Voz em movimento

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Escrito Por: Gabriela Sturaro e Talita Souza

Referência na luta contra o racismo e as desigualdades sociais, Carlos de Assumpção, de 93 anos, busca, pela poesia, empoderar o grito pela liberdade do povo negro

“O coletivo é quem manda. O coletivo é quem faz. Ninguém faz nada sozinho”. É dessa forma que Carlos de Assumpção procura dar eco aos seus escritos de resistência contra a opressão. Aos 93 anos, completados em 23 de maio, e considerado, por quem o conhece, um griot – palavra de origem africana usada para denominar alguém com o dom de preservar e transmitir histórias, conhecimentos e cultura de um povo – o poeta afirma, convicto, que o racismo não deve ser visto, apenas, como um problema do negro, mas de toda a população brasileira. “O racismo não prejudica só o negro. Prejudica o branco racista e o país. Porque somos a maioria da população e estamos quase todos na marginalidade. Infelizmente, é o que ocorre no Brasil”.

Essa noção de grupo, da necessidade de união para enfrentar os problemas sociais, sempre esteve presente na trajetória dele. Compõe uma postura de resistência, que dá o tom da mais recente obra, o livro “Não pararei de gritar”, da Companhia das Letras, que reúne alguns de seus principais poemas, e que foi organizado por Alberto Pucheu. Por causa da pandemia da Covid-19, o lançamento, no primeiro semestre deste ano, foi online.

A maior crise sanitária enfrentada pela humanidade é, aliás, cenário propício para que Assumpção erga uma voz de protesto. Chamando a atenção para a realidade das periferias, das favelas, denuncia que a marginalização deixa o negro mais vulnerável à doença. E, dando vazão às memórias de seus ancestrais, se impõe contra a invisibilidade. Assim, vai se tornando cada vez mais visível. Além do livro, foi tema de uma série de uma semana inteira na Globo News. E, mesmo ainda pouco conhecido, já chegou a ser comparado com Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, ícones da literatura nacional. 

Movimento negro

Foi em 1969 que Assumpção chegou a Franca-SP, em pleno período militar. Uma das épocas mais duras do regime. Naquele ano, junto com alguns colegas, se mobilizou para fundar o Movimento Negro na cidade. Conta que, antes disso, o único grupo de pessoas negras ativas ali era a Sociedade Luís Gama, um coletivo voltado para bailes e outras festas. Ele sabia da importância de estabelecer uma militância, o que foi feito por meio do jornal “Folha de Ébano”. “Convidei alguns jovens e fundamos esse jornalzinho. De colaboradores, tínhamos Serafim, Nicolau, Mariana Coelho, Rutinéa…”, diz ele, sem esquecer, mais uma vez, a importância do trabalho coletivo. “Mas era difícil manter o jornal. Tínhamos que fazer de tudo.”

Hoje, Franca conta com um vasto número de ações representativas do Movimento Negro. Um dos mais antigos, o “Sarau Protesto”, foi fundado e é dirigido por Assumpção, junto com Janaína Santos e Don Antena. Faz visitas em escolas e outras instituições da cidade e da região, como Ribeirão Preto, Batatais e São José do Rio Preto. Uma vez por mês, é organizado, também, na Casa da Cultura e do Artista Francano “Abdias Nascimento”. Sempre aos sábados. Mas, por causa da pandemia, os encontros têm sido online. 

O poeta explica que a ideia de criar o grupo foi inspirada na infância vivida na cidade natal dele, Tietê-SP. A mãe gostava de promover saraus. “Eu vi o sarau, de modo geral, dentro da minha casa. Minha mãe juntava uns meninos e meninas na Sociedade 13 de Maio e os ensaiava para falar poesias. Faziam uma rodinha e eu ficava assistindo. Ainda era muito novo e não sabia quase nada. Ficava olhando e aprendendo. Vendo minha mãe ensinar, criei gosto pela coisa”.

O nome do grupo faz referência a um famoso poema de Assumpção, “Protesto”, que foi traduzido para o inglês, o francês e o alemão. Antes disso, foi “Sarau Canto e Vento” e “Sarau Sem Nome Nenhum”. Para Assumpção, “Protesto” soa melhor, porque expressa a busca por dias melhores. Segundo ele, um dos maiores objetivos do Sarau Protesto é despertar o interesse pela arte, pelas manifestações culturais e pelo querer viver bem em sociedade.

A poesia

Em “Protesto”, ele escreve: “Senhores / Eu fui enviado ao mundo / Para protestar / Mentiras ouropéis nada / Nada me fará calar”. Considera a palavra seu principal instrumento na luta contra a discriminação. Além da mãe, guarda outra inspiração: Valério Correa, poeta negro que encantou a população de Tietê há mais de um século.

“Houve uma certa época que apareceu um poeta. De uma hora para outra, surgiu na rua um cara parecendo um matusquela falando poesia. Ele andava para cima e para baixo. A criançada gostava de acompanhá-lo. Minha mãe quem contou que isso foi há mais de 100 anos e, até hoje, ele é lembrado lá”.

Quando saiu de Tietê, Assumpção foi para São Paulo, onde passou a integrar o grupo “Cadernos Negros”. Antes, havia sido membro da Associação Cultural do Negro, pela qual teve, novamente, contato com saraus e recebeu, em 1958, o título de Personalidade Negra. Dois anos depois, se mudou para Rifaina, onde foi vereador, até se estabelecer, definitivamente, em Franca, para cursar Letras (Português e Francês). Apesar da atuação como parlamentar, garante não gostar de política. Que nenhum dos partidos brasileiros o representa e que defende as cotas nas universidades. “É por meio do estudo que nós vamos subir.”

É formado, ainda, em Direito, tendo advogado por um tempo na área criminal. Mas logo percebeu que queria mesmo ser professor e dedicar-se aos livros. Em 1982, lançou o primeiro – “Protesto: poemas” –, em que estão seus textos mais conhecidos. Seis anos depois, veio a segunda edição desta obra, com apresentação de Henrique L. Alves e prefácio de Aristides Barbosa. Já em 2000, ele publicou “Quilombo” e, em 2009, “Tambores da noite”. 

O último, “Não pararei de gritar”, é uma pista do legado que pretende deixar. Que as vozes contra o racismo continuem ecoando, formando e fortalecendo grupos. Sem tempo para cessar. 

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