Sorrisos e lágrimas

Série: Além do arco-íris
Escrito por: Martina Colafemina

A quarta reportagem da série “Além do arco-íris” busca olhar para o cotidiano e história de vida das pessoas trans e travestis, a letra T do LGBTQIA+, no país que mais as mata no mundo. A última reportagem abordou a bissexualidade, a letra B da sigla

Gênero não é sentimento, é identidade. “Você perguntaria a uma pessoa cis se ela sempre se identificou como cis? Acredito eu que seja a mesma situação com todos nós. Nós somos quem nós somos, não há porque questionar isso, até que nosso ambiente nos exija algo que nos provoque os questionamentos. Eu sempre fui eu. Fui menino, fui adolescente, sou homem”, explica Samuel Andrade, estudante de Psicologia de 30 anos, homem trans.

As pessoas cis ou cisgênero são aquelas que nasceram no gênero em que se identificam. As pessoas trans nascem em um gênero diferente com o que se identificam. Pessoas trans ou cis têm expressões diversas de sexualidade e também podem se identificar como não-binárias. Os não-binários não se identificam como homem ou mulher ou fluem entre esses gêneros.

Na América Latina ainda há uma outra expressão de gênero, a travesti. O Brasil lidera, há uma década, o ranking de países que mais matam trans e travestis no mundo. De acordo com o dossiê mais recente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), a maioria das mortes em 2019 ocorreu no Nordeste, onde foram registrados 45 assassinatos.

Porém, o Estado que lidera em números absolutos é São Paulo, com 21 homicídios. Em segundo lugar fica o Ceará, com 11 casos. A gravidade das violências também assusta: 80% dos casos relatados apresenta requintes de crueldade.

Samuel é um dos brasileiros que conseguiu a retificação do nome. “Honestamente? Ter meu nome retificado significa que posso morrer e ser enterrado como quem sou. Falando sério, é uma sensação absurda você olhar para um papel e ver que você oficialmente existe. Mas a luta continua, ainda não consegui terminar de retificar todos os documentos. O processo em si não é difícil, mas, sim, demorado. A parte mais complicada é retificar a certidão de nascimento, pois os cartórios não usam uma linguagem acessível para informar quais certidões negativas o sujeito precisa apresentar e isso atrasa e muito a vida da maioria. Agora estou correndo atrás de terminar de retificar todos os outros documentos, inclusive histórico escolar. Se para mim, que tenho instrução e acesso, é difícil, imagine para aqueles que não gozam desses privilégios!”, frisa Samuel. Atualmente, o processo para algumas retificações é facilitado.

“Pensa só: eu precisei de um juíz olhar para mim, ler aquele processo e julgar se eu podia ou não utilizar o nome Nícolas. Se ele olhasse para mim e achasse que eu não poderia, eu não poderia! Eu tive que anexar prints de redes sociais, de carteirinhas em que utilizava o nome social, tive que apresentar testemunhas, para poder utilizar um nome”, conta Nícolas Augusto, trans masculino e artista que retificou o nome em um passado recente, 2017. Questões simples para pessoas que nasceram no gênero em que se identificam podem ser, para as pessoas trans, os principais motivos de discriminação. O respeito ao nome e o simples uso de um banheiro público são campeões em conflitos gerados por agressores.

“Eu já passei por inúmeras, incontáveis situações de transfobia. Uma delas foi quando eu estava bem no início da transição, eu trabalhava em um shopping em Goiânia e eu fui ao banheiro masculino, e o segurança me tirou de lá. Foi muito vergonhoso. No momento eu não soube como lidar com a situação, foi muito constrangedor”, relata Nícolas. O episódio lhe gerou até mesmo consequências físicas, como infecções de urina. Nícolas evitava ao máximo ir ao banheiro em espaços públicos depois dessa situação, com medo de que ela se repetisse.

“O que me aflige é imaginar como o mundo vai tratar meus filhos. Tudo é mais difícil quando se é uma pessoa trans, principalmente para aqueles que não têm passabilidade cis. Pessoas cis conseguem simplesmente ir a um banheiro público sem se preocupar se serão expulsos, enquanto só estavam querendo fazer xixi. Entende isso? Do afeto ao direito à vida, tudo é mais fácil quando se é cis”, frisa Samuel.

Como se a vida real fosse um sonho

Para Samuel, tudo relacionado à própria identidade sempre esteve consigo, mas como uma nuvem que ele não alcançava, porque não se permitia ver. “A  primeira vez que eu me percebi diferente foi aos nove anos, quando eu tive um sonho. Não vou entrar em detalhes sobre o sonho, mas, nele, eu era um menino, fisicamente, e, quando eu acordei, foi como se a vida real fosse um sonho e o sonho fosse a realidade que eu deveria estar vivendo. Passei noites tentando voltar para lá, para continuar vivendo como eu deveria ser. Nunca mais aconteceu”, expõe.

Nícolas se lembra de rezar, quando criança, para que Deus o transformasse em “um menino de verdade”. “Na minha cabeça eu sempre fui menino, não entendia porque as pessoas diziam que não. Minha mãe me conta histórias, por exemplo, de que sempre que eu ia para a casa da minha avó eu fazia xixi na roupa só para poder usar as cuecas do meu primo, até que minha avó acabou me dando uma. Mas ninguém entendia nada, enquanto era criança meio que deixavam, mas conforme eu crescia as pessoas me faziam acreditar o quanto isso era errado”, lembra-se o artista.

“Minha lembrança mais distante sobre questionar meu gênero é de quando eu tinha 3 anos e perguntava para a minha mãe: ‘quando vou virar menina?’, conta Rafaela Martosi, mulher trans.

Na adolescência, Rafaela sentiu que talvez fosse gay. Porém, ficar com outros homens como um homem não parecia natural para ela. “Lá pelos meus 18 anos, quando passei a ter contato com outras mulheres trans, é que então me encontrei finalmente. Algo que acho bastante relevante dizer é que minha identidade de gênero já nasceu comigo, enquanto minha orientação sexual veio muito tempo depois”, explica.

Nícolas já tinha 20 anos quando se deu conta da existência de pessoas trans, e de quem era. “Vivi minha vida inteira uma vida que parecia não ser minha. Foi nesse momento quando consegui acompanhamento com uma psicóloga na cidade onde morava, por conta de outras questões, e a psicóloga falou comigo sobre pessoas trans. Fui pesquisar, e na época era ainda muito difícil de conseguir informações. Isso foi há sete anos atrás. E ainda assim era difícil ter informações, contato com outras pessoas. Durante muito tempo não tive nenhuma referência. Eu passei ainda mais ou menos um ano com uma luta dentro de mim. Aquela questão do medo, de como minha família ia reagir, como as pessoas iam reagir, fiquei em um embate muito grande, até que entendi que eu precisava me libertar, viver a minha vida, ser eu mesmo”, expõe Nícolas. Com quase 22 anos é que ele assumiu publicamente a identidade trans.

Também aos 22 anos, Rafaela ainda se apresentava socialmente como homem, já não conseguia disfarçar alguns traços corporais femininos que eram evidentes e estava sem emprego. Em uma discussão com o pai por motivos não relacionados à transição, ela teve que sair de casa. “Saí sem dinheiro, sem nada, só com a roupa do corpo, consegui uma grana emprestada e acabei por alugar um lugar onde só tinha um colchão e uma mesa, que era atrás de uma boate. Acabei fazendo amizade com as meninas que trabalhavam lá, que eram mulheres cis, e que me ajudaram muito nessa fase. Elas me incentivaram a me prostituir, porque eu não tinha o que comer, e esse apoio foi tudo. Assim que assumi minha identidade trans a prostituição veio junto da exclusão social, e eu acabei indo fazer ponto na rua. Quando meus pais descobriram como eu estava vivendo foram me buscar, me pegaram na BR. Desde aquele dia me abraçaram pelo que eu era e hoje me aceitam. Temos uma relação muito boa”, conta ela.

Sobreviver em meio ao caos

Atualmente, Rafaela continua trabalhando com a prostituição. Ela acredita que não há a possibilidade de emprego formal para uma mulher não passável como ela. “Entre nós trans existe um termo: passabilidade, que se refere ao quanto você consegue ser lida como uma mulher cis. Para essas trans lidas como cis sim, o mercado está aberto, pois elas passam despercebidas, mas sabemos que isso não se aplica à maioria esmagadora de pessoas trans no país. Para uma mulher como eu, não passável, a ideia de emprego formal nem existe. Simplesmente é algo que não penso, porque sei que não existe a menor possibilidade de ser inserida novamente”, exprime Rafaela.

A discriminação, para ela, não costuma chegar de forma direta. “Ninguém chega e me agride diretamente ou é violento comigo, é uma discriminação  sutil, é através de um olhar, através de um comentário discreto e não direcionado, e eu me sinto impotente em relação a isso, porque eu não tenho como afrontar ninguém quando as pessoas não se dirigem de forma desrespeitosa diretamente a mim. Eu ia acabar passando por ‘a travesti louca’”, desabafa.

Já para Samuel e Nícolas, as discriminações também acontecem de forma explícita. Os dois já passaram por uma situação parecida: o desrespeito ao nome em atendimentos de saúde. “A última situação que passei foi quando busquei atendimento médico no Centro de Triagem de Coronavírus na minha cidade. A pessoa que fez a recepção se recusou a colocar meu nome na ficha de inscrição, mesmo que meu cartão do SUS estivesse com nome social. Além disso, questionou eu estar com unha pintada. Nas palavras dela, se eu quero (sic) ser menino, por que pinto a unha? Naquele momento, eu só senti raiva, respondi que ela estava sendo inconveniente e que eu não estava gostando da atitude dela. Posteriormente, segui com uma denúncia na ouvidoria do SUS”, relata Samuel.

Nícolas passou por isso quando procurou atendimento por estar com zika vírus. “Naquele momento, eu ainda não havia feito a retificação dos meus documentos. Cheguei no balcão, minha carteirinha do SUS continha meu nome social, mas a minha identidade ainda não. Preenchi toda a ficha. Era a minha primeira vez naquele hospital, aí na hora que o rapaz foi colocar o meu nome na lista em que eles chamam a pessoa, ele colocou o meu nome da identidade. Eu cheguei para ele, tranquilo, e perguntei se não teria como ele colocar o nome que estava na carteirinha do SUS, que era o meu nome social e era o nome que eu utilizava. Ele me respondeu, na maior grosseria do mundo, que não tinha como e que lá eles colocavam o nome que estava no RG da pessoa. Eu já estava passando muito mal, deixei como estava mesmo, sentei e aguardei. Na hora que ele chamou, me chamou pelo nome do documento. Todo mundo ficou me olhando, foi aquele constrangimento enorme, mas tive que seguir, fui”, relata ele.

Situações como essa e várias outras pelas quais passou o motivaram a se engajar no movimento. “Em 2016 me filiei à Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil, e desde então, eu tenho militado junto à rede e de outras formas isoladas também. Com algumas outras ONGs, espaços e tudo mais. A rede foi fundada em 2009 no Rio de Janeiro e, desde então, vem trabalhando pela garantia de direitos para a nossa população, de pessoas trans e travestis”, explica Nícolas.

A Rede Trans atua ativamente em comissões no congresso e acolhe pessoas trans por todo o território nacional por meio de workshops e diversas iniciativas que buscam a criação de uma consciência política dessas pessoas. A Rede é, também, a única filiada à rede LacTrans, única rede exclusiva para discussão na América Latina e Caribe da temática de travestis e transexuais, desde 2011. Sobreviver entre sorrisos e lágrimas: é o que ninguém pode tirar.

A próxima reportagem da série “Além do arco-íris” representa a letra Q: as pessoas do movimento Queer

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