“Negra Sou”: sobre ascensão e representatividade

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Escrito Por: Mirella Lima

De um projeto acadêmico a um livro-reportagem que se faz ecoar. Sobre uma ocupação de espaços necessária e que pode (e deve) ser bem maior.

Profissão não tem cor. Porém, de acordo com os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 39,8% das mulheres negras compõem o grupo submetido a condições precárias de trabalho; homens negros abrangem 31,6%; mulheres brancas, 26,9%; e homens brancos, 20,6% do total.

Diante do fato, a jornalista pernambucana Jaqueline Fraga decidiu mostrar a contramão dos dados e produziu uma série de reportagens especiais com mulheres negras que ascenderam profissionalmente. O projeto foi desenvolvido, a princípio, como trabalho de conclusão do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). 

Em 2016, o conteúdo se transformou em um projeto online. Já em 2019, o sonho da Jaqueline foi realizado e o material virou o livro-reportagem “Negra Sou: A ascensão da mulher negra no mercado de trabalho”.

A obra possui cinco matérias e entrevistas com mulheres negras que conquistaram o sucesso profissional. Elas representam uma parcela menor das estatísticas e atuam em profissões de destaque na sociedade, nas áreas do Direito, Medicina, Odontologia, Engenharia e Militar. 

As personagens relatam como romperam as barreiras raciais e sociais e estabeleceram o sucesso no mercado de trabalho. 

A ComTempo conversou com a jornalista e escritora do livro, Jaqueline Fraga, sobre o processo de construção do projeto que deu origem ao livro, representatividade nas organizações, escolha das personagens, autoestima, racismo e seus projetos futuros. 

ComTempo – Como surgiu a ideia de transformar o seu projeto de conclusão de curso em livro-reportagem anos depois?

Jaqueline Fraga – O meu desejo de escrever a série como um livro-reportagem vem desde os tempos de estudante universitária, justamente no período do projeto de conclusão do curso de Jornalismo na UFPE. Mas naquela época eu ainda não tinha muita noção de como fazer esse lançamento editorial, então, apresentei o projeto “Negra Sou” como um trabalho acadêmico tradicional. Só que essa vontade me acompanhou nos anos seguintes. Então, no ano passado, resolvi me dedicar a esse sonho.

CT – Como aconteceu a escolha das personagens?

Jaqueline – Eu me baseei em dados do IBGE e do IPEA que elencavam as profissões mais valorizadas no Brasil. Então, selecionei cinco daquelas carreiras e fui em busca de mulheres pernambucanas que atuassem nas referidas áreas.  

CT – A obra conquistou menção honrosa na categoria grande reportagem do 26º Prêmio Jornalismo de Direitos Humanos. Como aconteceu a indicação para a premiação e qual a importância desse reconhecimento?

Jaqueline – Eu sempre comento que é uma honra enorme receber essas premiações. É, de fato, um reconhecimento e também um marco que corrobora o valor desse trabalho e a importância de contarmos essas histórias. E essa é a segunda premiação que a série de reportagens conquista. Antes de se tornar livro físico, o projeto também foi um dos agraciados do Prêmio Antonieta de Barros – Jovens Comunicadores Negros e Negras. E, logo depois de ser lançado como livro, conquistou a menção honrosa do Prêmio Jornalismo de Direitos Humanos. Foi um orgulho imenso. 

CT- Representatividade é um termo que está sendo muito utilizado atualmente. Mas muitas pessoas desconhecem o seu real significado. Como a representatividade pode ser um fator importante para a construção da subjetividade da identidade da mulher negra?

Jaqueline – Sabemos que cada pessoa possui sua individualidade e isso vale também, é claro, para nós, mulheres negras. Mas também há uma coletividade muito forte e presente, com características que nos assemelham. Nesse sentido, a representatividade tem uma importância muito grande, porque nos permite perceber que os espaços sociais mais valorizados também podem e devem ser ocupados por nós. Passamos muito tempo sem ver mulheres negras em posições de prestígio, em profissões de destaque, em espaços de poder. E precisamos nos ver e nos enxergar nesses locais, para que se torne comum e para que saibamos que também são nossos.    

CT- A autoestima da mulher negra é uma das coisas que deve ser construída desde a infância. Como isso pode ser feito? 

Jaqueline – Eu enxergo a família, a escola e a mídia como fundamentais nesse processo. Quem mais sofre com bullying na infância, por exemplo, são crianças negras. Então, é importante que a autoestima seja desenvolvida desde cedo. Precisamos dizer às meninas negras que elas são belas, seu cabelo é belo, seus traços são belos. A família é essencial para construir essa boa identidade, para trazer referências e exemplos similares à criança. E as escolas também. Porque a gente sabe como as “brincadeiras” entre colegas podem ser ofensivas. Assim, é necessário que as escolas debatam o tema, destaquem as diferentes belezas e ajam e combatam o bullying que diminui ou inferioriza as crianças negras. Já a mídia é importante porque as meninas negras precisam se ver e se enxergar na TV, nas novelas, nos filmes, nas propagandas. Elas precisam saber que sua beleza também é valorizada.  

CT- Como a mulher negra pode construir um olhar de autovalorização, autoapreciação e competência profissional?

Jaqueline – Passamos muito tempo sendo submetidas a um padrão específico de beleza. Muito tempo vendo apenas, ou em sua esmagadora maioria, pessoas brancas em posições sociais privilegiadas. Mas isso vem mudando. E, sem dúvidas, graças ao movimento negro e ao movimento das mulheres negras, afinal, o empoderamento partiu de nós para o mundo. Todo esse processo contribui para esse olhar. Porque a gente passa a enxergar a nossa beleza e o nosso talento. Quando nós vemos que uma mulher negra igual a nós está conquistando o seu espaço, está se empoderando, está valorizando a sua beleza, está tendo sucesso profissional, nós percebemos que também podemos alcançar as mesmas coisas. Já disse Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Quando uma mulher negra se empodera e alcança o seu sucesso, ela inspira muitas outras mulheres negras.

CT – Em todas as histórias de cada personagem, percebemos a sutileza do racismo e as suas diversas atuações. Como podemos identificá-lo?

Jaqueline – Exatamente, o racismo é muito sutil, até porque nós vivemos em uma sociedade estruturalmente racista e que, por isso, tem práticas racistas enraizadas. Quando a gente começa a estudar, a ler sobre, a ouvir quem já está aí há tempos discutindo o tema, a gente começa a entender e enxergá-lo com mais facilidade. E, também, a gente começa, assim, a dar o nome correto a certas atitudes. Por exemplo, o que leva uma pessoa a supor que outra é funcionária de um local, ou que não é a médica ou dentista, mesmo estando no consultório? É o racismo. 

CT – A cor da pele ainda é um empecilho para as pessoas obterem uma posição de destaque no mercado de trabalho. Para a mulher negra a situação é ainda mais complicada, porque além do racismo, precisa encarar o sexismo na sociedade. Quais barreiras ainda precisam ser rompidas para que as mulheres possam ter mais destaque no ambiente corporativo?

Jaqueline – As pesquisas ainda mostram que a grande maioria de executivos, de CEOs, de diretores de empresas, são homens brancos. Os níveis hierárquicos mais altos são comumente ocupados por pessoas brancas. Então, um dos desafios é justamente fazer com que essas pessoas também atuem na pauta antirracista. Não dá mais para pensar que é normal que as pessoas negras estejam sempre em cargos subalternos. Então, as organizações precisam estabelecer medidas práticas que busquem a equidade de gênero e de raça, permitindo que, de fato, as mulheres negras também cheguem a cargos antes ocupando apenas por homens brancos.

CT- Em breve, pretende lançar outro livro com a temática voltada para outros aspectos da vida da mulher negra?

Jaqueline – Falar sobre representatividade é algo que me motiva demais. O livro “Negra Sou” trouxe como aspecto central mulheres negras que atuam em profissões de destaque, mas as reportagens falam sobre suas histórias como um todo, falam sobre suas vidas em si. Então, ao longo das páginas, nós conhecemos aspectos das suas carreiras, mas também da sua vida pessoal, da sua relação familiar, dos seus relacionamentos e da sua autoestima. Ainda não tenho nada oficial, mas penso em outros livros que abordem carreiras específicas, sabe? Por exemplo, um livro que reúna histórias de jornalistas negras. Mas, com textos que sempre enveredam por suas trajetórias pessoais também, até porque são indissociáveis, não é?! Não há como ser a profissional sem ser a pessoa e vice-versa.

CT – Como as cinco histórias contadas no livro podem incentivar as mulheres negras a buscar sua ascensão profissional?

Jaqueline – Eu realmente acredito na força da representatividade, de você se ver nos espaços de poder e prestígio, de você saber que aqueles locais também são seus. As histórias do livro estão aí para isso também. Para que mais mulheres negras se inspirem e percebam a sua capacidade. Para que saibam que elas podem seguir as profissões que há certo tempo não costumávamos nos ver. E eu tenho recebido um feedback muito positivo nesse sentido, de leitoras que entram em contato comigo e falam sobre como o “Negra Sou” as impactaram e as incentivaram a buscar seus sonhos e sua colocação profissional. Essa é, com certeza, uma das partes mais gratificantes desta minha vida de escritora.

CT – Sempre ao final de cada capítulo há uma entrevista com cada personagem. Na sua percepção, o que mudou na consciência (representatividade e empoderamento) de cada entrevistada?
Jaqueline – Foi muito significativo reencontrar as personagens do livro três anos após o nosso primeiro contato. Perceber suas evoluções, suas consciências, foi verdadeiramente gratificante, representativo e empoderador. Porque pude perceber que nós, de fato, estamos em constante evolução. Então, teve personagem que passou a entender mais a presença do racismo no nosso cotidiano, teve personagem que ampliou a sua luta antirracista, teve personagem que seguiu influenciando muitas e muitas pessoas. Poder compartilhar esse crescimento e esses novos momentos com os leitores foi especial demais.

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