Qual o preço de uma alma? – Parte 1

    “A morte de uma pessoa é uma tragédia;

    A de milhões, uma estatística.”

    Esta citação, adaptada diversas vezes, atendendo também a diversas finalidades, é atribuída, ainda que sem uma confirmação definitiva, a Josef Stalin. Invariavelmente, ressurge em algum momento de imensa tragédia com a intenção de fazer prevalecer as memórias individuais das vidas perdidas, uma busca por conforto, um afago para aqueles que ficaram. Porém, em outras situações, busca imprimir uma dose de inevitabilidade à tragédia. 

    Os dias de setembro trouxeram uma luz – ou sombra – sobre esse pensamento, o das perdas. Em um exercício de memória rápido, com alguns efeitos bastante dolorosos, as duas primeiras décadas deste século pareceram acomodar essa citação, repetindo-a mais vezes do que o suportável, em alguns casos como uma resignação inescapável, em outras, como uma justificativa obscena.

    Entre atentados, terremotos, tsunamis, erupções, desastres aéreos, barragens rompidas, enchentes, inundações, ciclones, furacões, assaltos, roubos, raptos, chacinas e epidemias, o que prevaleceu foram as estatísticas. São válidas como documentação, mas absolutamente impessoais e desprovidas de qualquer sensibilidade, como deve ser um dado essencialmente imparcial. As almas que se ergueram em cada um desses eventos, as vidas interrompidas, de qualquer espécie que seja, têm significado para alguém. Aos humanos, em particular, é a vida como a essência que dá sentido à alma. Isso não é imparcial.

    Parece inconcebível que estejamos tão acostumados às fatalidades da existência? Podemos ter chegado ao ponto de aceitarmos, passiva e pacificamente, tantas mortes ocorridas por “causas não naturais” que, caso não se acumulem fisicamente de forma mórbida como já aconteceu em tempos passados e inesquecíveis de guerras, acumulem-se em planilhas e listas e relações e relatórios tão cruéis quanto uma arma disparada à queima-roupa.

    O conflito mais recente, que nos risca fundo na própria carne, não é bélico, ao menos não formalmente. O armamento empregado é o do discurso detestável, da retórica do ódio, da ofensa encoberta por instrumentos digitais que enredam a sociedade em um ciclo sanguíneo de afrontas e ofensas produzidas por entidades que sequer são vivas, rudimentos de uma ideia equivocada replicada por algoritmos desprovidos de consciência.

    Nesse cenário, o respeito e a dignidade tornam-se produtos raros, destinados a poucos, àqueles merecedores de um regalo em virtude tanto de seu histórico em vida quanto do legado deixado às futuras gerações. É discutível a honraria dedicada a um herói de guerra cujo feito tenha sido o de sobreviver (a qualquer custo) às empreitadas inimigas e, no processo, exterminar seus oponentes. Talvez não tenha desenvolvido plenamente essa parte da minha percepção, distorcendo meu juízo de valores no que diz respeito à vida, portanto parece a mim inadmissível comemorar a sobrevivência de uma pessoa – talvez um filho – que eliminou, em batalha, um inimigo – talvez um pai – ambos alvos recíprocos de uma estatística que virá e explicará com refinamento justificado o motivo de aceitarmos tais resultados.

    Mas não temos vivido esse tipo de guerra bélica no Brasil. Não nos últimos anos, nos meses mais recentes. Temos visto lutas, algumas delas físicas, sim, entre pessoas que sempre foram consideradas “de bem”, amigos e família. Há bem pouco tempo, uma parcela desses discordantes passou a rever as motivações de seus conflitos e combates. Sincero ou não, pouco importa neste momento. O fato que merece destaque é a escolha dos temas que supostamente têm levado a esse repensar de posturas, entre eles a Liberdade, a Independência e a Democracia, surpreendentemente discutidas como se fossem algo recém chegado à nossa sociedade.

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