O retorno feroz da sífilis

Escrito por: Kimberly Souza

E os modismos, movimentos conservadores e a importância do diálogo aberto.

“Meu ex ficou tentando me ligar várias vezes e quando atendi, ele disse que queria falar comigo e que era questão de saúde. Foi no final de 2017, uns bons meses depois de terminar um relacionamento aberto. Ele havia ido ao postinho com manchas por todo o corpo, no começo achou que era alergia mas, de cara, o médico suspeitou de sífilis. Aplicou um tratamento e aconselhou ele avisar todos com quem ele se relacionou. Na hora que ele me avisou eu tentei manter a calma mas não consegui. Fui imediatamente no postinho e fiz meus exames Meu exame demorou 1 mês para ficar pronto. Eu já estava em outro relacionamento e várias coisas passavam pela minha cabeça, inclusive pela falta de conhecimento sobre o assunto”.

Essa é a realidade que J, vinte e poucos anos, vivenciou durante o processo de detecção de sífilis. J faz parte da parcela da população que está vendo uma infecção, que assustou muita gente no passado, voltar com força, muito preconceito, pouca informação.

O Brasil tem registrado o maior índice de sífilis desde 2010. Só em 2018, foram 158 mil casos de sífilis adquirida, equivalente a 75,8 casos a cada 100 mil habitantes. Em 2010, o índice era de 59,1 casos na mesma proporção.

Dados preliminares de 2019 apontam que a tendência é o aumento, e essa é uma realidade global, que tem preocupado a Organização Mundial da Saúde.

Karen Morejón é médica infectologista e Membro da Sociedade Brasileira de Infectologia. Para ela, o motivo desse aumento exponencial nos casos de sífilis são justificados pela falta de conhecimento adequado sobre a doença e, por consequência, o fato de as pessoas estarem deixando de lado os métodos de proteção durante o sexo. E diferente do que diziam os estudos e os tabus passados, todas as pessoas, idades e orientações sexuais estão sujeitas à doença.

“O enfrentamento deve começar com a disseminação de informações sobre a doença e suas formas de prevenção, a partir de fontes confiáveis. Vejo que muitas pessoas utilizam plataformas digitais para inúmeras finalidades, mas poucos buscam esse tipo de conhecimento, que também pode ser conseguido em conversas francas com equipes de saúde e com amigos, por exemplo, para que se crie uma rede de conhecimento”.

O que é?

Uma Infecção Sexualmente Transmissível (IST) que pode ser transmitida por contato sexual desprotegido (oral, vaginal e anal) ou para o bebê durante a gestação ou parto.

Como perceber?

Ela pode ter diversos sintomas, dependendo do grau:

Sífilis primária causa uma ferida indolor no local de entrada da bactéria (pênis, vulva, vagina, colo do útero, ânus, boca e regiões próximas na pele), que aparece entre 10 e 90 dias depois do contágio e desaparece sozinha.

Sífilis secundária ocorre entre 6 semanas e 6 meses depois da ferida primária. Causa machas no corpo e pode causar febre, mal estar e dor de cabeça.

Sífilis latente não causa sintomas, mas está presente no período de 2 anos do contágio.

Sífilis terciária pode surgir de 2 a 40 anos após o início da infecção, com aparição de lesões na pele ou ossos, cardiovasculares, neurológicas e psiquiátricas.

Sífilis congênita pode se manifestar logo após o nascimento, durante ou após os primeiros dois anos de vida da criança. Pode ocorrer aborto espontâneo, parto prematuro, má-formação do feto, surdez, cegueira, deficiência mental e/ou morte ao nascer.

“O conhecimento é nossa arma mais poderosa. Informe-se em fontes seguras e converse com os amigos. Procure uma unidade de saúde ou seu médico e faça exames para IST de forma regular. Cheque seu cartão de vacina. Algumas doenças que podem ter transmissão sexual podem ser prevenidas através de vacinação, como hepatite b, hepatite a e hpv)”, orienta a Dra. Karen.

O movimento antivacina

A socióloga Juliana Caetano associa o grupo que desmente os benefícios da vacina para a população com o movimento de não usar métodos de proteção durante o sexo. Após anos de conscientização sobre o uso da camisinha em todos as relações, preservativo caiu de moda – e tem sido um dos fatores mais emblemáticos para a volta das infecções sexuais que estavam em situação de controle há tempos atrás.

“Na década de 90 e nas primeiras desse milênio, haviam campanhas de prevenção do HIV, distribuição de camisinhas e, na época do carnaval, propagandas para a prevenção. Hoje quase não vemos mais isso e o motivo, por um lado, é positivo, do resultado do avanço em tratamentos e disponibilização gratuita da terapia retroviral. Pelo lado negativo, o efeito colateral dessa melhoria é a perda do medo das IST e a falta de informação, o que gera um aumento, especialmente nas gerações mais jovens”, pontua.

Sex Education

Outro ponto de dificuldade apontado pela socióloga é a falta de diálogo aberto e consciente sobre sexo e sexualidade.

“Apesar de vivermos em uma sociedade hipersexualizada, falar sobre dúvidas, medos e precauções é difícil. As pessoas falam que adquiriram diabetes por causa do estilo de vida e alimentação inadequada, mas não falam que possuem HPV ou sífilis, pois são doenças socialmente inaceitáveis”.

A tecnologia, o acesso à informação e os novos movimentos sociais, de acordo com Juliana, têm possibilidade debates importantes para essa quebra de paradigmas: “Recentemente ouvi em um podcast a propaganda de uma prefeitura sobre o combate à sífilis. O tema foi apresentado por jovens e voltado ao público de 20 a 30 anos. As informações foram trazidas de forma tranquila, com qualidade e num clima divertido”.

Juliana condena atitudes como a proposta de abstinência sexual promovido pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos: “As políticas públicas de saúde devem estar focadas em compreender os movimentos da sociedade e adaptar-se, não querer impor um comportamento específico para combater o aumento das IST ou gravidez precoce. Nesse sentido, a série Sex Education, por exemplo, tem feito mais pela conscientização dos jovens do que as ações do próprio governo.”, finaliza.

J fez o tratamento, repetiu os exames e hoje vive tranquilamente, mas sendo alvo do estigma deixado pela doença: “A sífilis não mata mas pode ter complicações graves que não são tão faladas. Quando saiu o resultado, meu namorado me acusou de ter passado pra ele. E isso pesa horrores na cabeça. O tratamento foi tranquilo até. Tomei 30 comprimidos durante 30 dias. Refiz os exames e foi confirmado que estava bem”.

Ainda assim, J faz questão de falar abertamente sobre a doença e incentivar os amigos – e os leitores da ComTempo – a cuidarem da sua saúde por completo: “Eu realmente recomendo todos a fazerem exames regularmente, todos os anos, para garantir que estão saudáveis. Também recomendo buscar informações, que tranquiliza e faz a gente se cuidar da melhor maneira possível. E esse processo de buscar informações deve ser mais ativo. Quando for fazer os exames, converse com o médico. A equipe de saúde pública é especializada em IST e podem tirar toda e qualquer dúvida além de fornecer informações verdadeiras e com embasamento para quem solicita”.

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