Violência obstétrica: Dor ignorada, dano irreparável

Kimberly Souza

 “A gestação foi tranquila, não tive nenhuma intercorrência, ele cresceu normalmente e não tive nem enjoo. Mas o parto foi considerado fórceps. O médico obstetra plantonista do Hospital Maternidade de Campinas usou o fórceps”.

Assim começa a entrevista com Giselle Pedretti, 37 anos, bailarina profissional e mãe do de dois filho: um menino e uma menina. Ela, assim como milhares de mães no Brasil, foi vítima da violência obstétrica, mais um tipo de violência contra a mulher: silenciosa, desmentida por muitos e desqualificada, em maio de 2019, pelo Ministério da Saúde, que julgou o termo “inadequado”, extinguindo-o do vocabulário hospitalar.

Mais  do que fingir que essa violência não existe, este ato coloca em mais risco ainda, as mulheres prestes a se tornarem mães, causando danos morais, psicológicos e físicos irreparáveis.

A Giselle relatou, em detalhes, todos os níveis de violência que sofreu em menos de meia hora no Hospital Maternidade de Campinas e, em respeito a ela e como forma de alerta a todos que lerão esta reportagem, a Comtempo registra a seguir o relato na íntegra, em primeira pessoa.

Como foi

“Durante a gestação, eu e meu marido decidimos sair de Bebedouro e morar em Campinas. Essa mudança acabou me deixando perdida e, como não tinha mais o acompanhamento da obstetra de Bebedouro, uma amiga obstetra de Campinas decidiu me acolher e acompanhar a gestação. Ela cuidou de mim até o último dia antes do meu filho nascer, já que eu iria fazer o parto pelo SUS. Sabendo disso, já estava acostumada com o fato de que o parto seria o normal, já que é o procedimento adotado pela saúde pública. Quando estava com 38 semanas e 5 dias, as contrações ficaram mais ritmadas e intensas. A minha amiga fez os exames e constatou que estava com 3 centímetros de dilatação. Me aconselhou a não ir no SUS, porque eles só me atenderiam se tivesse com pelo menos 5 centímetros. Na manhã do dia 17 de março de 2015, as contrações ficaram ainda mais intensas e fui para a maternidade. Passei pela triagem, estava com quase 7 centímetros de dilatação e já me encaminharam para a sala pré-parto.

A primeira coisa que fizeram foi me colocar um soro sem falar o que era. Na hora perguntei se ia melhorar a dor e, com uma voz sarcástica, a enfermeira disse que sim. Minha mãe estava do meu lado e viu a expressão da enfermeira, de “mal sabe o que te espera”. Na verdade, aquele soro tinha ocitocina, que intensifica as contrações para acelerar o parto. Primeira violência. A segunda foi: romperam a bolsa mecanicamente, porque, até então, ela não tinha se rompido. Fizeram isso também para acelerar o parto. Depois, pediram para eu caminhar até eu não aguentar ficar em pé.

Me deitei, as dores foram se intensificando e a ocitocina fazia eu ter contrações o tempo inteiro, não conseguia respirar. Não paravam de fazer exame de toque em mim, e eu fui perdendo a noção de tanta dor que eu sentia, parecia que eu estava fora do meu corpo. Estava com quase 10 centímetros de dilatação, senti meu assoalho pélvico querendo empurrar mas, como estava com muito medo, não empurrei. E as enfermeiras reforçavam: segura o bebê! Fui encaminhada para sala de parto e me deram uma anestesia e foi horrível porque parei de sentir qualquer coisa.

Chegou o médico que eu conheci só ali na hora. Me deitaram em uma maca, como se eu tivesse fazendo uma cirurgia. A sala fria. As luzes acesas, tudo prateado. Muita gente ali, barulho de máquina, soro na veia. Não senti mais nada. Veio outro enfermeiro e me fez aquela manobra (Kristeller) de empurrar a barriga, que é proibida, é violência obstétrica. Eles não poderiam ter empurrado minha barriga. É perigoso: se eu tivesse uma contração no momento em que o enfermeiro empurrasse, poderia romper meu útero, óbito na certa. Para o parto mesmo fiz umas 3 ou 4 forças, o médico simplesmente pegou a tesoura, me cortou sem me informar, pegou o fórceps, enfiou e puxou meu filho para fora. Na hora fiquei em choque, sem saber o que fazer, mas como estava cansada, era meu primeiro filho e eu estava envolvida em uma situação, eu nem tive o que fazer. Ele já puxou meu filho e já colocou no meu colo: “segura o seu bebê”, ele falou.

Ele ficou com uma marca no rosto por conta do fórceps, e a enfermeira falou que era normal e logo ia sumir. Depois de limparem e pesarem ele, colocaram perto de mim e eu fiquei esperando a placenta nascer, que é só aí que o parto acaba. Depois, levaram ele para outra sala para dar vacinas, colocar fralda. Minha mãe que acompanhou porque meu marido estava viajando. Enquanto isso, suturaram a episiotomia que fizeram em mim. Eu saí da sala de parto e já deixaram meu filho comigo. A gente fica naquela expectativa antes do parto, de que vai chorar, se emocionar. Mas eu não tive emoção nenhuma. Não sei se foi o choque, de não saber o que fazer.

Eu não me senti protagonista do meu parto. Eu era uma figurante. E isso eu senti muito depois, quando parei para pensar. Um tempo depois, o SUS me ligou para fazer o acompanhamento, me perguntar como eu e meu filho estávamos e eu falei que me senti invadida, que fizeram episiotomia sem necessidade, que usaram o fórceps sem precisar. Eu fiquei meia hora na sala de parto.

Meia hora para uma criança nascer é muito pouco. É uma fábrica de nascimento. É quase uma cesárea que o médico arruma um horário no dia dele para ganhar uma fortuna em meia hora de trabalho”.

Apenas uma barriga carregando um bebê

A violência obstétrica, assim como outras agressões e crimes de ódio que atingem exclusivamente a mulher, existem pelos séculos guiados pelo machismo e pelo patriarcado que resumiam – e continuam a resumir – a mulher como um objeto sem direitos ou vontades, que existe unicamente para servir ao homem e procriar. Apenas uma barriga carregando um bebê, como define a obstetriz Stella Souza, 26 anos.

Ela, assim como suas colegas de profissão, Rebeca Reis, 29; Juliana Romano, 28; e Rafaela de Aguilar, 26; decidiram abraçar a missão da obstetrícia, de garantir um nascimento saudável, seguro e respeitoso para os bebês, e o empoderamento, o protagonismo e a informação às mulheres-mães. Elas trabalham em uma rede particular de saúde e prestam assistência integral à saúde da mulher, desde a educação sexual e ginecológica, até os momentos de pré-natal, parto, puerpério, amamentação e cuidados ao recém-nascido.

Em entrevista à Comtempo, as quatro obstetrizes formadas pela Universidade de São Paulo (USP), explicaram o que é a violência obstétrica, citando casos emblemáticos de suas carreiras.

“A violência obstétrica (VO) é a desumanização da mulher no momento em que ela encontra-se mais frágil e entregue aos cuidados da equipe de saúde. Acredito que a maior causa desse tipo de violência são os profissionais assistencialistas não renovarem seus conhecimentos para atender de modo mais humano suas pacientes”, afirma Stella, e Rebeca completa: “Os grupos mais suscetíveis são mulheres de baixo nível socioeconômico, minoria étnica, o conceito de que mulher é mantida sob autoridade patriarcal, além de mulheres sem acesso a informações sobre seus direitos”.

Rafaela afirma que: “As decisões violentas são justificadas, na maioria dos casos, pelo ‘bem da mulher’ mas, na verdade, são para a satisfação própria do médico e da equipe que está envolvida com o parto”, e Juliana complementa: “Esses atos acabam retirando o protagonismo da mulher, o que geram desrespeito ao seu corpo e ao processo natural. Essa violência pode ocorrer durante a gestação, trabalho de parto, parto, pós-parto e o processo de amamentação”.

Mais frequente do que se imagina

Estudo da Fundação Perseu Abramo, em parceria com o Serviço Social do Comércio (SESC) afirma que, a cada 4 mães no Brasil, pelo menos 1 teve seu filho em condições de violência – física, sexual, verbal, discriminação por etnia, idade ou classe social, negligência, falta de cuidado, retirada da autonomia ou más condições do sistema de saúde.

As escassas estatísticas, somadas à omissão do Ministério Público quanto ao termo no ambiente hospitalar, pode causar ainda mais danos à saúde e vida das mulheres prestes a se tornaram mães.

“O caso mais marcante foi em uma sala de parto em que o profissional pegou clorexidina alcóolica (substância para assepsia) por engano e quando ele ia realizar essa higienização do local uma técnica de enfermagem sinalizou que ele havia pegado a errada e entregou a correta (clorexidina aquosa) e ele simplesmente ignorou a intervenção e usou a que segurava e a paciente urrou de tanta dor devido a região em que foi usada a substância estava com um pequeno corte. Obviamente esse caso pode não chocar muitos, mas me marcou demais por que o dano poderia ter sido evitado”, afirma Stella.

Rafaela acredita que retirar o termo não vai extinguir a violência da rotina hospitalar: “Porém ao retirar o termo, o Ministério da Saúde passa a mensagem de que a violência obstétrica não existe mais, ou que ela pode ser praticada, uma vez que não existe algo que defina essa conduta. Além disso, as discussões sobre o assunto irão diminuir dentro dos ambientes hospitalares e, consequentemente, as denúncias, então o retrato real do ambiente hospitalar estará disfarçado”.

Ela também relata um caso, sofrido, inclusive, por uma adolescente: “Ela precisava realizar o toque vaginal de admissão mas, como estava nervosa, fechava as pernas. Irritada, a ginecologista obstetra gritou: ‘Se você não quer que eu examine, terei que tira o bebê no ferro para ele não morrer’. A adolescente entrou em desespero e foi levada aos prantos para uma cesárea com falsa indicação e desacompanhada. Essa situação poderia ser diferente se a médica explicasse o que era o toque vaginal e porque iria fazê-lo”.

Já Rebeca conta um caso que envolve racismo e xenofobia: “Acompanhei o parto de uma mulher angolana num hospital público em São Paulo. O médico e seu residente não respeitavam a ordem fisiológica do nascimento e mandavam a mulher fazer força para empurrar o bebê. Ela fazia muito esforço mas o bebê não nascia. O médico começou a xingá-la dizendo para ela fazer “a força que os pretos da África tem”, ela chorava e ficava sem forças pela violência. Eu olhei fazendo sinal de desaprovação e o médico alegou que “ela nem entende português”, e deu risada. A irmã da gestante interferiu e disse que elas estavam entendendo tudo. O médico ficou quieto e a mãe tomou força e fez seu bebê nascer sem precisar de episiotomia ou fórceps. Eu fiquei ao lado dela o tempo todo tentando neutralizar o que o médico dizia, junto à irmã dela. Quando o bebê ficou pele a pele com sua mãe, ela começou a orar, sua irmã se ajoelhou e eu orei também. Os médicos saíram cabisbaixos”

A Juliana vivenciou a violência obstétrica enquanto fazia o estágio da faculdade e a vítima era uma mulher em situação de rua, portadora de HIV e que vivia o momento trágico de um óbito fetal intrauterino, “Ela estava no trabalho de parto ativo, com dilatação de 7 centímetros, necessitando de uma assistência, pois não estava conseguindo lidar sozinha com as dores da contração. Devido a seu histórico, foi criado um pré-conceito, e foi negligenciado o atendimento de qualidade para a paciente. Ela foi atendida em meio a grosserias pelas enfermeiras do setor. Após conversar com minha professora responsável pelo estágio, conseguimos acompanhar e prestar assistência adequada à gestante”.

Como deveria ser

A informação e o empoderamento são as chaves para combater essa violência, de acordo com as obstetrizes e a Giselle, que dedicou parte da sua segunda gestação para conversar e entender o parto humanizado.

“Quando minha filha estava para nascer eu pesquisei muito, participei de grupos de estudo, e percebi que todo esse processo que passei com meu primeiro filho, foi estranho, errado.  Hoje, conhecendo mães com filhos da idade do meu filho, digo que o que fizeram comigo é praxe, muitas sofreram o que sofri. Quando falam de parto humanizado, não é aquela ideia hippie que todo mundo tem. Parto humanizado é parto com respeito, coisa que eu não tive. Meu conselho é que as mães se informem, participar de grupo de parto, gestante, casais, se informar pela internet.”

As obstetrizes também cobram mudanças no que circunda o parto: a própria Medicina, muitas vezes arcaica, e a garantia de direitos sobre o assunto.

“O empoderamento feminino, o conhecimento científico e legal para ser assistida de modo integral e humano, além de cobrar melhorias da bancada política e seus projetos de lei”, opina Stella.

“Inserir direitos humanos na grade curricular de Medicina, investir na formação de obstetrizes e enfermeiras obstétricas e fomentar projetos que visem a segurança das mães e dos bebês em todo o processo da gestação e parto, como o ReHuNa (Rede pela Humanização Parto e Nascimento), Projeto Parto Adequado e Hospital Amigo da Mulher e da Criança”, pontua Rebeca.

“Acredito que é necessário instruir as mulheres e suas famílias, além de exigir atualização profissional de todos que se envolvem com o parto”, ressalta Juliana.

E Rafaela finaliza: “Discutir o tema desde a universidade, inserir políticas contra a violência obstétrica e incentivar a cobrança por parte da sociedade por melhorias na assistência à saúde da mulher”.

Como deveria ser (e foi)

De um extremo a outro, a Giselle, na gravidez da sua segunda filha, teve a oportunidade de um parto muito mais tranquilo, respeitoso e sem traumas. Assim como no início dessa reportagem, a Comtempo disponibiliza o relato na íntegra, mostrando que, sim, é possível um atendimento humanizado – e não precisa de muito. Só de respeito mesmo.

“Minha filha não foi planejada, mas, a partir do momento que fiquei sabendo dela, comecei a me preocupar com o processo. Pesquisei e, com a ajuda de amigos, me interessei pelo parto humanizado, especialmente o domiciliar. Eu não queria sair de casa e ir para a maternidade, onde eu sabia o que iria acontecer. Pesquisei as possibilidades mas, pela condição financeira, não teríamos condições de arcar com uma estrutura dessas. Nesse meio tempo, descobri a Casa Angela, em São Paulo. É uma casa de parto incrível, coisa de primeiro mundo. Ela tem parceria com o SUS e me perguntei: porque não tentamos lá? Agendamos a visita e, de primeira, ficamos encantados, as pessoas nos recebem com sorriso no rosto, falam muito calmamente, acolhem super bem. Aí começamos os trâmites, precisei passar pelo SUS de São Paulo e, apesar de ficar mais apertado, daríamos conta de pagar.

Eu já estava com 30 semanas e minha tia, que mora perto da Casa Angela me cedeu seu endereço fixo. Passei pelo posto de saúde do bairro. Em um dia, deu tudo certo para o meu parto. Minha filha nasceu numa terça-feira, 19 de fevereiro de 2019. Dia 18 eu tive uma consulta e já fui com contrações, bem leves. Me levaram para uma avaliação mais minuciosa e me falaram: ‘olha, você está com 3 centímetros de dilatação, mas seu colo está bem fechado’. Perguntei se era melhor eu ficar em São Paulo ou se poderia voltar para Campinas. A obstetriz disse que eu poderia ir, mas era para ficar de olho se as contrações aumentassem ou se a bolsa estourasse. Era de manhã ainda, fui almoçar com meu marido, fomos visitar um amigo e ficamos até a noite. Voltamos pra Campinas, busquei meu filho na casa da minha mãe e já deixei ela sob aviso.

Às 3h da manhã minha bolsa rompeu, fui para o box, chamei meu marido, ele ligou para minha mãe e para a Casa Angela, quando foi 3h30, fomos para São Paulo, as contrações ritmadas de 3 em 3 minutos. Diferente do meu primeiro filho, que me foi aplicada a ocitocina sintética, eu tinha as contrações e conseguia respirar e seguir normalmente. Com meu filho não tive esse respiro. Chegamos na Casa Angela às 5h da manhã, com uma super contração, muita dor, andando sozinha, fui atendida pela obstetriz Gisele, eles já estavam com meu prontuário, estavam me esperando, me avaliaram e eu estava com 6 centímetros de dilatação.

Fui para a sala de pré-parto, fizeram exames para ver se a bebê estava bem. Não deu tempo nem de terminarem de colocar o equipamento do cardiotoco, porque eu senti a minha filha empurrar, ela acabou nascendo na poltrona mesmo, 5h30 da manhã. Em 25 minutos ela nasceu, sem a ajuda de ninguém, sem ninguém colocar a mão nela, sem anestesia, sem nada! Do jeitinho que era para ser. Uma criança não precisa de nada para nascer. Ela já veio para o meu colo. Na sala, só duas profissionais: uma para cuidar de mim, outra para cuidar dela. E elas só ficaram me olhando, me dando apoio. Uma delas me ajudou a segurar minha filha quando ela saiu e já colocou no meu colo e do meu colo ela não saiu até hoje.

Tudo à meia luz, silêncio, a placenta nasceu tranquilamente… A diferença é gritante de um parto para o outro. O do meu filho, mecânico, frio e sem emoção. A da minha filha, com meu marido do lado, eu emocionada e sem interferência. No parto dela eu me senti protagonista, importante”.

Em nota

A ComTempo entrou em contato com o Hospital Maternidade de Campinas que, em nota, afirmou que:

“No relato que nos foi encaminhado não fica claro qual teria sido a ‘violência obstétrica’ que a paciente alega ter sofrido durante o seu atendimento nesta instituição, assim como não informa também quais seriam os ‘procedimentos proibidos’ aos quais ela teria sido submetida no Hospital.

Em respeito à legislação vigente, que determina o sigilo médico em relação às manifestações relacionadas a pacientes, o Hospital Maternidade de Campinas não é autorizado a fornecer informações referentes aos atendimentos realizados na instituição.

No entanto, em relação à referida paciente, informamos não constar do seu prontuário qualquer intercorrência durante o período em que esteve sob os cuidados deste hospital.

O Hospital Maternidade de Campinas reforça que, quando há qualquer registro ou manifestação de pacientes, devidamente documentados, os eventos são rigorosamente apurados pela instituição”.

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