Você, sabe onde está?

“Bem-vindos a uma terra simples, pé no chão, onde conversamos e vemos o mundo à nossa volta. Onde usufruímos da vida e de todo o bem que há nela. Bem-vindo a Bacurau!”

Se esse texto estivesse no começo do filme, a honestidade daquilo que ele propõe não estaria comprometida? A proposta não é a de retratar um futuro inevitável se continuarmos a trilhar os caminhos que vemos à frente, nem uma proposta de nos isolarmos primitivamente em nossas próprias raízes e refutar, combater, tudo o que for diferente. Sua proposta é mais íntima e perturbadora. É termos um olhar para o futuro e para os outros, mas no presente e para dentro de si próprio!

Nos vemos refletidos na tela, como um espelho, representados de diversas maneiras. Graças ao ambiente, o escuro do cinema preserva nossas reações mais questionáveis, porém sinceras. Aplaudimos uma chacina em nome da justiça, assentamos papéis bidimensionais de “vilão” e “mocinho” à fragilidade da condição humana. Com cuidado e um pouco de dedicação, somos capazes de ver, neste reflexo, o que nos levou até esse ponto.

É inevitável fazermos algumas comparações entre Bacurau e outras produções. Vai desde Tarantino até “Um Dia de Fúria”. Isso é natural, faz parte tanto do cenário da produção cultural quanto dos nossos hábitos de consumo. Estamos imersos no “cinema”, como um todo. Podemos chegar a rotular como uma produção tipicamente formulada em moldes norte-americanos, um episódio de seriado policial ou ficção pós-apocalíptica. Não deveríamos nos preocupar apenas com o filme. Deveríamos nos atentar àquilo que o motivou e, principalmente, àquilo que nos tocou de maneira tão contundente.

Bacurau não é um entretenimento datado, que explora de maneira fantasiosa os resultados de conflitos de interesses econômicos, políticos e culturais. Como tantas outras produções, é importante revermos, de tempos em tempos, para considerarmos o caminho que estamos trilhando como indivíduos e pensarmos na resposta nada simplista: “Quem mora em Bacurau é o quê?” O que temos pelo olhar de Kleber Mendonça é a provocação incômoda de uma autocrítica. 

Pouco importa a imagem na televisão que mostra a retomada de execuções públicas no Anhangabaú. Isso é quase um “easter egg”… O que vale é pensarmos sobre nossa reação às ideias mostradas na tela. Muito do que fundamenta o movimento “Vidas Negras Importam” se deve a práticas que margeiam execuções públicas. E a tentativa de mudar a História, a Geografia – literalmente queimando e apagando nossa terra – não é ficção.

Bacurau é uma referência importante. Uma busca de retomar o cinema de crítica, um ponto de partida que mostra, inclusive, o potencial do que pode ser feito se deixarmos de considerar a audiência como uma massa sem repertório. A alegoria do estrangeiro, o alienígena, que nos observa de seu disco-voador; o casal desnudo, à mercê, mostrando os sulcos do tempo sobre a pele da mesma forma que a terra marcada onde vivem e respeitam; o anti-herói que toma a justiça nas próprias mãos uma vez que aqueles responsáveis por fazer isso deitam-se sobre os benefícios de um poder corrupto. As referências estão todas lá!

Mas observe que a corrupção não é um privilégio nacional, isso está muito claro. Da mesma forma, crimes e ações “fóbicas” se espalham pela sociedade mundial.

Se você viu o filme e gostou, reveja e pense nestas possibilidades. Tente se enxergar nele. Se não viu, veja, já sabendo que precisará rever. Se viu e não gostou, considere responder… “Quem nasce aqui, neste mundo, é o quê?”.

O colunista:

César Belardi tem Formação multidisciplinar nas três áreas acadêmicas, especialista em Teoria da Comunicação, Comunicação Comparada, Tecnologias de Comunicação, Processos Criativos e Marketing; Mestrado e Doutorado em Teorias da Comunicação e Tecnologia; Professor palestrante, divulgador científico e pesquisador nas áreas de Cinema & Televisão, Quadrinhos & Literatura, Indústria Cultural, Cultura POP e Narrativas & Teoria do Tempo; Professor Universitário e Orientador Acadêmico; Atua junto aos cursos de graduação e pós-graduação de  Jornalismo, Comunicação Social nas áreas de Marketing e Publicidade & Propaganda, Letras e Turismo; Colaborador do Berkeley SETI Research Center, Departamento de Astronomia da University of California; Cronista e Ensaísta.

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