A bocha rebelde

Escrita por: Mack Levino e Junio Oliveira

A bocha é um misto de boliche, de bolinha de gude e de curling (praticado com pedras de granito que deslizam sobre uma pista de gelo). O esporte que veio parar em Cuiabá tem sua identidade própria nos movimentos de lançamentos bailados, onde cada jogador cria uma assinatura, desenvolve um estilo próprio.

Há décadas, nesse mesmo espaço, antes chamado de Várzea Ana Poupina, o milenar jogo romano foi adaptado ao modo cuiabano. Ali você ouve muitos apelidos curiosos: Prego, Chico Cachorro, Bagre, Batú, Bode, Tachinha, Picolé, Lamparina, Bacará, Discoteca, Argentino, Chacho, Papudinho, Russo, Tana… Somente de vez em quando alguém é acionado pelo nome de registro.

Os apelidos e expressões do jogo, de tantas vezes pronunciados, logo ficam comuns aos ouvidos, mas também porque o presidente da Liga da Bocha Cuiabana, Nervan Castro, 65, faz questão de acolher os visitantes e apresentar cada adepto, bem como as principais características do esporte. Nervan, geralmente com uma latinha na mão, de chinelo, bermuda e sem camisa, informa que existem categorias entre os jogadores. Os “série A”, mais habilidosos e experientes. Os “série B” são jogadores em evolução e há ainda uma terceira categoria de “aprendizes”. Os jogadores e demais aficionados da bocha vêm dos muitos bairros de Cuiabá, como o próprio Dom Aquino, que abriga o ponto das partidas, mas também do Porto, Coophamil, CPA, Tijucal, Areão, Lixeira, Coxipó, Grande Terceiro… Além de bairros da cidade vizinha Várzea Grande, como Cristo Rei, Mapim e Manga, dentre outros.

Diariamente, chegam aos poucos trazendo o gosto comum pela tradição da “rebelde” bocha cuiabana. Há sempre um equipamento ao comando de Samuel de Moraes, o “Samuca”, 65, tocando lambadão, sertanejo, rasqueado, sofrência, mas também pop rock. É comum se reunirem aposentados de várias profissões como médicos, advogados, funcionários públicos, professores, empresários, ex-atletas, mas a grande maioria está na ativa e chega diretamente do trabalho. A motivação é o próprio jogo, mas o que fazem mesmo é conversar sobre quase tudo e beber aquilo que trazem de casa, ou que é servido pelos bares ao redor da praça, apostar torcendo e dando pitacos nas jogadas. Alguém é escolhido para segurar as apostas e pagar os prêmios no final. Mulheres não participam do jogo e raras vezes presenciamos alguma em mais de três meses de convivência no espaço.

Todos levam consigo uma bagagem inevitável de histórias. Um dos mais interessantes personagens da praça da bocha é Eliano Dores da Cunha, o “Chacho”. Ele é uma espécie de gerente na manutenção do espaço, relacionamento com a vizinhança e cuidado com o equipamento. Chacho é uma memória viva da bocha na praça e reclama da falta de apoio das autoridades à tradição da bocha cuiabana. Com pesar, lembra que já foram intimidados a sair dali. Para ele, a bocha sempre teve que resistir. Conta que, certa vez, “uma patrulha policial fazia uma diligência no bairro. Renderam todos da bocha, revistaram todo mundo com truculência como se fôssemos bandidos”.

Quem se aproxima daquele espaço e começa a conviver com aquela comunidade percebe que existe uma “cadeia produtiva” em movimento. O esporte é a bocha, mas há relações financeiras nas apostas e nos negócios que são fomentados. Há também interações sociais que se formam e se mantêm há décadas, além de manifestações culturais na música e na prosa própria criada e renovada a cada temporada.

Em um típico sábado na praça da bocha cuiabana observamos um grupo de adeptos sentados em tocos, cadeiras e muretas, um ao lado do outro. Assistiam à bocha e discutiam as apostas enquanto comentavam o jogo daqueles em quem tinham apostado. Pelos assuntos, é possível perceber que se conheciam há muitos anos. Quatro deles faziam o mesmo movimento, quase sincronizado, enquanto abasteciam seus copos com diferentes bebidas. Em um deles, uma cerveja artesanal local, que custa cerca de R$15. O segundo bebia uma cerveja comum de latinha, de R$2. O terceiro bebia um famoso whisky de R$350. E o último balançava um corotinho de pinga de R$1. Onde mais essas pessoas, tão diferentes, se encontrariam como iguais?

A ordem da bocha oficial

Nos espaços dedicados à bocha, o ideal da estrutura e do comportamento é estabelecido pela Confederação Brasileira de Bocha e Bolão (CBBB), filiada à Confederação Sul Americana de Bocha (CSB) e vinculada à Confederação Bochística Internacional (CBI). A Comissão Técnica Arbitral Internacional (CTAI) aprovou em janeiro de 2018 a versão final do padrão das canchas, das regras e do fair play no jogo. Essas regras estão disponíveis nos sites dessas entidades e são seguidas pela Federação Mato-Grossense de Bocha (FMB), à qual a Liga da Bocha Cuiabana (LCB) não é filiada. A CTAI define que a superfície da cancha deve ser plana e lisa, feita de terra batida, saibro ou piso sintético. Deve ser coberta e medir de 24 a 26,5 metros, com 4 metros de largura e contenções com 40 centímetros de altura. O código oficial da CTAI é muito detalhado e traz todas as especificações da cancha, do jogo e do que ocorre ao redor do dele detalhadamente. Mas você não verá nada disso na bocha cuiabana.

A liberdade da bocha cuiabana

Criada no Império Romano e levada pelos soldados aos povos dominados, a bocha logo se popularizou. No final do século XIX foi trazida por imigrantes italianos para a América do Sul. Primeiramente para a Argentina, depois Brasil e demais países. Não há precisão histórica ou documentação de quando a bocha chegou a Cuiabá. Mas, ao conhecer o cotidiano da praça da bocha e o modo de jogar que desenvolvem ali, não é difícil perceber que os amantes do esporte adaptaram muitas das regras ao seu modo de jogo e à sua realidade, a ponto de o reinventarem ao seu próprio jeito. Aí é que se entende o porquê de não apenas chamarem de bocha, mas “bocha cuiabana”, uma versão rebelde.

Ao estudar as regras oficiais, assistir a vídeos na internet e conhecer a prática do jogo em outras canchas de Cuiabá, não há dúvida de que a bocha cuiabana tem vida própria. Luiz Mariano Dos Santos, 57, frequenta a praça da bocha e herdou o gosto pelo jogo de seu pai, Jorge Dos Santos, e este de seu bisavô, Júlio Carroceiro, que por muitos anos coordenaram a Liga da Bocha Cuiabana.

“Isso deveria ser pesquisado, mas em sua análise remonta à década de 40. Uma coisa é certa: aqui, a bocha sempre foi jogada assim. Não mudou e não irá mudar!”, assegura Luiz.  Em 2014, a Prefeitura de Cuiabá construiu o Complexo Poliesportivo Dom Aquino e incluiu ali uma cancha oficial para a Liga. O grupo chegou a se mudar para o novo espaço, mas seus frequentadores só ficaram 9 meses por lá. Celso Amorim, o “Batu”, explica que “a nossa bocha é jogada em terreno torto, com árvores no meio da cancha, raízes expostas, pedregulho aqui, chumaço de grama brava ali, buracos e obstáculos”. As diferenças mudam as condições de jogo. “Essas dificuldades exigem habilidade e até sorte do jogador. Lá no centro esportivo era tudo lisinho, uma chatice cheia de frescura. Nós não cabemos lá”, desabafa apaixonado.

Outro frequentador, Valdenildes Correa, 63, se aproxima e diz: “lá não podia beber, nem xingar e zoar os outros! Sem isso não tem bocha!”. Outro assíduo da praça, Isaias Fernandes, 53, também aponta que, no poliesportivo, não podiam apostar. “Na cancha do complexo não podíamos apostar! Como? É a aposta que anima o jogo e toda a turma que frequenta diariamente a praça!”, reclama.

O vice-presidente da Liga, Odair Magalhães, 63, conhecido como “Prego” e jogador “série A”, já jogou campeonatos da Federação em cancha com as regras oficiais e foi campeão, mas desde os oito anos de idade frequenta a bocha cuiabana. Começou segurando o dinheiro das apostas e contando os pontos do jogo até se tornar um jogador de referência. O veterano também confirma que sempre houve apostas, bebidas, cancha aberta e acidentada, e aquelas zoações e rusgas às vezes tensas entre os jogadores e apostadores ao redor, algo impensável em uma cancha convencional de bocha.

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