O aumento da busca pela educação em tempos de caos

“Nasce uma nova forma de comunicação que ligará por computadores milhões de pessoas em escala planetária”. Por meio desta declaração publicada em 1994, a população brasileira recebeu a notícia da liberação do acesso à internet para o público. Mas quem poderia imaginar que uma ferramenta desenvolvida na Guerra Fria para espionar grupos inimigos e interpretar mensagens criptografadas se tornaria um instrumento de mudanças socioeconômicas e educacionais para milhões de brasileiros no século?

É com esse questionamento que damos início à análise do uso dos espaços virtuais para fins educativos pelos brasileiros, em especial, no ano de 2020.

Na virada do ano, muitas são as resoluções feitas para o período que se inicia. Essas são geralmente acompanhadas de excitação e esperança para receber as boas novas. Porém, ninguém esperava por uma pandemia em escala global, que tiraria a vida de muitas pessoas e modificaria de maneira drástica o modo de nos relacionarmos com os outros, com o meio e conosco.

O isolamento social, medida orientada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para amenizar a transmissão da Covid-19, tem provocado mudanças em diversos âmbitos da sociedade, como na saúde, economia e educação. Esse último foi atingido em cheio, resultando na paralisação de escolas e universidades. Com isso, não só os estudantes, pertencentes de diversas faixas etárias e classes sociais, mas também professores, foram submetidos a uma rápida adaptação ao ambiente virtual.

Por um lado, a transição para o meio online prejudica aqueles que não têm posse de aparatos tecnológicos, como smartphones ou notebooks, e nem de pontos de internet disponíveis, fora o fato de atrapalhar seu desenvolvimento intelectual. E isso representa uma notável problemática, visto que, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 1 a cada 4 brasileiros não dispõe de conexão às redes. Dessa maneira, esses indivíduos, além de não poderem frequentar suas respectivas instituições de ensino, também não conseguem aprender de seus lares pela inexistência de recursos à disposição

Por outro lado, as pessoas que fazem uso das redes sociais e ferramentas de busca, se depararam com uma vasta gama de cursos gratuitos e com certificados inclusos nas mais diversas áreas, de humanidades à tecnologia. Uma das principais plataformas é o Coursera, que reúne materiais, incluindo videoaulas e apostilas, disponibilizados pelas universidades mais conceituadas do globo terrestre, como Harvard, Oxford e Yale.

Nesse sentido, as oportunidades são infinitas para aqueles que pretendem mudar de carreira, obter uma especialização ou apenas descobrir aspectos de um ramo de interesse. Outrossim, como uma rápida pesquisa no Google Trends, vemos que a busca por “cursos online de graça” subiu 750% nos últimos 90 dias.

Além disso, “linguagens” é outro campo que teve um súbito aumento no número de buscas. A ascensão de pessoas ou organizações que oferecem cursos de idiomas sem custos é notória. Evidenciando o supracitado, destaca-se a plataforma Kultivi, “um projeto brasileiro que produz conteúdo educacional gratuito”, como exposto em seu website. Esta conta com aulas gravadas e materiais de apoio de italiano, inglês, espanhol e francês. Além do site ser bastante intuitivo e de cadastro simples.

Outra mudança que merece destaque é a adesão da modalidade EAD (ensino a distância) por diversas faculdades no Brasil, incluindo algumas da rede estadual e federal. Um elemento atrativo para os futuros universitários é o preço das mensalidades, as quais representam um valor simbólico e deveras acessível para muitos. Dessa maneira, a quantidade de pessoas a ingressar no ensino superior apresentou considerável crescimento na última década.

A fim de explicitar na prática como a educação online tem transformado a realidade de cidadãos que possuem acesso à internet, a ComTempo entrevistou Flávia Faria, 46, digitadora e auxiliar de ultrassonografia há 24 anos, moradora da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro.

ComTempo – Você tem outra especialização além da digitação?

Flávia Faria – Sim, sou técnica de radiologia. Fiz um curso presencial em 2006, mas nunca consegui atuar na área devido a uma gravidez inesperada e por ser um campo muito fechado.

CT – Na época do curso, você trabalhava? Como era sua rotina?

Flávia – Era complicada. Eu não trabalhava, só que tinha dois filhos pequenos para cuidar. A carga horária era alta, eu gastava mais de duas horas por dia para me locomover até o lugar. A situação ficou pior quando comecei o estágio, pois tinha que cumprir mais de 700 horas, e não havia como trabalhar pelo tempo e pela distância.

CT – Você está trabalhando neste período de isolamento social? Houve alguma diferença?

Flávia – Sim, tive que continuar trabalhando por ser da área da saúde. Mas minha carga horária teve redução de 50% junto com o salário.

CT – Ou seja, agora você trabalha a metade do tempo que faria normalmente. O que tem feito neste tempo livre?

Flávia – Estou fazendo alguns cursos gratuitos online.

CT – Em quais áreas? Fale um pouco mais sobre isso.

Flávia – Fiz um curso de Gestão de Compras e Vendas, Noções de Recursos Humanos e estou estudando inglês.

CT – Como soube sobre eles? Houve alguma motivação para começar agora?

Flávia – Pesquisei no Google mesmo. São áreas que sempre me interessei e  nunca tive tempo de me aprofundar, pela correria do dia a dia. Como agora o ritmo desacelerou um pouco, vi a oportunidade de começar e usar esse tempo a meu favor.

CT – Você possui alguma formação de ensino superior?

Flávia – Ainda não. Vou começar a fazer Pedagogia à distância no próximo semestre. Já até me matriculei.

CT – A sua decisão surgiu durante a quarentena? Teve algum incentivo?

Flávia – Eu sempre quis fazer Pedagogia para atuar na área hospitalar, mas nem sequer sabia que era chamada dessa forma. Então aproveitei, se é que posso dizer assim, meu tempo disponível, para procurar como poderia fazer. Daí vi que teria meios de pagar um valor acessível cobrado pela faculdade e não precisaria parar de trabalhar. Esses fatores contribuíram muito para minha decisão. E a questão de poder estudar no horário que eu quiser, essa flexibilidade fez toda a diferença.

CT – Se compararmos com a sua rotina de estudos da época do curso de Radiologia, que era presencial, com os que está fazendo agora, quais seriam as diferenças mais notáveis?

Flávia – A liberdade de poder estudar nos meus momentos livres, no transporte público, rever vídeoaulas para tirar dúvidas. Só de ter o poder de escolher quando, o que e onde vou aprender, já me deixa mais satisfeita.

CT – Você pretende usar os ambientes virtuais mesmo depois do fim da quarentena? Por que?

Flávia – Com certeza! Tem sido muito bom para mim abrir a mente para várias coisas e aprender de graça. Depois que descobri que posso fazer mais na internet além de usar as redes sociais para saber da vida de famosos e conhecidos, tenho descoberto muito de mim e vendo que sou capaz de fazer tantas coisas diferentes.

CT – Se não fosse pelo EAD, você acredita que conseguiria ingressar numa instituição de ensino superior na sua situação atual?

Flávia – Sim, não seria impossível, mas bem mais difícil. A vontade de fazer faculdade foi despertada de modo muito forte em mim nesses últimos meses, e fico feliz que possa começar da minha casa mesmo e pagar por ela sem abrir mão de outras coisas essenciais.

Torna-se evidente, portanto, que as mudanças ocorridas no meio virtual têm trazido alterações positivas para nossas vidas. Contudo, mais do que isso, é a possibilidade de dar um novo rumo ao destino que faz delas uma ferramenta de esperança. Como fora tão desejado por Paulo Freire, educador brasileiro conhecido internacionalmente, o acesso à educação tem se tornado cada dia mais democrático, embora ainda não esteja nem perto do desejável.

Por fim, a intenção nunca será agir como se nada estivesse acontecendo em nossa nação e mundo afora, nem negligenciar a bagunça na política e na economia, muito menos esquecer as mais de 50 mil vítimas por coronavírus no Brasil (registradas em 20 de junho). Porém, também é implausível não reconhecer o ato revolucionário em desejar obter conhecimento em tempos sombrios e de caos. Parafraseando Freire, a educação muda as pessoas, e estas mudam o mundo, e ainda que as expectativas para o amanhã não venham carregadas de otimismo, no hoje, muitos brasileiros tentam mudar a própria existência.

A internet, que foi criada outrora para servir como arma contra adversários, nos dias atuais também é usada contra um sistema injusto. Essa transfigurou-se em uma poderosa aliada dos estudantes que querem viver além do que lhes foi permitido durante quase toda uma vida.

Matéria escrita por Amanda Faria, professora de língua inglesa e estudante de Ciências da Comunicação na Universidade do Porto, Portugal. 

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