O trem, o tempo e a dona Célia

“Ah, e deu tudo certo no final das contas”.

Entrevista realizada por Kimberly Souza

Década de 50. Bebedouro, interior de São Paulo, experimentava o auge do desenvolvimento econômico e social por conta das linhas férreas que passavam pelas redondezas. A cidade era – e continua sendo – um polo logístico por sua boa localização, de fácil acesso.

Numa das saletas da estação ferroviária, chão de madeira, paredes num tom de verde alegre e um pouco desbotado, janelões de vidro que davam diretamente para onde os trens de carga e passageiros pairavam a todo o momento durante o dia. Vista privilegiada.

Ali, naquela sala, trabalhavam os olhos e ouvidos de todo o sistema ferroviário de Bebedouro: os telegrafistas. Uma delas é a Célia, uma menina-moça de 15, 16 anos que prestou um processo seletivo, fez 9 meses do curso mais difícil da época para aprender a mexer no telégrafo e no Código Morse, novidades na época e entendido por poucos.

Durante anos, a jovem evoluiu junto às linhas do trem, construiu sua carreira, conheceu lugares e, especialmente, conhecer o amor da sua vida, o Aparecido.

Esse conto, que mistura um pouco de história e um pouco de minúcias daquela época, relatam o início da vida de Célia de Azevedo, hoje com 84 anos muito bem vividos e lembrados.

Quando e onde a senhora nasceu?

Nasci em Bebedouro, em 1935. Nossa, 84 anos… ave maria! Mas está bom, valeu a pena.

Quem são seus pais e irmãos? Como é sua família?

Sou filha única. Meu pai trabalhava na Ferrovia, minha mãe também, mas ela morreu bem cedo. Meu pai era examinador de veículos. Depois eu também entrei na ferrovia como telegrafista. Depois fechou tudo aqui em Bebedouro e eu fui para São Carlos, depois para Araraquara. Cidades bem grandes já naquela época. No começo eu assustei, mas aí deu tudo certo. Aí eu aposentei em Araraquara e voltei para cá.

Mas como sua história começou na ferrovia?

Nossa, comecei cedo, cedo. Eu tinha 15 anos. Eles iam contratar uma equipe para ficar no telégrafo e no código Morse. Tinha que ter de 14 a 16 anos e eu me inscrevi. Fiz um exame, passei, fiz um curso de 9 meses, era difícil o negócio, viu? Mas nós aprendemos e fiquei por lá por 30 anos.

Como era sua rotina naquela época?

O telégrafo é uma invenção maravilhosa. A gente conversava muito com outras estações, com os chefes. Mas era mais aqui na região. E tinha também o código Morse, que era mais difícil e a gente usava mais com quem trabalhava em Campinas. Depois de um tempo, a ferrovia de Bebedouro fechou e fui transferida para São Carlos, para trabalhar no escritório da ferrovia. Meu marido era meu chefe lá. Ai fomos transferidos em Araraquara. Me aposentei lá e voltei para Bebedouro.

Como você e seu marido se envolveram?

Ele morava aqui, e eu também. Eu trabalhava na ferrovia, e ele também. Ele chamava Aparecido Alves de Azevedo. Aí as coisas foram acontecendo, nos casamos, fomos transferidos juntos. Foi assim.

Vocês tiveram filhos?

Depois de 10 anos de casados, eu tive uma menina, mas ela nasceu com uma membrana no pulmão. Ela não respirava, sabe? Ai ela morreu. E depois não engravidei mais. E estou aqui. Fazer o que, né?

E quando você e seu marido voltaram para Bebedouro?

Quando aposentamos, ele não queria voltar, porque ele se adaptou muito bem em Araraquara, sabe? Mas eu tinha minha mãe aqui, então eu disse que não ia deixar minha mãe sozinha e voltei. Eu aposentei uns 6 meses antes dele. Ai eu recebi o Fundo de Garantia, voltei, comprei esse terreno e fui fazendo a casa. E ai quando ele veio para cá, a casa já estava quase pronta, os olhos deles brilharam e ele disse: por isso você está gastando todo esse dinheiro. Ele não queria voltar, mas ai ele voltou e ficamos aqui.

O que tinha de diferente e de igual na época da ferrovia e hoje em dia?

Para mim é a mesma coisa. Naquela época eu trabalhava e hoje sou aposentada. É a mesma coisa. Era diferente porque a gente era adulto muito cedo, com 14, 15 anos, a vida já cobrava. Mas o que sinto falta é da ferrovia. Acabou, né? Judiação. Dizem que vai voltar mas eu acho que não. Hoje em dia tem esses transportes todos. Naquela época tinha uns trens lindos, com restaurante, era maravilhoso. Naquela época eu só queria saber de andar de trem. Mas hoje a gente dá outros jeitos. Eu não paro.

E hoje em dia, como é a rotina da senhora?

A vida é uma coisa, né? Minha mãe morreu, meu pai morrei, meu marido… Sobrou só eu. Meu marido morreu faz 14 anos. A vida é essa e a gente tem que ir se adaptando. Hoje eu moro sozinha, alguns dias da semana eu faço ginástica no clube, outros eu faço hidroginástica em uma academia. De domingo vou à feira e sempre que posso, viajo para passear. Para mim com essa idade, meu bem, preciso fazer alguma coisa, porque ficar só parada não dá.

E qual o sonho da senhora atualmente?

Não tenho não. Com essa idade o que mais eu vou fazer?

Mas a senhora já realizou muitos sonhos?

É… Naquela época a gente só trabalhava. Não dava tempo de sonhar não. Mas meu marido me ajudava bem, viu. A gente foi bem parceiro nessa vida. Sonhamos e realizamos juntos.

E para a senhora, o que é o tempo?

Eu com essa idade, minha filha… Tempo é saber aproveitar.

E a vida, o que é?

A vida é muito boa. É conhecer, trabalhar e aproveitar. E dá tudo certo no final das contas.

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