A vida nas vilas escondidas

Escrito Por: Éverton Anunciação e Tuani Awade

É quase como estar lá, vivendo todas as memórias saudosas de quem sonha que esses recantos resistam

Fotos: Pedro Mutzenberg

No Centro-Sul de Cuiabá-MT, Gabriel e seu pai nem cogitam mudar da Vila Santa Margarida, porque ali guardam muitas lembranças. Entre elas, uma Copa do Mundo. A poucos metros dali, Wilka retornou à casa de infância, localizada na Vila Santa Inês, por ser mais seguro. Mais perto da agitação da cidade, Nilda também carrega lembranças materializadas no lugar onde mora….

Afetos, união, solidariedade e companheirismo reúnem pessoas distintas em lugares escondidos da agitação típica do centro cuiabano e podem passar despercebidos ao olhar do turista. Vilas que se cruzam nas vidas de quem mora numa Cuiabá que só existe ali.

A festeira da vila santa

Os olhos castanhos de Wilka Monteiro poucas vezes desviavam, enquanto lhe era perguntado coisas do seu cotidiano. A testa franzida e os movimentos intensos das suas mãos só afirmavam ainda mais o quanto a dona de casa gostava de ser ouvida. Mas, afinal, quem gostaria de deixar sua voz perdida entre milhões de histórias que devem ser escutadas? Talvez alguns, mas não ela. 

Wilka Monteiro, 35 anos, Vila Santa Inês, da janela da sua casa olhando o movimento da rua, um costume antigo dos cuiabanos.

Wilka cresceu em uma vila na parte central de Cuiabá, chamada Santa Inês. Pouco se sabe sobre a história daquele local, como a razão do seu nome, quantos anos têm e quem foram os primeiros moradores. Um dos motivos encontrados por quem mora ali é o sossego e a paz, muitas vezes esquecidas em cidades grandes, como se pode perceber em poucas ruas dali, que acompanha o ritmo frenético da cidade-capital.

Foi ali que ela teve suas primeiras brincadeiras, seus primeiros sonhos e suas primeiras aventuras, no entanto, começou a chamar de lar outro local assim que se casou. O bairro Doutor Fábio é conhecido como um dos locais mais periféricos da região e, quando Wilka foi assaltada ali, retornou à Vila Santa Inês: “Meu pai me chamou para voltar para cá. Ele me disse: ‘Você tem casa aqui, volta. Aqui é mais seguro’”, menciona. Então, a dona de casa voltou ao lar que sempre lhe pertenceu e que jamais deixou de ser seu. 

A casa era uma das mais antigas da vila, no entanto, hoje em dia é a mais moderna, embora as paredes continuem as mesmas. Os pisos em tons claros, a porta de vidro e as obras de artes dão ao local um ar mais sofisticado que de outras casas da vila. Sem mencionar as rosas e outras flores muito bem cuidadas, dando cor a uma vila que parece ter se perdido em tons cinzas.

Hoje em dia, Wilka consegue enxergar pontos positivos em coisas que antes lhe pareciam apenas negativas: “Antes, eu não gostava que aqui todo mundo soubesse da minha vida, mas ao mesmo tempo dá segurança. Eles vão saber te dizer se alguém te assaltar, por exemplo”. Em meio a um ambiente calmo, ela se considera a mais festeira e, embora não tenha tanto contato com os vizinhos, sabe dizer quem é quem e que pode confiar neles: “Você pode deixar a porta aberta, porque eles vão cuidar. A gente tem o costume de avisar quando saímos”.

João Lucas Dias, 17 anos, Vila Inocência

A tranquilidade extrema às vezes acaba lhe sendo um ponto negativo, afinal de contas, seu filho, Odair Junior, 7, não pode brincar ali, porque a vizinhança não gosta e, por isto, o menino costuma jogar bola dentro de casa ou nas proximidades da vila. 

Outro motivo, inclusive, que costuma desagradar a dona de casa é a falta de cooperação dos outros, já que tarefas que poderiam ser divididas, como limpar a lixeira, acabam sendo desempenhadas de maneira solitária ao invés de coletiva.

Ao ser questionada como imagina a vila daqui uns 10 anos, Wilka relata que gostaria de a ver com uma melhor estrutura: um calçadão bem feito – passagem que os moradores utilizam para ir e vir – e um portão na entrada para transmitir mais segurança para a comunidade. 

Oásis de tranquilidade

Era um sábado ensolarado quando chegamos na Vila Santa Inês, por volta das 9h, conforme havíamos combinado com os entrevistados. Robson Silva, que é casado com uma das netas da professora aposentada Antônia Julieta, foi o responsável por fazer contato com ela e dois de seus filhos.

Antônia é considerada uma figura importante na vila,  pois foi professora na Escola Estadual Senador Azeredo e acabou lecionando para muitas crianças da comunidade, entre elas, Wilka e seu irmão. Hoje em dia, no entanto, a aposentada sofre de Alzheimer e, por isso, foram seus filhos quem relataram as experiências.

A casa da família é bem diferente das demais e nem parece fazer parte do centro de Cuiabá, já que as árvores existentes amenizam o calor de 37ºC. Ela ainda é praticamente rodeada e coberta por plantações – mangueiras, goiabeiras, aceroleiras e outras espécies – que decoram o espaço, juntamente com as cores terrosas da casa.

O som lírico dos passarinhos também dá um “ar” de interior para o espaço, e torna quase imperceptível o barulho dos carros e a movimentação  do centro da capital mato-grossense a poucos metros dali. “As pessoas que nunca vieram aqui se encantam, pensam que é uma chácara, uma ilha. Por mais que seja quente, aqui é cheio de árvores.Tentamos preservar isso”, comentam Clomidia e Sérgio Silva, filhos de Antônia Julieta, sobre o espaço onde viveram, que tem aspectos dos antigos quintais cuiabanos. 

Clô, como é carinhosamente chamada pelos seus irmãos, conta que o quintal, há muito tempo, já foi um campinho de futebol e, antes, qualquer morador tinha acesso à atual Av. Joaquim Murtinho, pois não haviam muros que impediam a travessia dos moradores. Sendo assim, os vizinhos das outras vilas também interagiam no local, porém, com o tempo, os prédios e comércios foram levantados causando-o distanciamento.

Os diálogos, por exemplo, começaram a ser contidos: “Aqui ficou muito formal, apenas bom dia, boa tarde, devido a correria do dia a dia, ficamos mais reféns do trabalho”, menciona Clomidia. O isolamento ficou mais evidente nas mudanças de hábitos: “Antigamente, avisámos para onde iríamos, hoje não, só sabemos que fulano não está. Já deu muito conflito antes, porém ninguém é inimigo de ninguém”, completa a enfermeira.

Outra coisa que mudou com o decorrer do tempo foi a movimentação do espaço. “O movimento de rua é bem diferente. Antigamente o verdureiro descia aqui na vila de charrete e o padeiro passava aqui de bicicleta pra trazer o pão quentinho, praticamente todo dia. Hoje em dia isso não tem mais”, revela Sérgio, sentado em uma cadeira de aço com os olhos focados na entrada da varanda. 

Questionados do porquê mudaram dali, os três irmãos declaram, “acreditamos que cada um deve seguir o seu caminho e ter o seu espaço, aqui é o espaço da nossa mãe”. No entanto, Joadir comenta que o local é muito tranquilo para ele: “Eu sou acostumado com lugar mais agitado”. 

Já Clomidia declara que não vê problema algum em se mudar para a vila novamente. “Eu voltaria pra cá tranquilamente, aqui tudo é mais perto e centralizado”. 

Daqui 10 anos, Sérgio acredita que a vila não irá existir mais devido o desenvolvimento de Cuiabá, a expansão dos condomínios fechados, edifícios e grandes centros comerciais. Com isso, os mais jovens irão procurar esses espaços para morar. “As vilas só estão vivas porque as pessoas mais antigas não arredam o pé, porém, depois de partirem desta vida, os familiares irão vender para as construtoras”, lamenta Sérgio.

O argumento de Sérgio se sustenta com o depoimento da professora de arquitetura da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Doriane Azevedo, que relata que não existem políticas muito concretas com relação a preservação dessas áreas: “A política de valorização do Patrimônio Cultural vem sendo construída desde a década de 1930 no Brasil, com importância e referência na Constituição de 1988. Mas no Araés (bairro de Cuiabá), existem duas vilas e não reconheço características relevantes para o tombamento (preservação e conservação às características desse elemento), suas fachadas estão descaracterizadas, mas reconheço que nossa legislação não vem valorizando esse tipo urbanístico”. 

Clô, em sua resposta, transparece otimista com o futuro das vilas. Ela, por exemplo, pretende investir na casa da sua filha Adriana, que mora no mesmo terreno da sua mãe Antônia. “Isso pode demorar um pouco, porque se a gente arruma o local em que vivemos, dificilmente, mudaremos tão cedo. Já estamos fazendo uma reserva para melhorar o espaço”. Ela ainda acrescenta: “Eu serei resistência, porque aqui também é meu espaço.” 

O coração de Cuiabá

Foram necessários quase 20 segundos para que dona Nilda Arruda, de 77 anos,  conseguisse conter as lágrimas e os soluços. A verdade é que poucos entendem o que significam as lembranças, a não ser quem as presenciou, por isso, a aposentada tentou relatar o que o local – antes rejeitado – significava e continua sendo para ela. 

Nilda Arruda, 77 anos, Vila Inocência

A Vila Inocência passou por muitas transformações para se tornar o que é hoje. Antes de ser chamada de Travessa Inocência, já foi Travessa da Justiça e Desembargador Ferreira Mendes. Ela é uma das mais modernas vilas, se destacando pela arquitetura moderna e cores vibrantes. Tal mudança pode não ser tão significativa quando comparada às calçadas sem asfaltos, que atolava carros e moradores quando chovia.

O asfalto tinha que ser feito pouco a pouco para não abalar a estrutura das casas, e a rede de água e esgoto eram inexistentes. Como os moradores da época não cobravam tanto o poder público, o que hoje chama de lar nada mais era antes que o local esquecido, assim como a quem ali vivia. Porém, a aposentada não se conformou e lutou por melhorias. “Quem trouxe, pra mim, foi Dante [figura política do estado de Mato Grosso que também foi governador, hoje falecido]”. O falecido se tornou parte especial das suas lembranças e orações.

Um local pode ser apenas um espaço, mas às vezes também pode ser um lar, assim como as pessoas podem ser apenas conhecidos, ou, amigos. Para a aposentada, a vila é uma junção de todas as coisas e, por este motivo, sua casa é chamada de “coração” de Cuiabá por quem a frequenta. O carinho não é apenas mostrado em suas falas, como em gestos, afinal todos podem entrar ali e se considerarem de casa e, ao ver um desconhecido, dona Nilda vê uma oportunidade de fazer amigos. “Ei, senta aqui!” – gritou ela assim que nos viu de longe. Foram estas as primeiras palavras da entrevista. Pouco sabia sobre nós, mas mesmo assim viu em rostos estranhos uma chance de fazer suas histórias serem ouvidas.

Ao ser questionada sobre o que mais gostava dali, a aposentada menciona: “Aqui é tranquilo, só que agora não está sendo, pois os ‘malandros’ descem do museu [Caixa D’Água Velha] e entram tudo aqui. Só não entram na minha casa porque meu filho é policial, então eles respeitam”, diz Nilda.

As ruas estreitas da Vila Inocência fazem com que seja difícil o deslocamento de carros, mas Hion de Carvalho vê a dificuldade como motivo de humor: “As pessoas brigam porque um quer sair e outro quer entrar, aí um esbarra no outro. Eu gosto da confusão, depois caio na risada”. Hion, apesar disto, é considerado uma das figuras mais importante da vila, afinal de contas, ele costumava ser responsável por festas da comunidade que aconteciam no espaço da organização sem fins lucrativos, ONG Amigo Feliz, que ele é presidente.

Além de bastante comunicativo, o decorador costuma ser bastante ativo em suas tarefas, muito se movimenta e não consegue ficar parado em um lugar por muito tempo. Se considera como perfeccionista e, por isso, gosta das coisas bem organizadas e no seu devido lugar.

A instituição que costuma distribuir comida aos sem-tetos, o que tem muito haver com Hion. Não apenas pelas cores vibrantes e alegres, mas também por aquilo que eles têm em comum: ajudar o próximo enquanto puder. 

A inocência dentro da Inocência

Era manhã de quinta-feira, por volta das 9h30, quando o olhar generoso de Márcia nos contagiou. “Está procurando alguém? ”, perguntou Márcia. “Sim, João Lucas, ele marcou uma entrevista com a gente”. Após o primeiro contato, ela convidou para entrar e sentar em uma cadeira de fio de balanço, enquanto chamaria João Lucas, que estava dormindo.

Márcia trabalha com a família “Dias Fernandes” há 9 anos como diarista, além de ser babá do irmão mais novo de João Lucas. Ela mora em Várzea Grande, cidade coirmã da capital mato-grossense. 

A estatura pequena de Márcia, uma postura mais delicada e convidativa, mesmo não morando ali, se tornou uma figura muito conhecida pelos moradores, pois muitos que passam por ali a cumprimentam “Bom dia, Márcia. Tudo bem? ”, disse uma moradora. “Semana que vem vai lá em casa”, disse outra.

Além de conhecer os vizinhos de João Lucas, ela conhece como ninguém as regras de convivência do local. Em frente da maioria das  39 casas da vila, tem um vaso de cimento com plantas que servem para sinalizar “proibido estacionar”. Márcia revela que antigamente os vizinhos brigavam por espaços para estacionar seus carros, já que o lugar é estreito e apertado para passagem de veículos. Inclusive, a diarista relata que já pensou em morar na Vila Inocência, mas também gosta do local onde mora atualmente.

João Lucas Dias, no entanto, se considera um rapaz tranquilo. A pouca idade, 17 anos recém completados, faz com que a arte de sonhar seja um dos seus principais passatempos e, inclusive, ser jogador de basquete é o seu sonho. Apesar de às vezes se considerar um garoto reservado, João gosta muito de chamar seus amigos para sua casa.

A sala de parede azul turquesa tem um toque de luxo com um tapete veludo, obras de arte na parede, uma cristaleira com taças de vinho e copos de cerveja, uma raque com fotos da família e um sofá de cor marrom, além de uma televisão. “Minha mãe não gosta muito do lugar, ela acha aqui tranquilo demais”, comenta o garoto. 

Até os seus 15 anos havia interação e agitação da “turma de adolescentes” no local. Hoje, os que ainda vivem lá, segundo ele, não saem tanto ou conversam com ele. “Antes eu ficava até tarde conversando na calçada com meus amigos. Mas, boa parte foi embora, porque eles decidiram viver com os pais, em vez dos avós”. 

João Lucas sente falta da união que antes havia na vila com seus amigos, ele diz que “gostaria de saber como seria se todos nós estivéssemos juntos hoje, acho que seria ‘da hora’”.  Os lanches e o tereré uniam o grupo de 12 adolescentes na vila para brincar de pega-pega, esconde-esconde, rouba-bandeira, conversar sobre os seus sonhos e relatar como foi o seu dia. Hoje em dia, tudo que lhe resta são as lembranças. 

Marcas de saudades

Entre o ritmo frenético da cidade grande com o vai e vem de pessoas e veículos, é quase imperceptível notar o “beco” que dá acesso a Vila Santa Margarida. O sobrado marrom que ocupa metade da vila forma parte do muro, e o outro lado é formado por uma casa. No caminho estreito mal passa um carro – tem que subir ou descer com muito cuidado, para que o veículo consiga fazer a travessia. Os moradores devem entrar para dentro de suas casas.

A porta que dá acesso ao paraíso da natural, Gabriel abrindo a porta

A vila Margarida é pacata, tranquila e está localizada no Centro-Norte de Cuiabá. Ali mora Gabriel Campos, 24, músico recém-formado pela UFMT.

O som lírico dos passarinhos que estão ali todas as manhãs e finais de tarde, contrasta com o gosto musical de Gabriel que ama um “rock pesado”. Assim como seu pai, ele ama morar ali, “escondido” da agitação do centro urbano da cidade. Sua casa esconde uma reserva natural que é para poucos que moram na cidade grande. Quem nunca passou ali ou não o conhece, nem sabe que a porta da sua cozinha dá acesso ao paraíso da natureza, mais conhecido como “frutos da terra”.

Gabriel entrando para Vila

“Quando colhemos mandioca, caju, limão, açaí, abóbora, banana-da-terra, meu pai distribui para a vizinhança. Aqui somos uma família, um ajuda o outro”, diz Gabriel, com o sorriso estampado no rosto. Além disso, a casa dele servia há muito tempo de encontros dos moradores da vila. Hoje, em algumas datas comemorativas, sua casa é o ponto de encontro da comunidade católica que frequenta, bem como para assistir jogo.

As cores verde e amarela podem estar um pouco apagadas na rua estreita da vila, porém, elas continuam fortes na lembrança de Gabriel, que tinha apenas 7 anos quando o Brasil se sagrou pentacampeão, após o jogo contra a seleção alemã, no Japão, na Copa do Mundo de 2002. Ele relatou que essa foi uma das únicas vezes que houve tanta mobilização, união e comemoração por parte da vizinhança.

Gabriel, com os olhos avermelhados, olha em direção ao portão da casa com ar de nostalgia, contando os momentos da sua infância, e diz que aquele lugar nunca mais será o mesmo. Ele lembra que as crianças eram a alma da vila. “As crianças uniam mais as famílias naquela época. Os adultos tinham uma ideia e nós [crianças] ficávamos loucos para colocá-las em prática. Lembro-me muito bem da Copa de 2002, quando a maioria da vizinhança veio assistir aqui em casa, na maior euforia”, relembra.

Uma outra coisa curiosa que acontece para quem mora em uma vila: por ter espaços bem apertados, as garagens que são construídas devem ser pensadas na logística de entrar e sair. Por exemplo, a área da casa de Gabriel foi arquitetada para que o carro da família faça a manobra dentro do local para sair de casa. “A gente está acostumado com isso, no início era mais dificultoso, hoje pegamos o jeito”, explicou ele, rindo da situação. 

O sonho de muitos moradores é que esses espaços tenham um portão para trazer mais segurança e comodidade que, segundo Gabriel, isso preservaria e evitaria que “estranhos” pudessem entrar, apesar de muitas casas já possuírem cercas elétricas e até placas de cão bravo deixando a mensagem “aqui está mais seguro”. 

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