Feminicídio: a ponta do iceberg

Estudos de gênero, violência e o crime de ódio que começa a ganhar visibilidade.

reportagem escrita por: Gabriela Brack e Kimberly Souza

Essa reportagem foi escrita para a segunda edição da ComTempo, lançada em novembro de 2018 e está disponível para download, gratuitamente, assim como todas as outras edições. Clique aqui.

Uma mulher é vítima de estupro a cada 9 minutos. Três mulheres são vítimas de feminicídio por dia. Uma pessoa trans ou gênero-diversas é assassinada a cada dois dias. Uma mulher registra agressão sob a Lei Maria da Penha a cada 2 minutos. Os dados trazidos pela ComTempo foram retirados de dossiês da Agência Patrícia Galvão, que produz e divulga notícias, dados e conteúdos multimídia sobre os direitos das mulheres brasileiras.

Partindo de alguns dados que já traçam panorama da intrínseca cultura machista e misógina de nossa sociedade, trazemos dados, estudos, análises e até casos do que pode ser chamada a “ponta do iceberg”, o feminicídio, crime de ódio por motivação de gênero cuja lei (nº 13.104), que o configura como hediondo, foi sancionada em 2015 pela então presidente Dilma Rousseff (PT).

Até mesmo respeitando a ordem cronológica do desenvolvimento do tema, partimos de entrevista feita em setembro de 2018 com a psicóloga Eliane Maio, que ministrou a palestra ‘Gênero e Sexualidade’ em Bebedouro (SP). Formada há 34 anos, na primeira turma da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Maio também fez cinco especializações, todas ligadas a sexualidade, família ou escola. É da máxima de Sócrates, “só sei que sei muito pouco”, em suas palavras.

Eliane Maio falou com com a reportagem da ComTempo, minutos antes de entrar no palco do Teatro Municipal e palestrar sobre o tema. (Foto: Arquivo Pessoal).

ComTempo – Fale um pouco sobre sua palestra.

Eliane Maio – Trazer esta temática em tempos atuais, em que a gente anda apanhando muito, tem que ter vontade de trazer um diálogo sobre o que é gênero e o que é sexualidade. Eu trabalho há anos com esse tema para dizer que as pessoas não nascem masculinas ou femininas. A gente aprende a ser. A gente nasce macho ou fêmea porque alguém decidiu isso ao longo da história, mas esquecemos que as características culturais que nos atribuem das quais fazem com que a masculinidade prevaleça e a feminilidade seja sempre submissa. Por que as mulheres sofrem tanto? Por que uma advogada, de classe média, branca, foi jogada do prédio pelo marido? Por causa do machismo. Trabalho estas temáticas para que busquemos a igualdade, para que a gente compreenda as amarras do processo cultural, destruindo essas amarras e construindo as escolhas próprias, o que é mais difícil.

CT – Como é possível abordar gênero e sexualidade nas escolas?

Eliane Maio – Em matéria de sexo, tem muita gente que engole hipocrisia e arrota moral e bons costumes. Na escola, na época de festa junina formavam-se os casaizinhos héteros e, quando faltava, as meninas é que se vestiam de menino e não o contrário. No ensino médio, nas festas, as meninas levavam salgado ou doce e os meninos, a bebida. Isso tem explicação científica? Então, a escola é um lugar heterosexista e o que precisamos fazer é desconstruir isso estudando muito. Como vamos tratar de violência sexual? Contando a história da Branca de Neve:

Ela é expulsa de casa e vai morar com sete anões. Ninguém nunca imaginou que ela vive com sete pintos? Para ela viver naquela casa ela tinha que lavar, passar e cozinhar. Bela, recatada e do lar. Aí aparece uma bruxa – nós, mulheres feministas – com o símbolo do pecado, que é a maçã. Ela morde e desmaia. No final da história, é a pior das violências. Como que se chama o homem? Príncipe. Um homem sem nome, que a Branca de Neve nunca viu, e dá um beijo enquanto ela está desmaiada. Isso não pode. Então, podemos contar para as crianças essa história e abordar vários diálogos, como ensinar a criança a não deixar ninguém encostar em seu corpo sem permissão. 

Isso é desconstruir. E com igualdade de gênero. Não precisamos e nem devemos ensinar sexo nas escolas, mas devemos trabalhar a igualdade. Qual o apelo científico para fazer fila de menina e de menino? Por que fazer dia dos pais ou das mães? A criança vai ter que entregar um presente pro pai que a estupra? Ou fazer um cartão para o pai que nunca viu? Há mais de 5 milhões de crianças sem pai no país. Temos que trabalhar aquilo que vai refletir no cotidiano da criança. A igualdade.

CT – Pelos locais que passou, já escutou relatos de violência sexual contra a mulher?

Eliane Maio – Com certeza nesta palestra de hoje, haverão mulheres que sofreram ou sofrem com violência. Não existe um lugar ainda que eu fui, que não me contam um caso de violência. Mais de 80% das violências contra mulher são por membros da família, 96% dos que violentam são héteros, e ficam falando que eu quero transformar o mundo em gay. Agora eu quero.

CT – Sobre feminicídio: estão acontecendo mais casos ou mais casos estão vindo à tona?

Eliane Maio: Minha mãe comentou outro dia: “quantos casos!”. E eu disse: não, mãe. Existem desde a sua época. A prima tal, a tia tal foram mortas pelo marido. Mas tudo era feito às escondidas. Sobre a advogada, muita gente criticou porque ela não fugiu, não colocou fim à relação. E eu digo que isso é inexplicável. É um envolvimento tão doentio, que é difícil sair. Teria que empoderar essa mulher para ela conseguir sair. O feminicídio se dá pela cultura machista e sexista. Até a língua portuguesa é sexista. É tudo no masculino. Em minhas palestras, eu digo “Boa noite a todas!” e os poucos homens que estão presentes, reclamam.

Violência e morte de mulheres em números

Em 2017 foram registrados 221.238 casos de violência doméstica.

O 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em agosto deste ano, dentre outros dados relacionados à violência, apresenta o de crimes cometidos contra mulheres, incluindo por motivação de gênero, sendo esta a primeira vez que o estudo inclui registros de violência doméstica.

De acordo com o Anuário, em 2017 foram registrados 221.238 casos de violência doméstica, as lesões corporais dolosas enquadras na Lei Maria da Penha. O número, segundo o próprio levantamento, equivale 606 casos por dia.

Os crimes de estupro, com base no estudo, tiveram alta de 8,4% em relação a 2016. Somente no ano passado, 60.018 casos foram registrados em todo o país.

Na “ponta do iceberg” dos crimes contra mulheres, as mortes somaram 4.539 casos registrados em 2017, representando crescimento de 6,1% se comparado ao ano retrasado. Deste número, 1.133 casos de morte de mulheres foram registrados como feminicídio. As demais, segundo os registros, são contabilizadas como homicídio.

Vale ressaltar que mesmo se tratando de números nacionais, eles podem ser maiores, já que Distrito Federal e os estados do Espírito Santo, Tocantins, Mato Grosso e Roraima não informaram dados ao anuário.

Outros dados ainda podem ser analisados, divulgados neste ano também através da Agência Patrícia Galvão. Segundo o Atlas da Violência 2018, feito pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro d Segurança Pública, a taxa de mortes violentas de mulheres é de 13 por dia, em 2016, num cenário em que 4.645 mulheres foram assassinadas no país. O número presenta taxa de 4,5 mil homicídios para cada 100 mil brasileiras, aumento de 6,4% no período de 10 anos.

De acordo com o Atlas da Violência do IPEA (Instituto de Pesquisa Aplicada) entre 2006 e 2016 a taxa de homicídio contra mulheres negras aumentou 15,4% enquanto de mulheres não-negras houve queda de 8%. No período de 2016 a 2017 houve aumento de 30% nos assassinatos contra pessoas lgbtq+. Das 445 mortes, 191 eram trans, 43 eram lésbicas e cinco eram bissexuais.

Os estudos ainda não fazem distinção quanto raça e orientação sexual das vítimas, mas, levando em consideração que a maioria das vítimas de homicídios no Brasil são não-brancos e lgbtq+, não fica difícil concluir que mulheres negras, pardas e indígenas; e mulheres trans, são as que mais morrem por feminicídio.

A Lei do Feminicídio

Cárcere privado, cinco dias de negociação, grande repercussão nacional e internacional e exploração midiática. Assim pode ser definido um dos casos mais emblemáticos      de repercussão nacional e internacional: o ‘Caso Eloá’, da então adolescente de 15 anos Eloá Pimentel, assassinada pelo ex-namorado Lindemberg Alves.

O caso, por motivação de gênero e que poderia ser configurado como feminicídio, completou uma década em outubro deste ano, mas anos antes, já era definido como base para o projeto que resultou no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) ‘O Feminicídio no Brasil e as Consequências da Cultura Machista’, da estudante do 5º ano de Direito no Imesb, em Bebedouro, Graziela Rodrigues, 24.

“Antes mesmo entrar na faculdade, o tema violência contra a mulher mexia muito comigo. E o caso de Eloá, especificamente, sempre pensei em trazer como tema para minha conclusão do curso, como uma forma de homenageá-la e homenagear tantas outras meninas e mulheres que foram vítimas de crimes como esse”, diz Graziela, que também tinha 15 anos quando Eloá foi assassinada, lembrando-se da repercussão do caso. “A mídia ganhou muito sobre o caso de Eloá. Todos sabiam no que poderia resultar, mas ninguém se importava, pois era a vida de uma menina que, depois de morta, virou santa. Mas Eloá não queria ser santa, ela queria viver”, enfatiza a estudante.

“A Lei do Feminicídio é necessária, principalmente pela sociedade machista que vivemos, que nos mata por sermos mulheres a cada dia mais, e agora tem sido mais pautado na mídia, o que não ocorria até ano passado”, fazendo referência a casos como o da advogada Tatiana Spitzner, assassinada e jogada da sacada de seu prédio, pelo esposo Luís Felipe Mainvailer. O crime aconteceu em julho deste ano, em Guarapuava (PR), e levantou muitas discussões sobre feminicídio no Brasil.

A estudante analisa que mesmo com a Lei sancionada, juízes de muitas comarcas insistiam em não considerar assassinatos de mulheres por motivação de gênero como feminicídio. “A mídia começou a dar muita visibilidade a casos de feminicídio, principalmente após a morte da advogada”, explica Rodrigues.

“Até alguns anos, mortes de mulheres eram tidas como ‘crime de paixão’ ou ‘crime passional’, e muitos homens foram absolvidos desta forma. Um caso muito famoso é de Doca Street (Raul Fernando do Amaral Street), que assassinou a socialite Ângela Maria Fernandes Diniz. Eles tinham um casamento aberto, mas ele tinham muito ciúme, a matou e ainda colocou toda a culpa nela e está livre e solto até hoje.

A estudante ainda analisa a relação direta entre casos de feminicídio e históricos de relacionamentos abusivos, ou seja, quando o companheiro da vítima já dava sinais, até mesmo “sutis”, de violência: “Muitas vezes a mulher não consegue sair daquele relacionamento, por conta dos filhos, por dependência emocional, financeira… E o feminicídio é realmente a ponta do iceberg, porque uma pessoa que começa gritando com uma mulher também pode ser capaz de esfaqueá-la”.

Leia a matéria na versão em PDF da segunda edição da Revista ComTempo clicando aqui.

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