Águas passadas e um moinho quebrado – Parte 1

Uma opinião não se fundamenta apenas sobre aquilo que vemos, objetivamente. É necessário um olhar atento, crítico, que vá além da capa que tudo reveste, mesmo que essa capa seja intimidadora.

Os últimos anos mostraram-se curiosamente revolucionários, não em relação ao presente e futuro, mas em relação ao passado. Uma onda avassaladora de revisionismos, releituras e reinterpretações tomou conta de diversos campos da produção cultural e da ciência. Artistas e autores, até então consagrados, tornaram-se persona non grata; suas obras, em processo de esquecimento pelas tentativas de apagá-las da existência.

Entre esses tantos, (res)surge H. P. Lovecraft. Notadamente racista e xenófobo, relativamente esquecido até alguns anos atrás, ganhou destaque com a publicação de vários de seus livros e contos. Quem já leu alguns deles, possivelmente percebeu a presença de uma certa “masculinidade tóxica” – na falta de uma expressão melhor – em suas narrativas.

Lovecraft, assim como alguns de seus contemporâneos, retratavam, viviam e, infelizmente, acreditavam nas práticas daquele seu próprio tempo, chegando mesmo a defendê-las. Digo infelizmente porque algumas dessas práticas tornaram-se inaceitáveis para uma sociedade que busque aprimorar-se sem que conquistas espúrias e discriminações contribuam para esse avanço.

A sociedade tende a amadurecer.

É o sinal dos tempos.

Entretanto, algumas das condições que levam a esse novo plano de existência, que promova a igualdade e o respeito, podem ser um pouco… atrapalhadas. Nem sempre a maturidade de uma sociedade é algo simples de se alcançar. Se, individualmente, é um percurso árduo, coletivamente torna-se tortuoso e equivocado.

Costumo discutir muito esse tema, por acreditar que não evitamos que erros cometidos no passado, próximo ou remoto, se repitam ao apagar suas ocorrências e seus perpetradores. Não creio que, lançando no esquecimento do limbo imemorial – atualmente chamado de “cancelamento” – toda e qualquer referência ao movimento nazista evite que algo parecido, no futuro, não possa surgir e ganhar espaço. Da mesma maneira, mas em doses distintas, negar todo o mal que foi causado por esse movimento, tanto em seu próprio tempo quanto nos dias atuais, não é aceitável. Ao contrário, é indigno. Apagar ou “reinterpretar” a História implica em fazer o mesmo com aqueles que foram vítimas desses atos.

Tenho como conduta fazer entender esses períodos da História, para que não se repitam de forma alguma, para que seja possível detectar sua aproximação, em outras roupagens, modernas e sedutoras, mas que acobertam intuitos e intenções conquistadoras, discriminatórias, negacionistas. Mantê-los na consciência coletiva é fazer com que toda uma população, alerta e consciente, participe do amadurecimento dessa sociedade.

Concordo com todas as críticas que apontam para a dificuldade e fragilidade dessa conduta, algumas, exageradamente, confundindo a preservação da memória com alguma forma de apologia ideológica. Por esse motivo é importante o conhecimento histórico, político, social, científico de uma cultura, fazendo de cada um desses saberes algo acessível, não hermético e acadêmico, mas didático e compreensível.

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