Nada é verdadeiro, tudo é permitido

Série: Além do arco-íris
Escrito por: Martina Colafemina

Na última reportagem da série “Além do arco-íris”, o assunto foi a vivência da letra T do LGBTQIA+, as pessoas trans e travestis. A pauta agora é o movimento Queer, que representa a letra Q. Para os não-binários, assim como os ensinamentos da magia, há múltiplas maneiras de ser

Judith Butler é um dos principais nomes por trás da teoria queer. A teoria queer  afirma que a orientação sexual e a identidade sexual ou de gênero dos indivíduos são o resultado de um constructo social. Ou seja, os papéis designados socialmente a homens e mulheres não são naturais, mas essencialmente impostos pela sociedade.

A teoria queer defende que as identidades sociais são elaboradas de forma complexa, pela intersecção de múltiplos grupos, correntes e critérios. Influenciada pela obra de Michel Foucault, essa teoria teve origem nos Estados Unidos na década de 1980, a partir de áreas de estudo lésbicos, gays e feministas. Assim, defende que não há apenas expressões de gênero e sexualidade centradas na normatividade, mas múltiplas: as expressões não-binárias. Entre teóricos brasileiros, destacam-se nomes como Larissa Pelúcio e Berenice Bento.

Cris Fawkes, 27, artista, cresceu em um corpo designado como feminino, mas nunca se reconheceu como mulher. “Foi por volta dos meus 18 anos que comecei a conhecer sobre pessoas transexuais e toda a diversidade que tem quando falamos de identidade de gênero. Foi um processo de estudo e de comparações de como eu sempre me senti. Em 2016, aos meus 23 anos, eu me entendi como não-binário. Em 2017 iniciei minha terapia hormonal com testosterona com o intuito de diminuir meus traços físicos femininos”, relata Cristopher. A expressão de gênero dele é masculina, por isso ele escolheu o nome Cristopher e prefere ser tratado por pronomes masculinos.

A expressão de gênero é definida pela própria pessoa não-binária. Trata-se do conjunto de vestimentas, acessórios, estilos e modificações corporais pelas quais a pessoa exterioriza o próprio gênero. Quando este conjunto de indumentária é usado, ele passa a ter o gênero de quem está usando, embora a sociedade tenha a pretensão de colocar gêneros em objetos.

“Mas se me perguntarem se me sinto um homem, a resposta é não. Nem homem, nem mulher. Existe uma diversidade de identidades de gênero sendo estudadas há décadas, e é muito gratificante ver o assunto chegando nas mídias”, complementa Cris. Quanto à sexualidade, Cris não a define. “Já me envolvi com pessoas cis e trans. Atualmente, estou em relacionamento com uma pessoa também não-binária. O que me interessa na pessoa é sua relação como ser humano e não suas características de gênero ou sexuais. Então, prefiro não definir minha sexualidade”, explica ele.

“Sou o que sou desde que sou. Não me lembro de um momento na vida em que  estive confortável em minha condição. Apesar de não me sentir no eixo, também nunca me senti totalmente fora dele. O caminho sempre me pareceu dual e muito simples: me sinto quando não preciso me preocupar sobre qual roupa vestir, quais sinônimos atender, em qual fila estar”, relata Cael Camargo, artista de 18 anos. Ela não se identifica com nenhum gênero específico. “Apesar de a lista de gêneros já ser grande, eu nunca realmente consegui me encaixar com qualquer tipo de predefinição, porque ao mesmo tempo que eu me sinto confortável com termos como ele e ela, eu também não gostaria de estar dentro desses termos. Fica até meio complexo, as pessoas realmente se preocupam em como se direcionar. Mas, na verdade, eu nunca me preocupei com isso. Eu prefiro ser respeitada. Eu não consigo me identificar com nada, eu simplesmente sou”, complementa.

Apesar de ser diretamente interessada em mulheres, Cael também não define a sexualidade. Ela já ficou com homens, mas não pelo corpo ou pela sensação sexual que eles poderiam proporcionar, mas pela inteligência e pela forma como a trataram. “Eu não quis me assumir, quem me assumiu foi a minha mãe, mas todo mundo já imaginava desde que eu era criança, então não foi uma surpresa. Porém, se eu pudesse não ter contado eu não teria contado, porque não é algo que eu precisava que as pessoas soubessem. Quando você é, você apenas é. Algumas pessoas precisam contar, precisam que as pessoas escutem, e eu defendo muito isso também”, revela.

Viver em um mundo preso à binariedade

Para Cris, que é trans e não-binário, o preconceito está presente nas situações mais simples. Consultas médicas, uso de banheiros públicos ou até mesmo ir a uma loja podem se tornar situações discriminatórias em potencial. “Sempre somos expostos e isso pode incomodar muito. Já passei por situações de exposições onde mesmo informando que sou trans e solicitando o uso do nome e gênero correto, as pessoas não me respeitaram. Já fui repreendido ao usar o banheiro público masculino. E ainda tem, diariamente, as pessoas que nos apontam e julgam por questões culturais e religiosas. Eu sempre tento lidar de uma forma consciente, tento o diálogo, mas não permito que passem por cima de meus direitos civis. Transfobia é crime e cabe processo”, ressalta Cris.

Ir a um parque aquático ou praia, por exemplo, é uma atividade que Cris não exerce há anos. “Ainda não consigo usar um traje de banho sem despertar comentários. Ou ainda, ir a qualquer órgão público onde eu tenha que apresentar meus documentos ou fotos antigas, com as pessoas me olhando como se eu fosse um alienígena e eu ter que sempre ficar explicando o porquê sou diferente, porque mudei de nome e se já fiz algum tipo de cirurgia. É cansativo”, desabafa o artista. Ele já teve até mesmo que andar por meses com um decreto sobre nome social impresso na mochila para apresentar onde ia, porque sempre se recusavam a tratá-lo da forma correta.

Cael, por sua vez, passou por diversos tipos de violência, principalmente psicológica, na escola, e violência emocional por parte da família. “Os pais têm a mania de falar que o erro foi deles, e não é um erro. Só acontece. É uma evolução, as pessoas são diferentes. E sempre tem preconceito. Se não à sua direita, à sua esquerda. Quebrar esse paradigma é muito difícil”, exprime ela. Ela se lembra de uma situação que passou em uma boate em Batatais-SP, quando residia na cidade.

“Eu estava com mais seis amigas, e estava lotado o banheiro feminino, então fiquei como última da fila. Na hora que fui entrar, dois caras que estavam na porta do banheiro masculino me puxaram e me jogaram para o banheiro. Na hora, eu não queria estragar a minha noite, aquele momento em que estava tão bem. Então, a única coisa que fiz foi entrar no banheiro masculino. E na hora que abri a porta do banheiro, lembro que o segurança olhou para mim e disse: ‘Você é homem?’, eu falei: ‘Não’. ‘Você é trans?’, eu falei: ‘Não’. ‘Mas o que você está fazendo aqui, então?’. Aí expliquei a situação, disse que me jogaram ali dentro, que eu ia usar aquele banheiro e que ninguém ia me impedir. Acho que foi a primeira vez na vida que eu percebi que  eu não me incomodava em estar dos dois lados. Para mim não fazia a menor diferença. A partir desse dia, eu vou em qualquer fila. E se alguém brigar, eu volto para a outra fila. Porque o importante é não dar ao seu agressor o motivo que ele espera, que é um motivo para socar sua cara. Se alguém te dá uma pedra, você devolve uma flor. E é isso, sempre com bastante risada”, relata Cael. Ela nunca foi agredida, mas já passou pelo episódio de ver uma amiga ser agredida, enquanto foi segurada e impedida de ajudar.

A arte salva

A arte salvou a vida de Cris e também é uma parte intrínseca à essência de Cael. Os dois fazem poesia e música. Para Cris, a arte representa vencer, também, a depressão.

“Fui diagnosticado com depressão desde meus 15 anos, faço acompanhamento psicológico desde então. Foi justamente alimentando meu lado artístico que consegui força para enfrentar o preconceito. Quando comecei a terapia hormonal, recebi muitas críticas, não me sentia motivado nem para sair de casa e a arte foi uma válvula de escape. Hoje ela me fortalece, uso-a  para passar conhecimento, canto sobre o respeito. A arte me traz equilíbrio. A arte salva vidas!”, expressa Cristopher. Ele é escritor, cantor e modelo, e utiliza a própria arte para conscientizar as pessoas. Atualmente, Cris está inserido no projeto Transcrito, que visa dar espaço para artistas trans na cena do rap nacional.

Cael, há cerca de três anos, começou a participar como militante do movimento LGBTQIA+. “Eu estou dentro da luta estudantil, estou dentro da luta LGBTQIA+, estou dentro da luta pelos deficientes, estou dentro da luta pelos negros. Estou dentro de todas as lutas. Muita gente diz para mim que eu não posso abraçar todas as causas, mas acho que o maior problema disso tudo é não abraçar todas as causas. Até porque a gente está lutando pela mesma coisa. Lutando pelo movimento negro ou pelo LGBTQIA+, você está lutando pela mesma coisa, você está pedindo liberdade, respeito, espaço para ser”, expressa a artista. Ela divulga poemas e músicas por meio das redes sociais.

“Eu grito, luto, sangro e existo em nome de pessoas que foram assassinadas nesse sistema corrupto e heterogêneo. Em nome das pessoas que nunca se encontraram, e assim se perderam para sempre. Em nome de pessoas que foram oprimidas a vida toda. Em nome de quem ainda nem nasceu, mas que um dia ainda vai estar aqui nessa terra doída. Em nome das pessoas que precisam de uma mão para segurar, de alguém que fale ‘Você é capaz!’, ‘Você não é menos.’. Em nome dessas pessoas é que eu não me importo de ser o que sou. Porque sozinha eu não sou nada. Apesar de ser muito. Apesar de ser importante. Todos são importantes. Espero que nunca, nunca a gente desista. Porque eu não vou”, é o que Cael deixa bem claro.

“Foi revolucionário para mim subir em um palco na quebrada em que cresci e onde mais sofri preconceito, para conscientizar. Paz, amor e respeito sempre”, deseja Cris. Faça o que tu queres e seja como és, há de ser tudo da lei. 

A penúltima reportagem da série “Além do arco-íris” falará do movimento intersexo, a letra I do LGBTQIA+

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