Entrevista com Sheila Ozsvath para o canal “Resolvi Falar” e para a Revista Comtempo

Escrito por: Márcia Moreno canal “Resolvi Falar
E-mail: [email protected]
@marcia.resolvifalar

ComTempo – Qual seu nome e sua idade?
Sheila – Sou Sheila Ozsvath e tenho 40 anos.


ComTempo – Você nasceu onde?
Sheila – Nasci em São Paulo, capital e moro em Ribeirão Preto há dezesseis anos. Viemos eu, meu então companheiro, nossos dois filhos e minha avó. Hoje somos eu e meus três filhos.


ComTempo – Que atividade profissional você exerce?
Sheila – Trabalho como Agente Administrativo. Minha formação acadêmica é em Publicidade, com Pós-Graduação em Marketing e Gestão de Marcas e uma segunda Pós-Graduação em Gestão Cultural, que é minha paixão.


ComTempo – Você é Pessoa Com Deficiência (PCD), qual é a sua deficiência?
Sheila – Tenho Paraparesia que é uma condição neurológica caracterizada por fraqueza ou paralisia parcial nos membros inferiores. Geralmente não tem cura, no entanto, fisioterapia e/ou atividades físicas pode favorecer a qualidade de vida. Há dois tipos dessa deficiência a Paraparesia Espástica Familiar ou Paraplegia Espástica Hereditária.


ComTempo – Como foi a sua infância?
Sheila – Tive sorte de ter uma prima, a Flávia, que considero como irmã, é três anos mais jovem do que eu. Minha mãe faleceu quando eu tinha três anos e, uma das últimas lembranças que tenho é de minha mãe me segurando por cima do Moisés, que é um bercinho, mostrando-me essa prima quando recém-nascida.
Flávia, embora mais nova que eu, ensinou-me a quebrar limites, a transpor barreiras.
Com relação aos adultos, talvez por excesso de carinho, exageravam nos cuidados, mas, essa prima permitia-me todas as aventuras possíveis!
Eu era como todas as outras crianças, pulava muro para brincar com os vizinhos, brincava na terra e brincava de culinária.


ComTempo – Você era tímida?
Sheila – Junto com meus amigos, não, mas, com estranhos, eu era. Por exemplo, se convidada para uma festa, chegava antes de todos, sentava-me na cadeira mais escondida e só me levantava para ir embora. Só comia se alguém me levasse algo.
Não queria que me vissem andando. Temia que rissem ou que se afastassem de mim. Sequer ao banheiro eu ia.

ComTempo – As pessoas se aproximavam de você?
Sheila – As pessoas não se dirigiam a mim. Muitas vezes perguntavam a minha avó se eu falava, perguntavam meu nome … Nunca a mim.
Eu tinha cabelos curtos e perguntavam-lhe se eu era menino ou menina. Diante de tudo isso, eu me recolhia. Eu não sabia como expressar as revoltas que me causavam. Simplesmente, eu tombava a cabeça e deixava a conversa discorrer.
Tratavam-me de forma capacitista.


ComTempo – Você sofreu Bulling na escola?
Sheila – Não me recordo. Eu tinha amigos, na maioria, meninos. Na minha Primeira Infância, eu buscava ser uma ótima aluna, pois, esta era a forma que eu criei de existir.


ComTempo – Você falou que tinha mais amigos do que amigas, porquê?
Sheila – À medida em que fui crescendo, as coisas complicaram-se. Senti que as meninas não me viam como mulher. Não consideravam sequer que eu menstruaria. Creio que me vissem apenas como uma pessoa com vagina e não como uma pessoa com desejos e medos que meninas daquela idade tinham.
Isso se estendeu por toda minha adolescência. Eu era a amiga legal, mas, pouco participava das questões sociais, pois, sequer era convidada, portanto, eu não decidia se iria ou não, simplesmente, excluíam-me. Essas coisas pesaram demais. Já, os meninos, não se incomodavam com o fato de que eu não atendia aos padrões físicos das outras garotas, então, era mais fácil conviver com eles.
Eu sempre tive que provar que era mulher e que era capaz. Eu me sentia a Carrie – A Estranha (personagem do filme do mesmo nome).


ComTempo – Isso pesou muito em sua vida adulta?
Sheila – Pesou tanto, que que me fechei e só fui me relacionar com o homem que se tornou meu marido e pai dos meus filhos.


ComTempo – Quais foram os seus sonhos de infância?
Sheila – Eu queria ser bióloga, sonhava em nadar com os golfinhos, mas, pensei que seria impossível, uma vez que eu não conseguia carregar sequer meu corpo com facilidade, como é que eu carregaria os equipamentos de mergulho?
Depois, pensei em fazer Arquitetura, mas, não sabia desenhar.
Pensei no Magistério, mas, logo me disseram que as crianças ririam de uma
professora com deficiência. Desisti!
Pensei em cursar Jornalismo, mas, me perguntaram: E se você tiver que pular um muro para fazer uma reportagem? Vai conseguir?
As pessoas sugeriam que eu cursasse algo que me permitisse trabalhar em casa, para não me desgastar. Tem coisas que a gente sente, quando é cuidado extremo por não saber lidar ou quando é preconceito. Mais cedo ou mais tarde, a PCD saberá distinguir, isso é fato!

ComTempo – Depois de tantas frustrações, você ainda teve pique para estudar?
Sheila – Eu não me dei por vencida. Um dia eu retomei os estudos! Àquela altura, já tinha três filhos. Formei-me em Técnico em Locução. Depois, fiz um cursinho popular e passei no vestibular pelo PROUNI. Entrei em Publicidade, pois, estava com quase 30 anos e não queria esperar mais um ano para tentar outro vestibular para Jornalismo.
Eu me encontrei nessa Faculdade. Muitas pessoas apoiaram-me. Ganhei um amigo, o Léo, rapaz muito leal e parceiro, o qual me ajudou a resgatar esse amor e a entender que, a culpa do meu filho caçula ter a mesma deficiência que eu, não era minha.


ComTempo – Você se sentiu mais acolhida no ensino superior?
Sheila – A partir do cursinho e, na Faculdade, comecei a sair mais. Não sentia o Capacitismo que é o preconceito contra a PDC que a rotula como incapaz de fazer algo ou a diminui. O capacitismo existe de diversas maneiras, inclusive, pode ocorrer por inclusão ou por exclusão e está para a PCD assim como o racismo está para o negro.
Durante a Faculdade, fiz cursos extras e também fui Representante de Classe e sempre que havia sobra de convites , recebia alguns.


ComTempo – Você participou de uma Paralimpíadas, como foi?
Sheila – No último ano, surgiu a oportunidade de participar dos Jogos Paralímpicos, nas categorias Lançamento de Dardo e Lançamento de Disco. Competi, também, na Modalidade Natação, embora não seja o meu foco.


ComTempo – O que te levou a levantar a bandeira em defesa da Mulher Com Deficiência?
Sheila – No Curso Superior, as pessoas falavam que eu precisava levantar essa bandeira, mas, eu resisti, lutei contra. Mas, muita coisa foi acontecendo e, quando dei por mim, estava numa roda de pessoas discutindo sobre minorias. Falei da minha vivência e sobre o que conheço.
Eu pregava que não adiantava pensar em cultura, sem antes, pensar que há vários tipo de PCDs.
Não basta pensar apenas em ter rampas de acesso e corrimãos nos espaços
culturais, apenas para o público, pois, há artistas com deficiência. É preciso pensar mais longe!
Há que se pensar em pessoas idosas, obesas, em LGBTQ, nas Mães.
Os movimentos ainda são muito recentes. Há muito que se fazer.
Hoje, como uma das colaboradoras do Ribeirão Feminista tento fazer minha parte nessa militância.


ComTempo – Você sempre usou bengala como apoio?
Sheila – Eu relutei a vida toda para não fazer uso da bengala, mas, há pouco tempo, rendi-me à Frida, minha bengala canadense que foi muito companheira em minha primeira viagem solo. Fui para Ouro Preto-MG e, a partir disso, não larguei mais a Frida.
O Movimento das Mulheres Negras ajudou-me a assumir a Frida, que é como uma mulher negra assumindo seus cabelos naturais.
Antes dessa viagem, eu não tinha coragem de usar a bengala, pois temia que me perguntassem se eu havia piorado da Paraparesia. Naquela viagem eu entendi que eu era eu e que a Frida era uma parte de mim. Entendi que com a Frida a vida seria mais fácil.
Assumir a Frida foi um ato de liberdade e de coragem.


ComTempo – Você tem algum envolvimento com o Movimento das Mulheres Negras?
Sheila – Leio muito a respeito do Feminismo Negro. O Movimento das Mulheres Negras me incentivou muito, pois, ali, encontrei algumas similaridades que me fizeram entender e me fortalecer enquanto mulher.Tenho muita gratidão à Djamila Ribeiro que fala sobre essa verdade e encoraja-me a verbalizar sobre mim.


ComTempo – E, no meio de tantos altos e baixos, como foi a maternidade?
Sheila – É um assunto bem complicado, pois a Mulher Com Deficiência, antes de tudo, tem que provar que é mulher. Para a sociedade, a PCD – Pessoa Com Deficiência não atinge a vida adulta, ela permanece na infantilidade, e que, a mulher, não atinge o status de mulher. As pessoas não acreditam que nós, mulheres com deficiência, sejamos capazes de ser mães. Há um estranhamento na sociedade, não apenas por não sermos visualmente atrativas para um relacionamento, mas, também por acharem que somos incapazes para assumir a maternidade.


ComTempo – Como foi ter três filhos?
Sheila – Carreguei três barrigas tranquilamente, adaptei-me à maternidade, todos os estágios da vida são passíveis de adaptação. Ser mulher com deficiência nunca foi um peso para mim, mas, a pessoas achavam que eu seria incapaz de fazer coisas que uma mãe sem deficiência faria. O preconceito sempre foi grande e o capacitismo brotava sempre.


ComTempo – As pessoas mais ajudavam ou mais atrapalhavam?
Sheila – Depende, quando meus filhos eram bebês, pegavam no colo e começavam a chacoalhá-los, eu logo pedia que parassem, pois, quando fossem embora, eu não teria condições de ficar em pé chacoalhando a criança, neste caso, tentavam ajudar, mas, poderiam atrapalhar.
Enquanto mulher grávida, adaptei-me por dois, porque é para isso que estamos aqui.
Algumas pessoas eram indiscretas e perguntavam quem lavava nossas roupas ou quem fazia nossas refeições. São perguntas que ninguém faz a uma mãe sem deficiência.


ComTempo – Seus filhos sofreram preconceito na escola por conta da sua deficiência?
(Estamos filmando: Sheila pára, olha para a lente da câmera e conversa, como se, atrás da câmera, estivessem seus filhos. Dá para sentir sua emoção).
Sheila – Meninos, em casa, eu nunca tive coragem de perguntar, mas, vocês sofreram algum preconceito por conta da deficiência da mamãe?
Tenho medo da resposta ser positiva. Tenho medo que meus filhos tenham sofrido em silêncio. Meu emocional não estava preparado e, talvez, nem esteja para uma resposta positiva, Na hora de ofenderem uma criança, a mãe é o sujeito passivo da ofensa, então eu nunca soube se aconteceu isso.

Eu sentia que muitas pessoas se afastavam de mim porque não conseguiam lidar com o preconceito. A deficiência é minha, mas, as pessoas ao meu redor acabam vendo e sentindo.


ComTempo – Você passou a vida toda se protegendo e agora como você tem feito para ajudar seu filho caçula que também tem Paraparesia?
Sheila – Nossa deficiência é genética e eu descobri isso somente quando ele nasceu.
Desconheço históricos anteriores na família. Aí, veio o peso da culpa e o medo que ele sofresse por tudo o que passei.
Na Faculdade, um amigo trouxe-me para a realidade, apoiou-me.
Tudo o que não me permitiram fazer na infância, eu permiti a ele. Eu quis sanar as dores que poderiam ser sanadas.
Entendo que minha família me protegia por amor, mas, agora a família é minha e eu faço diferente.


ComTempo – Como foi esse aprendizado?
Sheila – Pelo meu filho e com ele, eu aprendi a ser mãe de maneira diferente, a dar-lhe uma vida normal, permitindo que ele faça o que quiser da vida.


ComTempo – Como foi cursar o Nível Superior já tendo três filhos?
Sheila – Tive uma rede de apoio que, infelizmente, nem toda mulher tem. Muitas vezes as pessoas estão mais dispostas a julgar as mães pelos seus atos, do que em compreendê-las.


ComTempo – Como você administrou ser mãe de três filhos e cursar o Nível Superior?
Sheila – Eu chegava da Faculdade, conferia as tarefas dos mais velhos. Colocava postites com elogios.
Nos postites, perguntava se precisam de ajuda.
Com o tempo, eles começaram a deixar bilhetes sobre meu travesseiro.
Nossa parceria é muito forte!


ComTempo – Fale-me sobre seus filhos.
Sheila – Meu caçula tem 14 anos e a mais velha tem 19. Compartilhamos muitas coisas juntos e mesmo quando não gostamos, apoiamos. São muito parceiros.


ComTempo – O que te faz feliz?
Sheila – Fazer as coisas dentro do possível para meus filhos. Espero que nessa evolução humana cada um seja feliz dentro do que fizer, inclusive no papel de pais. Meu orgulho é ver que eles me olham como mulher-mãe. Meus filhos entendem minhas necessidades como mulher com deficiência. O grande barato da história é ver que um cuida do outro.

@sheilaozsvath
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