A luta por existir

Série: Além do arco-íris
Escrito por: Martina Colafemina

Na quinta reportagem da série “Além do arco-íris”, a ComTempo abordou o movimento Queer, a letra Q do LGBTQIA+. Nesta penúltima matéria, é a vez das pessoas intersexo, a letra I do LGBTQIA+ relatarem o que é ter direitos negados desde o nascimento, por não nascerem dentro de uma binariedade esperada pela sociedade

Antes de nascer, já é esperado do bebê um entre os dois sexos, masculino ou feminino. Acontece que a natureza existia há muito tempo antes de o ser humano criar o contrato social. E ela faz com que seja completamente possível que esse ser humano, do qual esperam uma definição desde o útero, não tenha um sexo definido.

Antes chamadas de hermafroditas, um termo que representava um olhar muito mais patológico, as pessoas intersexo são aquelas que apresentam uma anatomia genital e reprodutora destoante de um corpo feminino ou masculino. Quando uma criança nasce, é designada como menino ou menina com base nos genitais e no sistema reprodutivo, além do cariótipo: XX para o sexo feminino e XY para o sexo masculino. No entanto, há diversas alterações de cariótipo, presença de genitais de um sexo com órgão reprodutivo de outro, alterações em glândulas e diversos fatores que fazem com que a pessoa apresente – e já nasça – com características dos sexos feminino e masculino.

Essas alterações não trazem nenhum tipo de interferência na saúde dessas pessoas. E, segundo pesquisadores, a possibilidade de que uma criança nasça intersexo não é rara. É comparável à probabilidade de ter cabelos ruivos naturais.

Desde 2012, é garantido por lei o direito da pessoa intersexo de ser registrada, ao nascer, com o sexo indefinido. Porém, a lei não era cumprida na prática. A psicopedagoga e sexóloga Thaís Emília de Campos demorou um bom tempo para conseguir emitir a certidão de nascimento do filho Jacoby, que nasceu em 2016.

“Eu não consegui registrá-lo porque a maternidade não me forneceu a DNV, a Declaração de Nascido Vivo, acredito que por desconhecimento da legislação. Tem uma legislação desde 2012, que na DNV consta sexo masculino, feminino e ignorado, mas a maior parte das maternidades não sabe para que se usa o ignorado. Quando o Jacoby nasceu já tinha essa lei, mas a maternidade demonstrou não conhecê-la. Então, eles não me forneceram o documento, forneceram só depois que fizemos o exame de cariótipo, ele já estava com 3 meses, e eu tive que fazer por conta, aí foi quando eles emitiram. Nesse período eu fiquei sem auxílio maternidade, ele ficou sem cartão do SUS, sem convênio médico, sendo uma criança cardiopata, sem nome, não tinha registro, não existia perante a lei. Então não tinha nenhum direito civil garantido”, denuncia Thaís.

A advogada Mônica Porto, presidente da comissão de Direitos LGBTQIA+ da OAB de Sergipe, por muito tempo não soube que era uma pessoa intersexo. Quando começou a falar sobre sua intersexualidade abertamente, deixou de ser Mônica, advogada, para ser vista como Mônica, pessoa intersexo.

“Antes, as pessoas queriam minha opinião e ajuda para processos, para falar sobre o direito LGBTQIA+, mas quando comecei a expor, eu era a pessoa intersexo, ponto. Às vezes era como se a minha capacidade laborária fosse questionada só por eu não estar dentro do sexo binário, que não existe. Já fui chamada de ET, de anomalia genética, isso pelo meu próprio pai, no plenário da OAB, de metade homem metade mulher. Fora as pessoas que se afastaram só pelo fato de eu lutar pelo direito de ser quem eu sou”, expõe a advogada. O mais difícil, para ela, foi aceitar a negação familiar. Alguns familiares chegaram até a negar o parentesco em público, mas a mãe de Mônica, por outro lado, está e sempre esteve ao lado dela.

Acolher e libertar

Thaís descobriu a intersexualidade do filho ainda durante a gestação. “Foi no sexto mês de gravidez, durante o pré-natal. Eu tive que fazer uma ressonância fetal. Na verdade, essa ressonância ia investigar o cérebro dele, se ele tinha alguma microcefalia ou anencefalia, além de cardiopatia. Nessa ressonância, eles viram que tinha a ausência do testículo e que provavelmente seria um clitóris aumentado. Mas não foi utilizado o termo intersexo, porque o termo que eles usam é genitália ambígua ou indiferenciada”, conta a psicopedagoga. Com o nascimento, além de enfrentar uma luta para conseguir que o filho fosse simplesmente considerado nascido, ela passou pelo acompanhamento de duas equipes médicas com Jacoby.

“Uma equipe falava que deveria ser feita uma vagina nele e que eu deveria educá-lo como menina, e eu não aceitei, porque eu acredito que não se educa gêneros, gênero é uma questão de identidade. Isso é da pessoa, senão não existiriam crianças trans. E na outra equipe, um médico falava para esperar crescer e respeitar o desenvolvimento do corpo dele, porque ele já tinha lidado com outros pacientes que tinham feito essa cirurgia na infância, que depois chegaram na vida adulta para ele querendo reverter a cirurgia e não teve como. Então eu vi que não existe um consenso médico, uma postura, uma segurança na questão da cirurgia, e a gente entendeu a cirurgia como uma violação no corpo dele, porque ele tinha um pênis, só que ele deveria decidir se queria o próprio corpo assim, se queria operar, não operar, optar por masculino ou feminino”, ressalta Thaís. Ela e o marido foram apontados como o primeiro casal no mundo a assumir a intersexualidade do filho publicamente e a lutar contra intervenções desnecessárias. “Algumas pessoas, na época, achavam que eu lutar pelo direito de registro civil de bebês intersexo, para que se cumprisse a lei de 2012, eu falar que meu filho era intersexo, era uma maneira de expor meu filho. Mas aí eu questiono: falar que ele era cardiopata também não seria uma exposição? A sociedade ainda vê o sexo como tabu, como algo que deve ser escondido. Mas eu tinha garantia que não se faz luta por direitos sem expor o que está acontecendo. Se você não conta e não mostra para autoridades que têm direitos civis de bebês sendo violados, como vai conseguir pleitear algo? Poucas pessoas faziam esse tipo de comentário, a maioria compreendia toda a luta e a violação de direitos que ocorria”, expõe Thaís.

Mônica descobriu que é intersexo aos 27 anos. Para ela, estar nessa condição é uma luta por existir. “É o medo de falar para a pessoa que eu estou saindo e ela desistir de mim por eu ser quem eu sou. É medo de fazer uma entrevista de emprego e pedirem para eu não falar quem eu sou para que o cliente não se sinta agredido. São muitos os preconceitos e invisibilidade diárias”, expressa ela. Essa luta, porém, também é motivo de orgulho: ela é a primeira pessoa intersexo a presidir uma comissão da OAB.

Um legado de amor

Jacoby, por conta dos problemas cardíacos, faleceu em 2018. O legado deixado por ele nas mãos de Thaís se transformou em conquista para outras crianças intersexo, conscientização e amor. No início de 2020, ela fundou a ABRAI (Associação Brasileira de Intersexos) junto com outros ativistas.

“Na ABRAI a gente vai ter duas principais pautas, que são o direito ao registro civil de bebês intersexo, que a lei seja cumprida, porque a lei existe, e que não sejam feitas intervenções em bebês sem consentimento e com procedimentos irreversíveis. Que isso seja pensado na singularidade de cada caso. É lógico, se há situações de saúde de emergência, que devem ser feitas cirurgias, é lógico que tem que ser feito, mas quando isso se trata apenas de uma questão estética, de adequar sexo a gênero, isso não é real”, ressalta Thaís.

Também neste ano, as batalhas que ela enfrentou com Jacoby geraram uma importante conquista: o primeiro bebê intersexo registrado exatamente como prevê a lei no Brasil. “Nós orientamos a maternidade quanto ao preenchimento correto da DNV, o casal foi ao cartório e saiu com a certidão com o nome da criança sem o sexo definido. Saiu RG, tudo da criança. Então vemos que a lei está aí e que ela funciona se a gente executá-la corretamente. Foi um grande ganho. Pela visibilidade do caso Jacoby, por ele ter ficado sem registro em 2016, em 2020, veja quantos anos, conseguimos ter uma certidão emitida da forma correta”, comemora Thaís

A história de Jacoby também se tornou um livro que inspira outras mães de crianças intersexo pelo Brasil. “Jacoby, ‘entre sexos’ e cardiopatias, o que o fez anjo?” está disponível na Amazon e tem constantemente ajudado também, profissionais de saúde. “Tem sido uma leitura que muitas mães e profissionais da saúde têm procurado e tem modificado pensamentos, tem transformado pensamentos”, celebra Thaís.

Para Mônica, poder atuar dentro da profissão de modo a garantir direitos e levantar a bandeira intersexo com orgulho é um grande ganho. “Aqui em Aracaju, estamos vendo como fazer capacitação nas maternidades e nos cartórios para que as crianças não sejam mutiladas ao nascer, nem invisibilizadas”, ressalta ela. O mundo, por mais que tentem, não pode ser encaixado apenas em rosa ou azul.

A sétima e última reportagem da série “Além do arco-íris” fala sobre a comunidade assexual, a letra A do LGBTQIA+, e também comenta o que há de mais na comunidade

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