Jornalismo, resistência, a capela e meu pai

Igor Savenhago

“Ali! Ela tá ali!”, disse meu Tio Tunim descendo rapidamente do poste. Ele havia escalado a torre de energia para procurar o que seria a última lembrança da infância: uma capela.

Sim, uma capela. Fazia tempo que ele não voltava àquele lugar. Quase 30 anos. Mas havia recebido, de amigos, a informação de que a capela ainda existia. Emocionado, ele correu para o meio do canavial. Lá estava ela! À sombra de uma goiabeira, a capela jazia. Com as paredes pela metade e o teto desabado.

Comecei a fotografar. Aquele era meu primeiro trabalho da faculdade de Jornalismo, na qual havia ingressado há uns dois meses. Precisava entregar um ensaio fotográfico. Escolhi fazer do lugar onde meu pai morou quando criança. Mas seria surpresa pra ele. Combinei com o Tio Tunim, irmão mais novo dele, para que me levasse ao sítio onde a família havia passado boa parte da vida antes de se mudar para a cidade.

Meu pai havia migrado aos 18 anos. Estava com 47. Durante anos, na mesa do jantar, contou histórias sobre as aventuras da zona rural. Da necessidade de trabalhar desde pequenino. Da dificuldade de conciliar a lida da roça com os estudos. Do amor pelos animais. Das festas de Natal e Ano Novo, quando tomavam o único guaraná do ano todo. E da religiosidade, que reunia a vizinhança em torno da capela, principalmente em junho, para comemorar Santo Antônio. O mesmo cuja imagem permanecia lá, bastante desgastada pelo tempo, no altar da capela.

Meu tio rezou pra ele. Parecia incrédulo com uma imagem ter durado tanto tempo. Depois, recolheu um tijolo. Disse que levaria de recordação. Enquanto isso, eu fotografava. Gastei um filme. Não tinha a facilidade da fotografia digital. Fui embora realizado, ansioso pela revelação, que faria no laboratório da faculdade.

Dias depois, a frustação. Percebi que não havia fechado direito a câmera e todas as fotos queimaram. Todas. Nenhumazinha para contar história. Decidi não voltar lá tão cedo. A capela ficaria apenas na minha memória.

Alguns anos depois, contei essa passagem numa festa de família. Parentes me fizeram o convite para que voltássemos ao lugar, agora em grupo. Juntamos uma turma. Meu pai, minha avó, tias, tios, primos… Dessa vez, não foi preciso o Tio Tunim escalar o poste. A cana estava baixa. Menos esforço para procurar a capela. Mais evidências de que não restara um único tijolo. Tudo limpo. Nem sinal das velhas paredes. Nenhuma telha caída. Nenhum santo para abençoar nossa presença.

Até que minha avó se abaixou, enquanto sorria e chorava ao mesmo tempo, para levantar o que parecia um pedaço de cimento desenhado. “É o piso! Um pedaço do piso da capela!”, disse ela. E não era um apenas. Recolhemos uns quinze pedaços. Triturados por alguma máquina de preparo de solo para plantio de cana.

Fiquei com uns cinco pedaços, que guardei por uns quatro ou cinco anos numa caixa de um quartinho de casa. Eles só saíram de lá quando estava pra completar um ano de uma cirurgia que meu pai fez contra um câncer. Um amigo escultor topou o desafio de usar as partes do piso para pensar numa obra. Na semana seguinte, ele me ligou. A peça, que olha pra mim enquanto escrevo esse texto, do alto de um armário onde mantenho uma modesta biblioteca, é a representação, em madeira, de uma sagrada família, que repousa sobre os pedaços de piso da capela do sítio onde meu pai morou quando criança.

Trouxe a peça da casa de minha mãe há poucos meses. Queria sentir mais de perto o meu pai, que morreu há quase quatro anos, em setembro, por causa de um câncer agressivo. Ela também me conecta com o meu passado, com a arte de contar histórias, com a minha formação em Jornalismo. Ela me permite juntar, todos os dias, fragmentos de memória, como faço quando escrevo uma reportagem ou este breve artigo, para continuar construindo minha trajetória de vida.

Ela me permite sonhar com um mundo em que os valores de outrora, da infância do meu pai, possam, um dia, vencer a intolerância, o desrespeito e a tentativa de desmonte do Jornalismo que se deseja fazer em prol de notícias falsas e do autoritarismo. Essa representação de capela, aqui sobre a biblioteca, me faz lembrar que é preciso resistir. Como faz a Comtempo, que, ao me dar a honra de escrever em suas páginas, me permite ligar todas essas pontas.

Não voltei mais ao sítio. Não tenho mais a presença física do meu pai. Não posso mais abraçá-lo. Mas faço o esforço de falar com ele sempre que a saudade aperta. Faço isso mirando o piso da capela.

O tempo me ensinou que aquelas fotos queimadas poderiam servir como inspiração. Para manter viva uma história que me veste, que me alimenta, que me faz companhia e que me assopra sempre no ouvido, como um cochicho, com a voz doce do meu pai.

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