Inclusão Escolar – Um Debate Político e Social

Por Sérgio Fraga

Na última edição da ComTempo, publicamos a matéria Precisamos falar sobre inclusão escolar, através da história da fotógrafa Jéssica Mendes. Agora, queremos ampliar este debate.

No dia 30 de setembro de 2020, o Governo Federal decretou a nova Política Nacional de Educação Especial (PNEE), substituindo a Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008.

De acordo com o artigo 4° do decreto 10.502, os objetivos da nova PNEE são: garantir os direitos constitucionais de educação e de atendimento educacional especializado aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação; promover ensino de excelência; assegurar o atendimento educacional especializado como diretriz constitucional; possibilitar acessibilidade a sistemas de apoio adequados.

Além de proporcionar aos profissionais da área a formação de orientação equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida; valorizar o ensino especial como processo que contribui para a autonomia, o desenvolvimento da pessoa e também para a sua participação efetiva no desenvolvimento da sociedade; e assegurar aos educandos oportunidades de educação e conhecimento.

Essa proposta foi elaborada pelos ministérios da Educação (MEC) e da Mulher, Família e dos Direitos Humanos (MDH). Por esse motivo conversamos com Hellayne Meneses. Ela é terapeuta ocupacional e coordenadora de Monitoramento e Acompanhamento de Políticas Públicas da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Essa secretaria é órgão do MDH.

Para Hellayne, o atual decreto pretende aumentar as alternativas propostas com o objetivo de ampliar o foco na equidade e na aprendizagem ao longo da vida, a diversificação das possibilidades de organização escolar (classes e escolas especiais e bilíngues de surdos, além das classes e escolas comuns inclusivas), e a ampliação da oferta de produtos e serviços, inclusive com a criação de novos centros de atendimento educacional especializado.

“Os benefícios incluem um processo de decisão da família ou do educando quanto à alternativa educacional mais adequada, aumentando as possibilidades e a eficácia de projetos pedagógicos individuais, que amparam e possibilitam suporte suficiente para assegurar a educação plena dos estudantes. Além disso, espera-se ambientes escolares acolhedores e inclusivos; maior desenvolvimento das potencialidades; oferta de acessibilidade ao currículo e aos espaços escolares; maior participação de equipe multidisciplinar no processo de decisão da família ou do educando quanto à alternativa educacional mais adequada; e implementação de escolas bilíngues de surdos e surdocegos”, acrescenta a coordenadora.

Repercussão deste decreto

Conforme Hellayne, no decorrer da história a educação sofreu diversas modificações positivas. A principal delas foi assegurar a perspectiva da educação inclusiva. Entretanto, deve-se levar em consideração a total efetividade dessas ações no Brasil, visto que elas estão alinhadas a um processo histórico excludente. 

“Dessa maneira, é incoerente responsabilizar apenas as políticas públicas como meio de garantir a inclusão, visto que essa responsabilidade se impõe perante a todos os cidadãos. A educação inclusiva não exclui a real necessidade imposta em situações específicas da oferta de outras modalidades educacionais. Argumentar irrefutavelmente, sem dados baseados em evidências, de que todos os alunos com deficiência se beneficiam somente das classes inclusivas enfraquece a alegação de ‘igualdade de oportunidades’, da ‘diversidade das pessoas com deficiência’ e da ‘liberdade para fazer as próprias escolhas’, principalmente no que diz respeito ao acesso à educação”, pontua Hellayne.

Para a coordenadora, a Constituição Federal de 1988 responsabiliza o poder público na obrigação do ensino e admite o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, o que nos leva a reflexão de que o ensino de cada criança não pode basear-se apenas em polos distintos de “tudo ou nada”, mas sim ser visto como um processo que possui vários níveis ou etapas que visam atender a todos os educandos. “Dessa maneira, as etapas de ensino mais adequadas são as que favorecem individualmente as necessidades dos alunos em um determinado contexto social, acompanhando o seu pleno desenvolvimento diante das diversas barreiras existentes mundialmente”, afirma Hellayne.

Porém, nem todos estão de acordo com as mudanças que essa nova lei pode ocasionar. O parlamentar Fabiano Contarato – senador pelo estado do Espírito Santo, do partido Rede Sustentabilidade – destaca que a nova Política Nacional de Educação Especial é excludente e incompatível com a inclusão e com as normas jurídicas, como a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil com Emenda à Constituição. “A Convenção obriga o país a implementar um sistema educacional de inclusão, de inserção na comunidade e de combate à segregação e à exclusão em razão da deficiência”, explica.

“O decreto do governo não ouviu as pessoas interessadas no assunto e o Estatuto da Pessoa com Deficiência teve normas contrariadas. O sistema educacional deve garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena. Gestores de escolas particulares poderão, com esse novo decreto, dificultar o acesso ou recusar a matrícula de alunos com deficiência”, finaliza Contarato. 

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, suspendeu a nova PNEE em 1º de dezembro de 2020. No dia 18 do mesmo mês, o STF formou maioria de votos a favor de manter a suspensão do decreto do Governo Federal sobre a educação especial.  Acompanharam o voto do relator (Dias Toffoli), os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Cármen Lúcia, Rosa Weber e Luiz Fux.

Sobre a suspensão: “Entendemos que o decreto em questão visa sanar o pressuposto de que apenas um processo de inclusão seja realizado diante da impossibilidade de comparar todos os contextos sociais brasileiros, em seus diferentes entes federativos, sem levar em consideração os mais diversos cenários da realidade do país”, elucida Hellayne.

Para a coordenadora, padronizar o processo educativo em apenas uma vertente diminui a oferta de serviços educacionais sem levar em consideração de que o Brasil necessita de uma reformulação de currículos, de formas de avaliação dos alunos e da formação dos professores para alcançar uma política educacional mais democrática.

“A sustação e não a reformulação do Decreto Federal nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, retira a possibilidade de regulamentar o ensino especial como um ambiente de apoio que alavanca para o favorecimento da inclusão escolar e social das pessoas com deficiência”, conclui Hellayne.

Histórico da inclusão escolar no Brasil

Para entender melhor sobre esse assunto, a ComTempo conversou com Karina Soledad, pedagoga especialista em Deficiência Intelectual,  mestra em Educação, Ciência e Tecnologia e doutora em Psicologia da Educação.

Karina atua na Faculdade de Educação na Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, orienta na área da Formação de Professores, Educação de Surdos e Surdocegueira; e ministra disciplina teórica e estágio no curso de Pedagogia.

Ela decidiu se aprofundar no tema ainda no Magistério, sentia que os estudantes que estavam nas classes especiais, isso nos anos de 1980, não tinham deficiências e, sim, dificuldades.  Por isso, cursou Pedagogia com especialização na área da deficiência intelectual e, desde então, tem estudado o assunto a partir da formação de professores e didática.

A doutora explica que o decreto nº 10.502 é um retrocesso para as políticas de inclusão escolar, que seria uma perda de mais de 60 anos em avanços nos princípios e paradigmas de ensino. “Não se pode esquecer que no ano de 2015 temos a promulgação da Lei da Inclusão da Pessoa com Deficiência, que resguarda o direito à escolarização e comunicação. A nova PNEE vai contra mais de 25 anos de luta mundial pelo direito à educação de minorias, dentre elas as pessoas com deficiência”, esclarece. 

“Na Declaração de Salamanca – uma resolução das Nações Unidas que trata dos princípios, política e prática em educação especial – ao definir a educação inclusiva como princípio para o ensino de todos, é preciso retomar o conceito de necessidade educativa escolar, cunhado nos anos 1970, a partir do relatório Warnock (documento preparado pela Comissão Britânica de Educação em 1978, referente às necessidades educacionais especiais das crianças), publicado na Inglaterra, no qual são descritas condições que dificultam a aprendizagem e que podem acontecer no processo educativo de qualquer estudante. Essas dificuldades de aprendizagem podem ser resolvidas com práticas diferenciadas”, pontua Karina.

Sendo assim, a doutora ressalta que nos países europeus esse é o conceito de educação inclusiva, no qual todos os educandos têm condições para o desenvolvimento e aprendizagem. Ela relata que nos EUA e no Brasil a inclusão escolar, como princípio, tem um público-alvo específico. “Em nosso país temos uma especificidade que é, a partir da política de 2008, atrelar a educação inclusiva à Educação Especial”, comenta a pedagoga.

A doutora enfatiza que a escolarização de pessoas com deficiências no Brasil viveu até o momento três modelos. O primeiro iniciou nos anos 40, do século passado, com a fundação de diversas Escolas Especiais, sob o paradigma segregacionista – para atender a estudantes com deficiência. Defendia-se na época que esses educandos aprenderiam mais com especialistas e com colegas nas mesmas condições. 

“Não podemos usar como sinônimo a Educação Especial e as Escolas Especiais e é justamente isso que o decreto propõe, a retomada das salas e escolas especiais, sob a defesa, questionável, de que as famílias teriam direito de escolha da escola em que seu filho irá estudar. Essa falácia surge como tentativa de copiar o que acontece em outros países em que ainda há um número muito pequeno de instituições especiais que atendem a estudantes com condições bastante específicas e com associações de diferentes questões”, afirma a pedagoga. 

Na década de 80, a doutora ressalta o surgimento do segundo momento, a Integracionista. Ela teve origem a partir de uma apropriação inadequada do conceito de Normalização, cunhada em países escandinavos, na qual a sociedade deveria criar circunstâncias para que todo cidadão pudesse ter acesso em condições dignas. “No Brasil essa concepção se restringiu a colocar estudantes com deficiência em classes e escolas comuns, caso ele não conseguisse acompanhar os demais colegas ele retornaria para a escola especial”, acrescenta Karina.

O terceiro momento foi a Inclusão Escolar, na década de 1990. Esse movimento teve início a partir de uma luta internacional pelo direito ao acesso e permanência com acessibilidade estrutural, pessoal e pedagógica, comenta a doutora. Ela também reforça que “na Europa, nos anos da década de 1990, temos a consolidação da Educação Inclusiva como princípio da Educação, portanto, pensando em todas as necessidades educativas especiais”.

Para Karina, no Brasil a educação inclusiva passou a ser o paradigma da política nacional de educação especial em 2008, contemplando apenas os estudantes público-alvo, ou seja, não envolve a todos que tenham alguma necessidade educativa especial. “O que deixa sem atenção e cuidados uma parcela grande de educandos com dificuldade de aprendizagem. Condições que não são deficiências, transtorno global de desenvolvimento e altas habilidades, que são as categorias definidas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), na redação de 2013”, esclarece.

Karina ainda relembra que em 2015 participou de um congresso em Lisboa, Portugal, em que havia representantes de mais de 24 países e neste encontro foi produzida a Declaração da Equidade Educativa de Lisboa. “Nele pudemos constatar que as dificuldades em todos os países são as mesmas. Neste encontro foi dito que a política brasileira tinha um texto excelente, o grande problema era a implementação desses princípios e o investimento público na formação de professores e acessibilidade para esses estudantes”.

O que precisa mudar, segundo a doutora, é que o princípio da educação inclusiva tem que estar presente no conceito e concepção como um todo e não apenas na educação especial. “Partindo do princípio de que a educação é um direito de todos, a possibilidade de aprender na pela diferença impacta de forma efetiva na formação acadêmica, pessoal e social de cada estudante. Considerando que a equidade é o caminho para oferecer a cada um o que necessita, seja infraestrutura física, pedagógica ou relacional. Todos aprendem, inclusive os professores que precisam repensar as práticas para tornar os conteúdos acessíveis. Não se constrói uma sociedade inclusiva sem pessoas inclusivas”, conclui a profissional.

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