“Não deixei de ser Karajá por ser médico”

Por: Beatriz Oeiras

O preconceito dentro das universidades ainda existe. O caminho árduo dos indígenas em busca do seu espaço não é limitante somente aos séculos passados. Mesmo com tantos olhares voltados para essa causa, a fim de mudar a realidade, os indígenas ainda enfrentam muitas barreiras.

No que se refere à identidade étnica de alguns universitários, percebe-se que, existe uma exclusão econômica e preconceituosa que se expressa continuamente não apenas pelas atitudes e práticas do dia a dia, mas, principalmente, por meio da estrutura social.

Apesar do avanço, por meio das políticas de ação afirmativa, para o ingresso dos acadêmicos indígenas, traçando um panorama de importância na modificação da visão etnocêntrica e excludente, os números de indígenas que concluem um curso superior ainda são poucos.

Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2016 comparado a 2015, cerca de 32,18% de alunos indígenas conseguiram concluir o ensino superior. Essa estimativa, mostra que o estudante ainda sofre as consequências do preconceito em seu processo de formação, o que colabora para uma elevada taxa de evasão nos cursos superiores.

“Boa parte das pessoas têm pré-concepção muito negativa dos indígenas, e desconstruir essa visão não é algo fácil, principalmente porque temos que demonstrar através de nossa vida que somos e queremos ser um ser humano melhor”, afirma Hioló Werreria.

Hioló Silva Werreria, 33, nasceu no Estado do Goiás, é filho de legítimos líderes comunitários Karajás, passou parte da infância na aldeia JK (Juscelino Kubitschek) localizada na Ilha do Bananal, a maior ilha fluvial do mundo. Hoje em dia, Werreria vive na capital do Estado do Tocantins, Palmas, e cursa o 9° período de medicina na Universidade Federal do Tocantins.

Os karajás são pertencentes ao tronco linguístico Macro-Jê, habitantes seculares das margens do rio Araguaia, onde há uma ocupação territorial entre os estados do Tocantins, Goiás, Mato Grosso e Pará. Os Karajás possuem um histórico de convivência com a sociedade nacional, o que não os impede de manter seus costumes tradicionais e ao mesmo tempo reivindicar seus direitos, como o acesso à saúde e educação bilíngue.

Em entrevista, o estudante indígena Hioló Werreria conta um pouco da sua história e suas dificuldades no meio acadêmico.

A entrevista foi elaborada para a revista ComTempo. Na ocasião, Werreria levanta a bandeira da igualdade e mostra que em um sonho, ainda em percurso, mesmo com tantas barreiras, pode se tornar real.

Me conta um pouco da sua história.

Nasci em Goiânia, morei lá por dois anos, mas logo depois o meu pai teve que retornar para a cidade próxima da Ilha do Bananal, São Félix, e a minha infância se passa praticamente ali.

Não tem como falar da minha história sem mencionar o meu pai. Meu pai saiu da aldeia na década de 80, nessa década os indígenas eram impedidos de estudar, então ele pediu o auxílio dos missionários da igreja Adventista que ficava próxima a aldeia. Mas foram buscá-lo para trazer até a aldeia novamente, porque na prática ele não tinha esse direito de estudar. A luta começou exatamente com ele.

Hoje você vê que há uma abertura maior para a educação?

As coisas de lá para cá mudaram, hoje a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) é parceira em vários projetos. Já é uma outra mentalidade, totalmente diferente do que foi com o meu pai e um pouco comigo. É só um pouco da história que a gente faz questão de dizer, e que é um pouco recente. Algo que por exemplo, a maioria dos brasileiros não tenham passado, de ter alguém privando você de desenvolver, e isso foi real.

Até hoje a gente percebe os resquícios dessa mentalidade. Do indígena estar na universidade ou em um curso de medicina. Por que é tão surpreendido as pessoas falarem que faço medicina. Talvez seria mais bem aceito se eu desistisse do curso. De certo muita gente ia pensar que esperava que eu não conseguisse mesmo.

A Funai, em questão de escola, não estava totalmente estruturada da década de 90, muito próxima a década de 80. O que acontece é que as escolas indígenas só tinham até a quarta série, então eu tinha poucas perspectivas para mim mesmo.

Meu pai sempre fez questão que a gente pudesse estudar na escola mais próxima. Durante um tempo a gente ia e voltava todos os dias de voadeira, mas por conta da viabilidade econômica e outras questões a gente acabou mudando da aldeia para São Félix.

Em que momento você teve certeza da escolha do seu curso?

            Influência direta dos meus pais. Meu pai sempre valorizou ao longo do meu crescimento a educação. Ele sempre disse, “eu não vou deixar riqueza, não sou rico, a única coisa que eu posso fazer é te incentivar e te apoiar na trajetória acadêmica, isso é algo que você vai construir e ninguém vai tirar de você”.

Desde minha infância pensava em ser médico, não tinha uma referência física, mas meu pai me presenteou com um livro do médico negro neurocirurgião Ben Carson, eu tinha 8 anos de idade. Naquele livro tive o primeiro contato com o universo médico e os desafios intelectuais. O Dr. Carson por ser negro sofreu muito preconceito, mesmo assim superou e se tornou referência internacional. Com certeza foi minha inspiração.

Desde muito pequeno eu tinha esperança de sair, estudar, e fazer uma trajetória como meu pai conseguiu. Então ele sempre me incentivou nessa linha.

É algo histórico, por isso que a gente tem que se valorizar, tem que valorizar nossa história pelo que a gente passou. Temos que ser um legado não para tornar celebridade ou algo parecido, mas para dizer para o meu povo que o que um faz o outro também pode fazer, e a dificuldade que eu passei não necessariamente os outros precisam passar. Vamos lutar para que muita coisa seja totalmente diferente.

Como foi o seu percurso até a universidade?

Com 12 anos eu saí de São Félix e fui para uma escola de internato Adventista chamada IABC (Instituto Adventista Brasil Central) próximo à Anápolis.    

Eu chego a ir para o Paraná também, para o outro Instituto Adventista, mas logo retorno para o IABC e me formo em 2004 no ensino médio.

A primeira tentativa para entrar no curso de medicina e foi em 2005. As cotas instituídas a UFT (Universidade Federal do Tocantins) foi em 2004, mas a universidade não tinha o curso de medicina, e então tive que prestar vestibular para a universidade de Mato Grosso. Passei na primeira fase, mas não passei na fase final da entrevista. Então resolvi voltar para a aldeia, e dar aulas de matemática, começar a repensar a minha trajetória.

Sempre tive o desejo de fazer medicina, mas não sabia o caminho das pedras, como eu ia fazer para alcançar esse objetivo. Depois de uns meses decidi ir para outro colégio adventista para fazer um curso de administração em São Paulo, na capital, e tentar achar uma forma de alcançar meu objetivo para fazer medicina. 

Em 2005 vou para a UNASP (Universidade Adventista de são Paulo) começar a fazer administração, fiz um ano e meio do curso.

Cheguei a fazer umas pesquisas e descobri um cursinho muito bom em São Paulo que ficava próximo da instituição. Entrei em contato com eles, falei que era indígena, que tinha interesse e aí eles abriram as portas.

Por um tempo, eu conciliei a faculdade com cursinho, mas vi que era inviável me preparar para o vestibular e fazer a faculdade. Então tranquei o curso de administração e me dediquei ao cursinho.

Em 2007, eu chego a prestar para uma universidade do Rio de Janeiro e então passo. Quando abriu medicina no Tocantins tentei fazer a transferência, mas como era só uma vaga, não consegui. Não me adaptei no Rio de Janeiro, por vários fatores, questões emocionais e ficar longe de todos. Decidi trancar, e retornar para a ilha do Bananal, para a minha aldeia que se chama JK, Juscelino Kubitschek.

Voltei para buscar mais força, me estabilizar emocionante, absorver um pouco da Ilha do Bananal, do meu povo, então tomei a decisão de casar, mas com alguém da minha identidade, tradicionalmente. O meu sonho era voltar para a aldeia, e então não queria passar por nenhuma dificuldade emocional por casar com alguém de fora da minha identidade.

O nosso casamento foi arranjado, negociado entre famílias. Mesmo sem namorar eu mesmo submeto a forma tradicional. Logo no mês de janeiro eu me caso e passo na universidade por meio das cotas, e então foi difícil iniciar a vida de casado e cursar medicina em uma cidade nova, em Palmas.

Como foi a receptividade por parte dos professores e dos colegas de classe no início do curso?

No primeiro período da faculdade um professor me abordou e disse assim, “aqui não é o seu lugar, você tem que voltar para sua aldeia, medicina não é para indígena”. Já fiquei na defensiva, e percebi que ali teria problemas, porque tem uma tendência de preconceito, um jeito de pensar que os cotistas não são bem vindos e isso foi um alerta para mim, não para eu desistir, mas para eu superar.

Ao longo da minha trajetória teve um professor que me prejudicou bastante. Tive muita dificuldade, com ele eu reprovei mais de quatro vezes e aí comecei a desconfiar que já não era uma questão acadêmica, porque eu estava me dedicando, me esforçando ao máximo. Deixei de pegar grade fechada, peguei só a disciplina que esse professor dava e mesmo assim não estava tendo êxito. Comecei a pensar que não era uma questão acadêmica. Corri atrás, tentei me aproximar para ver se eu conseguia entender o porquê.

Meus demais professores foram conversar com ele e ele foi bem franco, não teve nenhum receio de expor a ideia que tinha sobre os indígenas. Foi quando eu procurei a ouvidoria da universidade para relatar o caso, mas não foi de imediato, a resposta demorou. Nesse processo continuei a disciplina pela quarta vez com o mesmo professor, até passar com muito suor. Ao passar para o 5° período, reprovei três vezes na matéria que o professor dava, e é aí que eu tenho mais o menos uma devolutiva da ouvidoria.

A resposta da ouvidoria foi com uma banca, para poder fazer uma avaliação. São poucos os estudantes que conseguem emplacar a banca.

Mesmo passando pela banca, percebi que ela foi tendenciosa, ela documentou um assunto específico do que deveria ser estudado, e a prova em si foi sobre outro assunto, tenho documentado. Independente disso eu passei, consegui.

Quando fui para o 6° período, as coisas começaram acelerar cada vez mais. É tão evidente a questão da perseguição que se instituiu uma comissão investigativa, o PADI (Programa de Apoio ao Discente Ingressante), que verificou que o professor foi realmente tendencioso/preconceituoso, porque ele não só verbalizou isso, como ao ser intimado ele escreveu. Escreveu que, historicamente, os indígenas não foram aptos para trabalhar, por isso não foram escravizados. Portanto o fracasso acadêmico é uma questão biológica/genética.

Então diante desse documento a universidade já não tem mais instrumentos para a permanência desse professor, então houve uma pressão de todos os lados para ele ser afastado.

Alguma vez você já pensou em desistir durante esse trajeto?

Já pensei em desistir sim, pensei se realmente estava valendo a pena. Em nenhum momento da minha trajetória eu fui tão fracassado, talvez se eu tivesse fazendo outra faculdade já teria terminado. Imagina, em uma disciplina passei dois anos e meio, ao total só com esse professor eu devo ter passado quatro anos para concluir os três módulos.

Em alguns momentos eu via várias barreiras, só barreiras, pessoas que não gostavam da minha presença, que não valorizavam quem eu sou, não tinham nenhuma sensibilidade com o que eu represento. Quando vemos que a grande maioria das pessoas não estão sensíveis a isso você precisa olhar além disso, você  tem que olhar para o transcende, e saber que existe algo maior. Talvez você é a oportunidade que a pessoa vai ter de demonstrar que você é alguém de importância, e que pode fazer a diferença na vida dela. Sonhar alto é possível e alcançar os sonhos impossíveis é mais possível ainda.

Como você vê a dificuldade de ingressar na universidade hoje em dia, é ainda mais difícil para os indígenas, e em qual sentido as cotas podem auxiliar nesse processo?

Aqui no Tocantins as cotas surgem no coração dos líderes. O Tocantins sempre teve grandes líderes indígenas, que viam a ausência dos povos indígenas nas universidades e então o movimento indígena do Tocantins se organizou. Eles foram até a antiga Unitins e pediram para que abrissem as cotas. A universidade do Tocantins se sensibilizou e abriu as portas. Foi uma reivindicação popular indígena, a qual a instituição abriu esse precedente, mesmo antes o STF (Supremo Tribunal Federal) se posicionar como uma política constitucional e legítima, porque as cotas durante muito tempo foi considerada um política ilegítima, questionável, e a UFT é uma das pioneiras em relação a isso, pois ela abre esse espaço em resposta ao movimento indígena, correndo todos os riscos de não ter um amparo legal da legislação. A partir daí temos os primeiros indígenas ingressantes na UFT.

Hoje a UFT, por exemplo, tem cotas para quilombolas que acaba sendo mais abrangente, ou seja, a política foi eficiente. Em 2004, quando ela inicia somente para indígenas, ela é um precedente, é um começo para uma atenção especial sobre outras questões sociais legítimas.

 É uma forma de ingresso que tem tido consistência, tem amadurecido, porque é só um ingresso, ninguém passa a mão na cabeça de ninguém por ser cotista, pelo contrário, no meu caso como eu entrei em 2010, a tendência era dificultar a vida dos cotistas, por terem entrado por um meio questionável. Apesar de hoje as universidades possuírem ações afirmativas. Isso em 2010 ainda não era uma realidade.

Quais os seus planos quando terminar a faculdade?

Eu não vejo o término da minha graduação como o término do meu projeto de vida. Eu quero ser neurologista, eu ainda tenho essa meta. Sair da graduação, e fazer uma residência. Quando eu voltar quero ser uma referência técnica da medicina no meu povo. Ser o mais novo neurocirurgião Karajá. Eu acredito que onde eu estiver eu sou um Karajá e vou estar representando meu povo.

Todos nós temos uma história para contar e na sua vida qual frase ou palavra define bem a sua?

“Não deixei de ser Karajá por ser médico. Eu sou um médico Karajá”.

Um comentário sobre ““Não deixei de ser Karajá por ser médico””

  1. Sua história comove a gente, ficamos estarrecidos ao ver que, pleno século XXI, existe tanto preconceito contra os indígenas. Parabéns, Dr. Hioló, tenho certeza de que você vai fazer a diferença para seu povo Iny.

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