Episódio 1: Como o olhar da sociedade afeta a nossa imagem

Escrito por: Bruna Cagnin Fernandez

Certa vez, Alice atravessou o espelho e encontrou um mundo distorcido. Todos os dias, nosso reflexo nos encara enquanto escovamos os dentes, passamos por uma vitrine ou olhamos por uma janela fechada. Os espelhos estão ao nosso redor o tempo todo, mas a forma como encaramos a imagem pode ser muito diferente em cada situação.

Uma mão vai ao cabelo automaticamente, tentando ajeitar os fios bagunçados. De repente podem surgir pequena inseguranças com a roupa escolhida, o formato do nosso nariz ou as características de nossos corpos, e de repente, nos damos conta que existe uma necessidade de estar bonito e apresentável aos olhos do outro.

Diego Montanini Cardeal, 27, é especialista em Sociologia e doutorando em Educação pela USP e nos explica que a beleza é algo difícil de ser definido por ser um conceito muito subjetivo. “A beleza em si é uma noção bastante abstrata, difícil de ser definida, uma vez que possui uma característica subjetiva, além de lançar mão de componentes sociais que ditam a definição do belo. Sendo assim, é muito importante suscitar a ideia acerca dos padrões de beleza e buscar perceber como eles agem sobre os indivíduos”

A nossa relação com o corpo humano sempre foi uma discussão recorrente na história e o ideal de beleza muda o tempo todo.  Cardeal explica que, de forma geral, a sociedade sempre acreditou em uma dualidade que compõe o corpo, fazendo com que os humanos sejam formados por uma parte física e outra espiritual. “O filósofo grego Platão falava da dicotomia corpo-consciência no século V, antes de Cristo, colocando a alma como precedente a existência do corpo. Nessa época, tudo o que se referia ao corpo era negativo, irracional, impulsivo. A alma já estaria pronta e seria dotada de um conhecimento intelectual, independente dos órgãos. Já na Idade Média, o pensamento platônico continua persistindo, porém, surge também a visão cristã. O corpo permaneceria inferior, mas se torna objeto de criação divina, portanto, passível de sacralidade e, se preciso, de purificação”

Essa divisão entre físico e espiritual durou muito tempo. Somente na Idade Moderna o corpo humano começou a ser reconhecido como algo realmente biológico, que poderia, inclusive, ser um objeto de estudo. Mas, diferente das distorções de Alice, que aconteceram imediatamente, este processo foi muito mais lento e gradual. “Essa visão dualista, de um corpo preso a natureza que retira a liberdade do corpo espiritual, duas partes que não se inter-relacionam, foi um dos empecilhos para o desenvolvimento das ciências humanas no século XIX.”  Acrescenta Cardeal. “Por fim, no século XX, surgem correntes teóricas que não concebem o corpo a partir de dicotomias, como a corrente fenomenológica. Essa corrente, em relação ao corpo, busca superar a dicotomia corpo-alma, afirmando haver nesses polos uma relação de reciprocidade. ”

Podemos ver que esse ideal de reciprocidade sempre foi distorcido pela visão que os outros colocam sobre o que seria o corpo humano. Cardeal comenta que “pensando no contexto atual, o coletivo, que se traduz nos padrões culturais e nas instituições sociais, influi diretamente na maneira como os indivíduos percebem e constituem seus corpos. Sendo assim, podemos afirmar que o coletivo influi nas decisões que os indivíduos tomam acerca dos próprios corpos. Porém, é preciso ter a clareza de que isso nem sempre aconteceu da mesma maneira”

Podemos usar a arte para exemplificar a forma como os padrões de beleza mudaram no decorrer dos anos. Na Antiguidade, podemos observar várias estatuas retratando mulheres com seios mais fartos e quadris mais largos, que seriam consideradas mais bonitas na época porque a ideia de beleza estava relacionada a noção de fertilidade. Todo padrão criado na história depende do contexto no qual ele está inserido, ou seja, o período, a cultura e a forma como a humanidade é retratada influencia na forma como a beleza é concebida. Quanto mais uma imagem é reproduzida, mais atraente ela se torna e as características que acabam sendo deixando de ser representadas acabam por ser marginalizadas e tidas como não atraentes.

Por isso é preciso possuir um pensamento crítico quando falamos sobre os padrões de beleza, pois muitos deles podem ser prejudiciais e podem afetar a saúde mental das pessoas, uma vez que a maioria das pessoas “reais” não se encaixam nesses padrões.

Esses são questionamentos que que a modelo e digital influencer, Genize Ribeiro, 28, aborda em suas redes sociais. Genize começou sua carreira motivada, principalmente, pela necessidade de mostrar que existe mais de um tipo de beleza.  “Beleza é muito diferente do que vendem para a gente como beleza. Vendem uma beleza que já vem pronta, vem dentro do quadradinho e, na verdade, vai muito além disso. Para mim é liberdade de ser quem você é e quem você quer ser, expressar suas vontades e o que é belo ao seu olhar”

Entender sua própria beleza, no entanto, foi um desafio para a Genize assim como para várias outras mulheres. “Comecei há cerca de sete ou oito anos o processo para entrar no Body Positivy, que também já foi chamado de plus size e de gordo ativismo, esse último é o termo com o qual eu mais me identifico atualmente. Foi uma questão de começar a questionar a mim mesmo e aos padrões estéticos, porque eu não me reconhecia nesses padrões”

Ter uma relação de aceitação e reciprocidade com seu corpo, como vimos, é um grande desafio pois somos moldados a aceitar certas características especificas como o ideal do que é considerado bonito. Genize conta que já sofreu tentando se enquadrar em um ideal que não refletia a sua beleza. “Cheguei a fazer várias dietas super restritivas e exercícios exagerados, tomar medicações para emagrecer, até cheguei a emagrecer um tanto mas acabei voltando ao meu peso porque o meu natural é ser gorda!  Então, não adianta, no momento em que eu volto a comer como uma pessoa normal eu volto a ser quem eu sou, que é ser uma pessoa gorda”.

Genize conta que um grande momento de epifania foi quando ela começou a redescobrir e se entender como uma mulher negra e gorda. Este foi o ponto de partida para que ela assumisse a sua beleza e se tornasse também uma inspiração para diversas outras garotas que se sentiam carentes dessa representação. “Não havia uma modelo especifica com quem eu me identificasse, por isso eu sinto que outras mulheres como eu também não se identificavam. Hoje, muitas mulheres parecidas comigo me enviam mensagens pelas redes sociais, pedindo dicas de moda, dicas de roupas que combinam com o nosso corpo, por exemplo”. Ela acrescenta que este contato próximo com outras mulheres é a sua grande motivação. “Por isso eu comecei e por isso que eu continuo nas ativa nas redes sociais e modelando, justamente para levar essa representatividade que mulheres como eu não tem – e que eu acredito que, se depender da grande indústria, nunca terá, então a gente precisa fazer alguma coisa. ”

Encontrar nossa essência em um reflexo no espelho é um grande desafio, mas, assim como Alice precisou passar por diversas aventuras e provações para conseguir voltar a ver com clareza, é preciso desenvolver um pensamento crítico sobre os padrões aos quais nós somos expostos todos os dias. Afinal, como Genize completa em sua entrevista, “ o nosso corpo é o nosso lar, é o que carrega a gente para todos os lugares e o que faz a gente existir, então, como não amar? ”

Deixe uma resposta