Águas passadas e um moinho quebrado – Parte 2

Memória e História existem para que, juntas, façam única a mente de uma pessoa. Escolher apenas uma é embaçar a lente que nos mostra a realidade.

A barreira maior é a de abrirmos mão de algumas concepções prévias construídas sobre distorções e manipulações parciais e interesseiras, que sorriem carinhosamente enquanto nos contam as mais sórdidas mentiras. Não é fácil rever conceitos, principalmente aqueles que negamos ou ignoramos carregar conosco desde sempre, sem sabermos de suas origens e para os quais, muitas vezes, sequer dedicamos alguma atenção para compreender o que significam. Os movimentos contra o aquecimento global, o consumo de carne, a exploração ambiental, a igualdade de direitos e representatividade de gêneros, só para citar alguns dos mais presentes.

Imagino que, para as futuras gerações, cuja educação não seja um procedimento meramente funcional, mas de construção de conteúdo e repertório, a estátua de um personagem histórico cujos atos, em seu tempo, foram justificados e aceitos como corretos, mas, atualmente, constituem crimes brutais impensáveis, deva ser mantida íntegra, não como uma homenagem a ele, mas como um recordatório daquilo que não cabe mais em uma sociedade madura. Da mesma forma, essa maturidade cobrará a consciência para que não se pratique um policiamento ideológico ou uma antecipação a um potencial crime contra essa sociedade. Isso é tema de obras de ficção científica.

O que proponho é mantermos vivos esses exemplos, tal qual Lovecraft. Recentemente, uma editora adaptou para novos contextos alguns dos contos do autor, no formato de histórias em quadrinhos. A maneira como isso foi trabalhado imprimiu humor, sarcasmo, uma atualidade própria para o tratamento de atos e pensamentos que não têm mais o mesmo espaço nos nossos dias. Não discutem os valores e ideais desses contos – nem é o lugar para isso, sendo uma HQ mais fluida – mas, segundo a arte de cada desenhista e roteirista, desenvolve o conto de forma a se fazer entender. Em alguns casos, soturno e aterrorizante; em outros, com um humor quase displicente. Nos dois casos, o resultado é certo: ou aquela história é tão assustadora e impensável que deve ser evitada de acontecer na realidade a todo custo, ou é algo tão inconcebível e descabido que nem deve ser levado a sério.

A inúmera variedade de fobias que temos nos rondando, desde aquelas relacionadas à cor da pele e gênero, até as que apontam discriminatoriamente para o seu peso ou suas ideias sobre religião e política, nos torna, muitas vezes, mais frágeis do que fortes em nossas lutas e reivindicações por direitos e respeito. “Minorias” deveria ser uma palavra em desuso, mas alguns grupos ainda a empregam suntuosamente. Os meses arrastados que tiveram início em 2019 e quase estagnaram em 2020 e 2021 deveriam ter deixado muito claro que não há espaço racional ou emocional para tantas fobias. Tudo aquilo que elas destacam como diferenças vai por terra quando observamos os efeitos causados sobre a humanidade, sem qualquer exceção, por uma pandemia, uma política desvairada, uma cultura que não é capaz de se identificar pois ainda apregoa uma luta medieval entre religião e ciência.

Hoje, infelizmente, o que encontramos é um cenário turbulento e desequilibrado entre a razão e… qualquer outra coisa! O que vemos são ações e discursos que demonstram ignorar ou ainda serem incapazes de entender o valor da vida.

Apagar os capítulos terríveis da nossa História, revisá-los, por puro oportunismo ou ignorância, é o famoso passo dado para trás no percurso de uma civilização. Para crescermos, precisamos aprender, e será mais eficiente se for por meio do entendimento e admissão dos próprios erros passados. É muito mais trabalhoso, sem dúvida. Exige de todos uma mente aberta que nem sempre está disponível ou, sequer, existe. Faz com que enfrentemos nossas próprias falhas e preconceitos. Nos força a pensar e, dando um passo para a frente como civilização, explicar aqueles erros e danos causados anteriormente, que não deverão ser repetidos ou aceitos, pois colocam em risco a qualidade e continuidade da vida.

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