Prontos ou não, que comece a segunda rodada! (Afinal, foram vários dias para pensar e se recuperar da última sessão de tapas metafóricos na cara).
O fato de haver diversos tipos e graus de perda de visão, de surdez, deficiência física e de distúrbios/disfunções de cognição, não quer dizer que pessoas cujas limitações/impedimentos implicam em menos adaptações, não enfrentam obstáculos físicos e humanos, ou que não sejam tão vítimas de preconceitos quanto aquelas cujas limitações/impedimentos. Óbvio que sim3. (Deficiência, afinal, é o resultado da interação de um corpo com limitações com corpos e espaços não limitados, e não uma mera questão de diagnóstico4). É a forma como lidamos com isso, entre outras coisas, que torna a implementação de políticas públicas para pessoas com deficiência ineficaz.
Na medida em que empregadores, desenvolvedores de produtos e prestadores de serviço podem, de certa forma, “escolher” (e eles podem) entre promover as adaptações necessárias que permitam o exercício tão autônomo quanto possível dos direitos e deveres de pessoas com deficiência cujas lesões lhes impõem mais limitações/impedimentos e “dar um jeitinho” (improvisar uma rampa feita de qualquer jeito ali, colocando um piso tátil mal feito acolá…), é isso o que a maioria deles fará5. Nesse sentido, aqueles cujas lesões dificultam, em grande medida, sua interação com as pessoas e os espaços seguem com muito poucas chances de acesso efetivo e digno ao sistema regular de ensino, aos serviços privados e públicos de saúde, ao mercado formal de trabalho, a opções acessíveis de entretenimento, etc, etc, ao infinito e além.
Dito isso, proponho um exame geral de consciência. Se você é do time dos que têm algum tipo de deficiência, mas só se lembra disso quando pensa nas cotas dos concursos públicos, na compra do carro com isenção de imposto ou nas meias-entradas e atendimento prioritário aos quais têm direito (e no restante do tempo pode passar despercebido, porque sua condição não é tão incapacitante, ou não é visível), será que precisa mesmo se valer desses artifícios? Ou se você já é do time daqueles que não têm algum tipo de deficiência que não se considera uma pessoa preconceituosa, mas acha que dá muito trabalho adaptar os espaços e a si às necessidades e especificidades de alguém com lesões e impedimentos variados (e muito provavelmente come torta de climão quando algum deles aparece), será que mudar a forma de lidar com essas pessoas é mesmo tão difícil?
Particularmente, eu responderia a essas duas últimas perguntas com um sonoro e enfático não. Particularmente, ainda acredito no princípio da equidade que, basicamente, nos diz: pessoas diferentes podem (e vão) encontrar soluções diferentes para um mesmo tipo de problema e a mais eficiente delas não será nem a minha nem a sua, mas a que formos capazes de planejar, implementar e fiscalizar em conjunto – pelo menos, é assim que eu penso. Mas e você, o que me diz: topa pensar sobre isso (e muito mais) juntos?
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3 Isso aqui não é um campeonato da desgraça, em que os vencedores são aqueles enfrentam mais dificuldades na vida em razão da deficiência. Primeiro, porque as deficiências e as dificuldades existem em contexto, ou seja, em relação a alguma coisa; em segundo lugar, porque a percepção de uma e outra coisa é particular e subjetiva, ou seja, posso achar que uma pessoa com cegueira total enfrenta bem mais dificuldades que eu e ela pensar o exato oposto em relação a mim, que tenho baixa visão.
4 Para mais informações, recomenda-se a leitura da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2007, e da Lei Brasileira de Inclusão, de 2015.
5 Para o caso dos empregadores, existe a obrigação legal de contratar pessoas com deficiência na chamada Lei de Cotas, de 1991, e no Regime Jurídico dos Servidores Públicos, de 1990. Em relação à oferta de produtos e serviços, a supracitada Lei Brasileira de Inclusão, diz que, sempre que possível, estes deverão ser disponibilizados em formato acessível, o que não acontece efetivamente.
Mestre em Ciência Política pela UnB, consultora em acessibilidade e digital insistencer (porque só na base da insistência é que se muda alguma coisa).