Refúgio dos Rolling Stones

José Piutti

Talvez o fato seja desconhecido para a maioria das pessoas. Também era para mim, e foi descoberto da melhor maneira possível: pelo acaso. Sentado embaixo das árvores do pátio da faculdade, usando todos meus neurônios em busca de uma pauta, questionei a primeira pessoa que passou pela minha frente: “Você conhece alguma história legal?” A resposta, tímida, foi: “Ah.. Os Rolling Stones passaram uns dias na minha cidade…”

Meus olhos brilharam quando ouvi. Depois, perguntei diversas vezes se ele estava realmente falando sério. Ele, aliás, chama-se Marcos de Souza. É estudante de relações internacionais, mora em Ribeirão Preto, mas nasceu e cresceu na cidade em que os roqueiros tiraram as férias sabáticas.

“Cada cidade tem sua lenda, e essa é a lenda de Matão. A gente cresce ouvindo nossos pais comentarem que seus avós disseram que viram os Stones andando pela cidade. É muito aleatório pensar que um dia eles estiveram lá”, disse Mateus.

Agradeci a Marcos, ao destino e àquele pequeno momento de coragem. A partir disso, passei a buscar todas as informações possíveis sobre o caso. Diversos portais de notícias escreveram sobre a visita. Um documentário também foi feito. Após virar noites em claro em busca da odisseia dos linguarudos no interior paulista, foi possível constatar que, de aleatório, a visita deles à cidade nada tem.

A viagem está relacionada com a troca de parceiros de Anita Pellenberg. Em 1965, a Stone Feminina, como era chamada, havia se envolvido com o guitarrista e fundador da banda, Brian Jones. No entanto, durante uma viagem realizada pelo grupo a Marrocos, Brian adoeceu e ficou pelo caminho. Eles seguiram viagem sem o guitarrista. Foi neste momento que Richards teria se aproximado da atriz.

Após a gravação do concerto The Rolling Stones Rock and Roll Circus, em 11 de dezembro de 1968, Richards teria convencido Jagger a viajar ao Brasil, para ele e Anita esconderem o relacionamento de Jones, que foi encontrado morto em uma piscina seis meses depois, em julho de 1969.

Foi o bancário Walther Moreira Salles quem ofereceu sua fazenda em Matão para que a dupla pudesse se esconder dos holofotes. Na época, Walther era dono do Unibanco. O contato entre ele e Jagger foi feito por intermédio de uma pessoa que cuidava das movimentações financeiras do vocalista.

Os linguarudos, como são conhecidos, chegaram ao país no final de 1968. Desembarcaram no Rio de Janeiro e passaram a virada do ano em Copacabana. No entanto, irritados com a movimentação da imprensa, partiram rapidamente para local indicado por Moreira Salles, a Fazenda Boa Vista, a 100 quilômetros de Ribeirão Preto.

A estadia dos roqueiros, contudo, não passou despercebida. Pelo contrário: eles foram apelidados de aliens, por conta dos cabelos longos e das roupas agarradas ao corpo extremamente coloridas.

Um vazio em meio às buscas

Pronto. Eu tinha entendido como eles chegaram a Matão. Agora, para ter certeza de que não se tratava de algo parecido com surto coletivo ou ao efeito Mandela, precisava ouvir o relato de quem ficou frente a frente com eles. Durante as buscas, encontrei três nomes: Wanderley Zanioni, Carminho Tucci e Ricardo Simões.

Neste momento, já havia se passado duas semanas da ‘descoberta’ da pauta, e as músicas da banda se tornaram frequentes em minhas playlists. Foi graças a isso que dei o maior passo durante a apuração. Em um almoço qualquer no trabalho, enquanto conversava com minha chefe, decidi contar sobre a pauta. “Eu sou de Matão! Tenho o contato da esposa do Wanderley, o capataz da fazenda em que eles ficaram. Pera aí”, foi a reação da jornalista Isabelle Garcia, que, em segundos, me passou o número.

Eu não conseguia acreditar que aquilo tinha sido tão simples. Naquele exato momento, pensei que estava prestes a conversar com o homem que conviveu os 17 dias com os Stones em Matão. No entanto, o destino não quis assim. Eu percebi pelo desânimo na voz da esposa de Wanderley, quando a questionei se poderia conversar com ele. “Meus sentimentos. Obrigado, viu? Fica bem”, respondi, após receber uma triste notícia: a principal fonte para minha matéria havia falecido.

Eu quase desisti. Lidar com a morte nunca é fácil. Em  respeito à memória de Wanderley, publicarei abaixo o trecho de uma entrevista dada por ele ao G1, o portal de notícias da Globo. Não sei se você, leitor, acredita no destino, mas é somente por isso que esta reportagem foi escrita e, mais uma vez, ele deu as caras. A Matéria onde Zanioni conta sua experiência foi publicada em 24 de fevereiro de 2016: dia do meu aniversário. O melhor presente. Ao portal, o ex- zelador contou sobre a simpatia de Mick Jagger.

“Queriam saber tudo, esperavam apavorados para ver se tinha alguma notícia na Inglaterra, então comecei a levar todo dia o jornal de manhã. Tinha uns cachorros muito grandes, então só eu podia entrar. A namorada do Mick Jagger [Marianne Faithfull] que vinha buscar na escada com uma camisola branca, toda transparente. Eles chegavam da rua toda vez brincando, beliscando, um cara muito bacana”, contou Wanderley Zanoni.

Homem na Lua, Beatles e os Rolling Stones

Ainda restavam duas fontes: Carminho Tucci e Ricardo Simões. Para chegar até eles, liguei para a redação do RCI Araraquara, que havia feito uma reportagem onde os dois eram citados. Foram seis ligações ao longo de uma semana. Com os números em mãos, caminhei, ansioso, em direção ao estúdio da rádio da universidade em que estudo. Sentei no chão, liguei o gravador e iniciei uma chamada com Ricardo Simões, professor aposentado da Força Aérea Brasileira, aos 72 anos. Na época, em paralelo com as aulas, ele tinha uma gravadora de vídeos e, por isso, foi chamado pelo fotojornalista Carminho Tucci para ir em busca dos roqueiros.

“Já havia um cochicho de que eles teriam passado por Araraquara (SP), tomado sorvete na avenida São Paulo… Eles eram tarados por sorvete brasileiro, não sei por quê”, relembrou Simões. “Eu recebi um telefonema do Tucci, dizendo que eles realmente estavam em Matão. Daí eu peguei meu fusquinha vermelho, passei a mão na minha câmera e partimos pra lá. Ao chegarmos na fazenda do Moreira Salles, um capataz nos avisou que eles haviam acabado de ir para o centro da cidade tomar sorvete e comprar fogos de artifício.”

Sem pensar duas vezes, os dois foram até o local, onde avistaram um aglomerado de pessoas e souberam que haviam chegado ao lugar certo. “Eles estavam em uma sorveteira. Tucci até conseguiu fazer umas fotos do Mick chupando sorvete. Depois, atravessaram a rua e começaram a soltar fogos no meio de uma praça, com aquela gritaria em inglês”, conta, animado. “Junto deles, estavam duas mulheres. Uma delas estava nua, enrolada em um lençol branco todo sujo, bem riponga. Eles se abraçavam, soltavam fogos, chupavam sorvete… Ninguém ali conseguia falar com eles, mas ficavam observando a festa.”

Ao ser questionado sobre a fama da banda, Simões respondeu com espanto: “Nossa senhora! Eles eram o auge. Lembro que o assunto do momento era o homem na Lua, junto com os Beatles e os Rolling Stone. Era o que estava na ponta da língua da galera.”

A empolgação, no entanto, diminuiu ao ser questionado sobre as filmagens. O aposentado diz que os rolos de fita com as imagens raras dos Stones caminhando pela cidade foram roubadas por uma funcionária. “Eu deixava os rolos junto com minhas medalhas de quando praticava natação. Uma empregada viu, pensou que era ouro e avisou alguns bandidos. Eles levaram tudo embora. A maior tristeza da minha vida foi isso, cara. Era a maior relíquia da minha vida e eu fui roubado”, desabafou.

Ao tentar contato com Carminho Tucci, a ComTempo recebeu outra triste notícia. Atarefado, disse que não poderia estender a conversa. Fez um breve relato, reforçando as informações de Ricardo, mas revelou que, na época, era freelancer da Folha de S. Paulo. Ele diz que, ao retornar do encontro com os roqueiros, um repórter do jornal o aguardava. Na ânsia de que a imagens fossem publicadas na manhã seguinte, ele disse que entregou o negativo ao jornalista, sem fazer cópias e, até hoje, nunca mais viu suas fotos.

O refúgio

Okay. Eu já tinha a explicação de como os roqueiros chegaram a Matão e relatos de quem conviveu com eles, mas algo me fazia querer ir além. Em outro dia qualquer, fui almoçar novamente com Isabelle. O diálogo foi o seguinte:

– Isa, você sabe onde fica a fazenda em que os Rolling Stones ficaram lá na sua cidade?

– Fica ao lado da minha.

Eu quis explodir. Naquele mesmo momento, ela me explicou como chegar ao local e me passou contatos de pessoas que poderiam me ajudar. Após o expediente, liguei para o meu pai. Implorei: “Me leva a Matão? Por favor?” A resposta foi a mais positiva possível.

Em um domingo de maio, no Dia das Mães, visitei a chácara Boa Vista. O sol brilhava forte e minha intenção era apenas conseguir uma foto da fachada. Em um momento de coragem repentina, resolvi apertar a campainha e esperamos, eu e meu pai, alguma resposta. Após um tempo, vimos um senhor. Era Antônio Magalhães, o caseiro. Em meio a umas gaguejadas causadas pelo nervosismo, consegui explicar a situação e o motivo pelo qual estávamos alí e, meio apreensivo, ele respondeu: “Posso deixar você tirar algumas fotos da sede, mas não do interior dela. Pode ser?”

Sem acreditar e tomado pela euforia, acompanhei Antônio, que logo me apresentou Ilda, a esposa dele. Juntos, o casal me contou tudo que sabem sobre a história da fazenda.

“Muita gente aqui de Matão não conhece essa história, ou não acredita, mas é verdade: eles estiveram aqui”, eles disseram sobre a fama do local que, durante os 11 anos em que trabalham como caseiros, recebeu diversos fãs e equipes de reportagem.

“Nós conhecíamos os Rolling Stones de saber que eles eram famosos, mas não sabíamos que eles tinham passado por aqui. Conhecemos as histórias com as equipes de reportagem que pediam pra fazer matéria, com os ex-funcionários e com algumas pessoas que ainda passam aqui e pedem pra conhecer”, explicaram.

“Uma vez um homem veio de São José do Rio Preto (SP) com a namorada e disse que tinha tocado com eles nos Estados Unidos. Trouxe uma foto da guitarra pra eu mostrar pro meu patrão e ele autorizar a entrada, porque o sonho de infância dele era conhecer essa fazenda. Eu deixei ele entrar, mas sem tirar fotos. Eu juro por Deus que nunca vi um cara tão fanático. Depois ele ajoelhou e agradeceu”, relembra. “Tem gente que até pede para pagar [para visitar]. É cada história”, acrescenta, entre risos.

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Durante o passeio pela chácara, cada canto guardava uma história. “Eles nadaram nesta piscina aqui. Acendiam velas ao redor das bordas e passavam as noites nadando pelados”, contou o casal, em meio a risadas tímidas, enquanto caminhávamos próximos da grande piscina, cercada por uma grama milimetricamente cortada.

A sala de jogos, no porão do casarão, guarda mais objetos daquela época: uma mesa de sinuca e um grande pôster de Mick Jagger. No local, Antônio relembrou uma situação. “Dizem que uma mulher ficava escondida próxima à porteira para pegar as bitucas dos cigarros deles e depois vendia para curiosos. Eu não compraria, você compraria?”, perguntou, com mais risadas.

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Na varanda, que circunda toda residência, o casal me mostrou reportagens antigas sobre a passagem dos Stones por Matão. Os textos, publicados na era de ouro do jornalismo impresso, narram desde uma festa junina fora de época que aconteceu na chácara, às visitas que os músicos fizeram a terreiros de Umbanda em busca de inspiração até ao ato visionário de tomar cerveja em latas de alumínio, um artigo de luxo para a época, visto que as latinhas chegaram no Brasil três anos depois dos roqueiros.

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Durante a visita, fomos presenteados com uma surpresa. O patrão, dono da chácara, havia autorizado nossa entrada na sede da fazenda, mas com uma condição: só poderíamos fotografar a mesa em que eles faziam as refeições. Os demais cômodos deveriam ser preservados.

 

Ao entrarmos na sede, fomos direto à copa. A mesa faz jus ao tamanho da casa. São 24 cadeiras distribuídas ao redor da longa pedra. No total, o imóvel tem 28 cômodos; dentre eles, nove suítes.

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A visita regada de bom humor terminou com seu Antônio apontando para uma outra casa, no mesmo terreno. “Foi naquela casa ali que eles escreveram uma música. Não me pergunte qual, porque eu não sei” diz, referindo-se à canção Honky Tonk Women (escute pelo QR Code), que ficou por quatro semanas no topo da Billboard Hot 100, uma lista que avalia as cem músicas mais vendidas da semana nos Estados Unidos.

 

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Na saída, ganhei dos caseiros duas sementes vermelhinhas de Pau Brasil. Elas estão guardadas e serão plantadas, em breve, para sempre me lembrarem do poder do destino. E das histórias. E da curiosidade. A sensação, no caminho de volta, era de alívio e dever cumprido. Minhas contas com o destino haviam se acertado.

 

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