Um guarda-chuva de possibilidades

Série: Além do arco-íris
Escrito por: Martina Colafemina

A última reportagem da série “Além do arco-íris” aborda a letra A do LGBTQIA+, a assexualidade. Dentro do grupo das pessoas que não sentem ou sentem pouca atração sexual, há ainda diversas expressões. Na penúltima reportagem, foi a vez das histórias das pessoas intersexo, a letra I

Felipe Monteiro é auxiliar de escritório, tem 25 anos e mora em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. E ele deixa bem claro: gosta muito de rapazes. Esse fato não o faz menos assexual.

“Sou assexual estrito homorromântico. Isso quer dizer que eu não sinto atração sexual, mas sinto atração romântica por rapazes. O homorromântico sente atração romântica pelo mesmo gênero”, explica ele. As atrações que os assexuais sentem, segundo o exemplo de Felipe, são como a luz branca: essa luz carrega nela diversos espectros juntos.

Para alossexuais, as pessoas que sentem a atração sexual de forma plena, essas atrações muitas vezes são vistas apenas como uma só, onde tudo está na luz branca. Mas para pessoas como assexuais e arromânticos, essas atrações podem ser nitidamente sentidas de maneiras independente e sentidas diferentemente. A assexualidade é um termo guarda-chuva, que abriga em si todas as pessoas que não sentem plenamente a atração sexual. As pessoas que não sentem atração sexual de forma alguma são os estritos.

“Os demissexuais são aqueles que são estritos até que um link ou conexão especial seja feita com alguém. Esse link especial não tem exatamente uma fórmula ou uma via de regra, a regra é só ter o link, seja emocional, seja sentimental. E quando os demi alcançam esse link, eles começam a vivenciar a atração sexual plena pela pessoa”, explica Felipe. Já os greys ou cinzas são aqueles que estão no meio termo entre a assexualidade e a alossexualidade. Eles podem hora ter uma experiência estrita e hora experimentar atração sexual, e não há regra para essa flutuação.

“A diferença entre demis e greys é que o demissexual, uma vez que a conexão esteja formada, ele experimenta plena atração sexual, enquanto o grey pode ter a conexão e não estar no momento de ter atração sexual ainda, ou, pode nem ter conexão e já experimentar atração sexual”, complementa Felipe. Os arromânticos, apesar de não serem necessariamente assexuais, estão ligados ao grupo. Os assexuais são aqueles em que a atração sexual não é plena, e os arromânticos, aqueles em que a atração afetiva não é plena.

Felipe está, atualmente, em um relacionamento. “Meu namorado também é estrito, então a gente se dá muito bem. O sexo no relacionamento é algo único de cada relacionamento, então o que mais tem de importante com meu namorado é a nossa dinâmica, que possui muita química! Quase nunca brigamos, e tentamos sempre um elevar o outro. Nós namoramos à distância, ele de Curitiba e eu aqui do Rio, então nos vemos pouco no ano, mas sempre que alguém consegue uma semana de férias do trabalho, a gente junta um dinheiro pra se ver”, conta ele. Apesar de estar em um relacionamento com outra pessoa assexual, Felipe explica que é possível que alossexuais e assexuais namorem, e que dentro dos relacionamentos existam ainda práticas sexuais. “Eu sou estrito mas não sinto repulsa por sexo. Na verdade, eu e meu namorado temos nossas práticas que para a sociedade não seriam consideradas práticas sexuais, mas tenho certas práticas com ele. Mas sou estrito e tenho certas práticas sexuais? Sim, a assexualidade por mais irônico que pareça, não tem a ver com sexo! Existem assexuais que tem relações sexuais, porque a assexualidade tem a ver com a atração sexual e não com o sexo”, finaliza ele.

A jornada de se entender

Foi um processo longo e confuso, para o advogado Walter Mastelaro Neto, 33, entender a própria assexualidade. Desde cedo, ele entendeu que era bissexual, mas a maior dificuldade foi entender a relação com o sexo. “Eu não tinha interesse no sexo, já tinha transado com meninos e com meninas, e para mim, o sexo era uma coisa desinteressantíssima, e isso era confuso, porque não havia nessa época a possibilidade de que eu me considerasse um assexual. Eu conheci o termo porque estava rolando pela internet, mas eu lembro que a ideia que eu tinha de um assexual era de uma pessoa bem diferente. Então isso nunca passou pela minha cabeça, porque eu tinha a ideia de que seria uma pessoa que nunca tinha feito sexo, virgem, então para mim isso não era uma possibilidade porque eu já tinha feito sexo. Segui adiante. Eu só consegui me considerar assexual porque, terminando a faculdade, eu já tinha uns 23 anos, comecei a estudar mais as diversidades sexuais e comecei a me deparar mais com a assexualidade. E eu vi que a assexualidade não era aquilo que eu acreditava ser. Fiquei curioso, fui parar nos fóruns, e lá, trocando muita experiência e conversando com os membros dos fóruns e dos chats, eu consegui me identificar como assexual”, revela Walter.

Atualmente, ele se identifica como pan-grayrromântico. Nos relacionamentos, tudo ficou muito mais claro e melhor quando ele descobriu a assexualidade. “Costumo dizer que os meus relacionamentos antes de me entender como assexual foram uma bagunça, até porque eu não tinha termos e não sabia explicar para as pessoas aquilo que eu não sentia. É muito complicado tentar explicar quando você não tem palavras e termos para isso, que você ama a pessoa, mas não quer fazer sexo com ela. Especialmente porque é isso, a gente tem uma relação muito próxima, nessa sociedade sexo normativa, entre sexo e amor, enquanto também conseguimos separar uma coisa da outra facilmente. Depois que me descobri assexual, sempre falo, acho que meus relacionamentos finalmente se tornaram relacionamentos normais. E normais porque o sexo sempre foi um ponto de conflito antes, as pessoas não entendiam, elas não se sentiam amadas, desejadas, sempre achavam que eu estava traindo, que eu não tinha interesse. Vou dizer que não tive grandes problemas nos meus relacionamentos depois que me assumi assexual em namorar pessoas sexuais. As pessoas com quem namorei, todas conseguiram compreender muito bem a questão”, explica Walter.

Jeanine Adler, designer de 25 anos, sentia desde o ensino fundamental que a atração que sentia era diferente. “Essa diferença ficou muito clara durante a faculdade, e uma vez uma aluna sugeriu que eu poderia ser assexual. Por uns anos eu não levei a sério, mas um dia pesquisei sobre e me identifiquei com muito do que se descrevia sobre o tema, e me assumi assexual. No meio em que eu estudava, as pessoas tinham a mente aberta sobre sexualidade no geral, então meus amigos não só aceitaram como se interessaram de entender sobre. A família teve uma reação um pouco indiferente, mas me senti acolhida”, expressa ela. Ela se identifica como gray e está atualmente em um relacionamento com uma pessoa alossexual.

“A forma que sentimos atração sexual tem uma distância muito evidente, mas resolvemos isso conversando. Estou com uma pessoa que entende bem, e respeita os limites que existem. Na verdade, todo relacionamento tem os seus.  No mais, é um namoro normal e saudável!  Acredito que todo relacionamento tem suas particularidades e limites, e nós conseguimos lidar bem com os nossos”, conclui Jeanine. Porém, os dois já passaram juntos por uma situação de invisibilização. “Falaram para o meu namorado que ‘descobriram’ que eu era assexual, e que ele tinha que terminar comigo por isso”, conta.

Felipe entendeu que era assexual uma semana depois de se assumir gay para a mãe. “Uma semana após minha saída do armário, minha mãe disse aquela frase que toda mãe quando aceita diz: ‘Se é esse o tipo de sexo que você quer, então eu te aceito’. Mas aí eu parei comigo mesmo e perguntei: ‘Mas tem que ter sexo?’. E comecei a pesquisar sobre. Encontrei a assexualidade, e foi como se eu tivesse conhecido a mim mesmo naquela hora. Sabe quando você sabe algo sobre você mas você apenas não tem o nome para isso ou pensa que isso não existiria? Então, basicamente foi esse meu momento de descoberta”, conta ele.

A vivência assexual

Umas das situações discriminatórias que mais marcaram a memória de Walter, foi quando ele procurou um psicólogo para falar sobre sua assexualidade. “Eu cheguei e falei que tinha me descoberto assexual. Eu queria discutir essas experiências, essa descoberta. Meu psicólogo, a pessoa que eu procurei, não conhecia a assexualidade e me disse que aquilo não existia, que isso era uma doença, uma patologia, que eu provavelmente tinha sofrido algum trauma, algum tipo de bloqueio que me afetava não pensar e não ter vontade de ter relações sexuais. Ele chegou a me recomendar que fizesse exame de dosagem hormonal, eu cheguei a fazer, bem contrariado, e não voltei mais nele. Hoje eu tenho encontrado uma pessoa que entende e que a gente conversa muito tranquilamente sobre isso”, relata o advogado.

Quando ele começou a falar abertamente em rodas de amigos, por exemplo, também enfrentou situações de discriminação. “Embora meus amigos mais próximos sempre tenham me respeitado muito, eles talvez não entendessem. Quando eu saía, já saía pronto para falar ‘Olha, a assexualidade é isso, se vocês não entenderem tem aqui links para vocês lerem sobre, tem estudos, tem notícia de jornal, qualquer dúvida estou aqui’. Mas eu passei a ouvir, às vezes, em rodas mais expandidas de amigos coisas como ‘Olha, você nunca transou direito, tenho certeza de que se você transar comigo eu vou te corrigir’, ou coisas do tipo ‘Para quê você está vivo se você não transa?’. Associações com robôs, com plantas, isso são coisas que aconteceram e passei muitos anos estudando sobre a assexualidade, então quando decidi contar para alguém eu já estava muito preparado para essas questões. Eram coisas doloridas, mas eu já estava preparado para lidar com isso tudo”, comenta.

Felipe relata sempre ouvir ao menos algum tipo de piada sexual, quando fala sobre sua assexualidade. “São raríssimos os que entendem. Mas uma das piores frases que já ouvi foi de um homem hétero de mais idade que falou brincando: ‘Tudo bem você ser assim, eu sei que posso dormir do seu lado agora sem medo algum…’. Eu pensei, ‘Ué, se eu não fosse assexual eu teria que estuprar todo mundo que dorme do meu lado?’, e isso sem falar da questão de arranjar romance quando se é assexual. Muitos rapazes não curtem sair com pessoas assexuais justamente por não envolver o fator sexo na questão. Muitos, na verdade, só aceitavam sair comigo se barganhassem alguma coisa, e eu, como não cedia, eles me jogavam para escanteio e me diziam frases como ‘Você é incrível, super gostei de você… mas eu preciso de mais’. E você fica se achando um lixo, achando que falta algo em você”, desabafa ele. Em contrapartida, ele tenta estar sempre muito engajado nas pautas LGBTQIA+.

“Eu milito muito virtualmente e presencialmente quando vejo que alguém está disposto a aprender, mas fora disso, eu não me dou muito bem em multidões, então eu não consigo ir em paradas LGBTQIA+. Mas quando eu conseguir superar essa fobia social eu vou conseguir levantar a bandeira no meio deles como em um sonho”, ressalta Felipe. Ele e Jeanine são administradores de um grupo sobre assexualidade no Facebook que reúne muitos membros.

“Sempre que posso, tento ser didático com os membros novos. Isso tudo que te expliquei, falo frequentemente com eles!”, expõe. Além de estar presente no grupo, Jeanine também levou o tema da assexualidade para a área científica. “Eu fiz um TCC sobre assexualidade, que gerou conteúdo científico sobre o tema. Hoje eu fico em um papel mais de informação, já que existem poucos grupos ativos de militância assexual no Brasil. No mais, eu tento participar de eventos sobre visibilidade em geral”, finaliza Jeanine. Depois de partilhar desse pedaço de bolo produtivo com pessoas assexuais, a série “Além do arco-íris” fica por aqui.

E o que há de mais?

O “+”, dentro da sigla LGBTQIA+ representa os diversos tipos de identidades, sexualidades, personas e situações que existem e também as que vamos, ainda, descobrir. Dentro do “+” está inserida, por exemplo, a pansexualidade, que é a atração sexual ou romântica por qualquer sexo ou identidade de gênero. Por isso, também, é que existem, em alguns momentos, diversas siglas para designar a comunidade LGBTQIA+.

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