Sobre o que é o amor

Série: Além do arco-íris
Escrito por: Martina Colafemina

A terceira reportagem da série “Além do arco-íris” trata da bissexualidade, a letra B do LGBTQIA+. Na segunda edição da série, foi abordado o cotidiano da letra G, os homens gays. Ao contrário do que muitos pensam, a manifestação da bissexualidade não é sobre viver em uma metamorfose ambulante, mas não ter aquela velha opinião formada sobre tudo

O que você quer hoje? A pergunta, feita de forma sarcástica a tantos bissexuais no mundo, também era recorrente no dia a dia de Jéssica Souza. “As pessoas falavam assim: ‘Ai, o que você quer hoje? Homem ou mulher?’ E eu respondia: ‘Eu quero os dois’. Qual é o problema? Antes eu ficava quieta e só dava aquele riso de lado, antes de entender. Houve uma época em que se as pessoas perguntassem se eu era lésbica, eu respondia que sim, e se perguntavam se eu era hétero, respondia que sim também. Porque eu não tinha uma noção. Com o tempo eu fui me entendendo e quando a pessoa vinha falar ‘Ai, você quer homem ou mulher?’ Eu respondia: os dois! Quem eu me interessar hoje, quem estiver interessado por mim hoje. Qualquer um…”, conta.

Na bissexualidade, a violência não vem somente de forma física e psicológica, mas também de apagamento. Adjetivos como “indeciso”, “promíscuo” e até mesmo “depósito de porra (sic)” são comumente associados às pessoas que se identificam com essa sexualidade. “Tem muitas lésbicas, por exemplo, que não gostam de se envolver com bissexuais porque acham que vão ser trocadas, algumas até falam que não ficam com bissexuais porque beijam homens, coisas assim. E isso me deixa bastante chateada, porque acredito que se estamos com uma mulher é porque gostamos dessa mulher e não queremos ficar com nenhum homem, gostamos da pessoa. E não é por que estamos em um relacionamento e gostamos de homens e mulheres que vamos trair. Ao meu ver, algumas mulheres lésbicas têm muito preconceito com isso. Os caras, em compensação, usam isso para sexualizar bastante a bissexualidade. Se eu estou com você, quero estar com você, não quero fazer ménage. Não gosto dessa sexualizacão que eles fazem em torno da bissexualidade”, desabafa Jéssica.

Jéssica Souza

Os dados de violência contra mulheres e homens bissexuais estão geralmente inseridos nos dados de violência contra homens e mulheres gays. Isso acontece porque, fora a questão do apagamento, os ataques acontecem, geralmente, quando essas pessoas estão em relacionamentos homossexuais ou são lidas pelo agressor como homossexuais. Além disso, existe um amplo espectro de identidades e outras sexualidades que se identificam como bissexuais.

Jéssica, mulher preta e gorda, acredita que estar engajada no movimento negro também engloba a luta LGBTQIA+. “As pessoas costumam separar essas duas lutas e eu acho que não tem que excluir, tem que juntar,  porque também existem muitas pessoas LGBTQIA+ pretas, que são geralmente as mais esquecidas, sofrem racismo e os gordos também sofrem gordofobia. Pela minha vivência e pelas minhas experiências, o meio LGBTQIA+ pode ser muito racista e muito gordofóbico, além de machista. Então, eu acredito que o fato de eu ser militante do movimento negro já engloba o LGBTQIA+. Eu não me engajo tanto quanto eu queria porque acho que para mim, na minha vivência como bissexual, estando às vezes em um relacionamento heterossexual, não sou tão afetada quanto se fosse lésbica. As coisas que mais sofro no dia a dia são a gordofobia, o machismo e o racismo, que, muitas vezes vêm acompanhados da LGBTfobia”, conclui. A bissexualidade existe, embora muitas vezes desacreditada.

Leia-me como sou

Gabriel Martin, cineasta de 25 anos, está atualmente em um relacionamento homoafetivo. Ele é bissexual, mas constantemente lido como gay, e prefere não tentar convencer quem o apaga dessa forma. “Eu nunca tive sucesso com garotas, porque nunca fui o arquétipo de macho alfa!”, brinca. “Então, eu acho que me senti mais à vontade me relacionando com homens por isso, porque eu sentia que não se esperava que eu fosse hétero ou que eu tivesse esse comportamento da masculinidade. E ao mesmo tempo, isso me dificultou a questão da bissexualidade, porque eu sou tratado por gay, por todo mundo. E quando eu falo de uma bissexualidade, às vezes, as pessoas não acreditam, e elas acham que sou o gay tentando se passar e tentando proteger uma masculinidade com a história do bissexual, o que não se assume, o que não se entende, o famoso arquétipo do bissexual confuso. E isso me incomoda. Então eu deixo que me chamem de gay, que me tratem por gay, para mim parece mais tranquilo”, revela ele.

O cineasta acredita que teve uma descoberta tardia da sexualidade. Porém, isso não o faz duvidar da bisseuxalidade. “Eu era apenas um garoto emo, gostava de meninas e me relacionava com elas, mas era namoro de pré-adolescente, não tinha nada de sexual. Nessa época já tive um assédio masculino, também não demonstrei muito interesse, e ficou por isso mesmo. Só fui descobrir na faculdade, quando me apaixonei por um garoto, e percebi que gostava também. Só que, para mim, isso nunca anulou gostar de garotas”, expressa. Gabriel acredita que não estar encaixado na heteronormatividade é algo que talvez atrapalhe na relação com as mulheres: “Eu não me vejo com uma garota hétero que espera um cara masculino, mas também acho pouco provável que esse tipo de garota vá se interessar por mim. Geralmente as garotas com quem tive experiência foram bissexuais, olha que interessante!”, frisa Gabriel.

Quanto à discriminação, ele acredita sofrer mais por ser lido como um homem gay. Mas, considera que a invisibilização também é um tipo de discriminação. “Acho que posso considerar uma discriminação essa coisa de só poder ser lido como bissexual se tiver essa divisão quase que binária, do meio a meio. E eu não acredito nisso, acho que bissexualidade é mais uma coisa de trânsito, uma pessoa pode passar uma vida inteira casada com um gênero e de repente se apaixonar por outro, viver um lindo romance e isso não quer dizer que ela foi hétero a vida inteira, mas sim que ela é bissexual, esteve em um relacionamento com um e agora está se relacionando com outro. Não que ela vai estar o tempo todo se relacionando com os dois. Acho que a gente pensa ainda de uma forma muito binária sobre a sexualidade de modo geral”, complementa Gabriel.

Gabriel Martin

Estar em um relacionamento homoafetivo causa medo de se manifestar livremente. Ainda mais quando é o primeiro. “Eu já tinha uma ideia de que seria assim pelos depoimentos, pelos relatos das pessoas. De situações de pessoas, de não poder demonstrar afeto em público. É triste, né? Ser um sujeito afetivo é o que incomoda as pessoas. Eu espero que melhore, já há lugares que são mais tolerantes quanto a isso porque já existem medidas legais, interferência do Estado na educação das pessoas. Eu acho que aqui o grupo LGBTQIA+ está sempre lutando, e quanto mais a gente luta, parece que mais a gente é mal visto. E é difícil também você ter êxito quando você não tem nenhuma ajuda do sistema de educação, de políticas públicas, visibilidade em filmes, em séries. Mas eu acho que a gente já deu até alguns passos”, finaliza Gabriel. Amor é luta, início, fim e meio.

A próxima reportagem da série “Além do arco-íris” trata da letra T: as pessoas trans e as travestis

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