, que é um homem trans. O filme, Laurence Anyway, do diretor canadense Xavier Dolan. O filme fala sobre uma professora que se afirmou uma mulher trans através de uma vivência muito poética. A música que indico é O Amor, de Maria Betânia. E a peça, Roda Viva, em cartaz no Teatro Oficina, cujo texto é de Chico Buarque, encenado na ditatura militar. Hoje esse texto volta non mesmo contexto.
Comtempo: Por fim, deixe um conselho para quem está lendo.
Wallie: Quero desejar que as pessoas vivam na alegria e que possam gozar (em todos os sentidos) a vida.
A ComTempo tem como principal objetivo, abordar temas que precisam de mais liberdade, atenção, aprofundamento e espaço para discussão na sociedade.