Jornalismo: ato de resistência

José Piutti e Pedro Martins

Era um grupo de jovens quem se dedicava a escrever sobre a pequena cidade de Bebedouro, no interior de São Paulo. Liderada por Lucas Evangelista, em 1924 a equipe produzia um semanário publicado aos domingos, chamado O Jornal de Bebedouro. Entre os jornalistas, estavam os irmãos Juca e Estácio Caldeira, que assumiram a direção do veículo após a morte precoce de Evangelista.

“A família do Lucas não tinha interesse nenhum em continuar, então meu pai e meu tio se juntaram e compraram o jornal. A partir disso, meu pai passou a considerar a Gazeta como uma ferramenta para ajudar a cidade”, é o que conta Sarah Cardoso, filha de Juca Caldeira que hoje é a editora-chefe do jornal.  

Com emoção e gratidão, Sarah Cardoso conta à equipe a trajetória da Gazeta na vida dos bebedourenses.

A gestão de Juca durou 40 anos. Durante este período, o jornal inaugurou uma fonte luminosa na praça da igreja matriz, uma escola, a sede da APAE e ajudou a criar um clube, onde negros pudessem se divertir em uma época em que ecoavam os gritos de preconceito do Apartheid.

De 1988 a 1998, outro grupo de jornalistas tomou conta do semanário, mas o trabalho não agradou a família. “Foi quando minha mãe me chamou. Ela disse: ‘filha, pelo amor de Deus, se você não voltar a Gazeta vai fechar”, conta Sarah, que na época morava em São Paulo, após ter se formado em jornalismo por influência dos pais na Universidade de São Paulo (USP).

Quando recebeu o chamado, Sarah tinha uma agência de publicidade na capital. Dividida entre passado e presente, aceitou passar dois, dos sete dias da semana no interior paulista. Com sua chegada, a Gazeta passou a ter cinco edições por semana.

“Eu sempre fui louca, mas acho que extrapolei meus limites. Imagina, fechando páginas da estrada, falava no celular dirigindo, saia daqui meia-noite e chegava na capital às 5h para ter uma reunião às 9h…Foi um período prazeroso, voltar a ter contato com tudo o que meus pais construíram”, relembra.

Em 2003, cinco anos após tomar a decisão de viver entre uma cidade e outra, Sarah viu a mãe adoecer e partir. Ela continuou por mais oito anos a conciliar a Gazeta de Bebedouro com a Voga Propaganda, até que chegou ao limite.

“Chegou uma hora que eu falei: não estou aguentando mais. Perdi até a minha carta de motorista por tantas multas que tinha. Estava difícil. Foi quando adoeci. Estava com câncer. Era a hora de mudar de vida”, recorda Sarah, decidindo mudar-se de vez para Bebedouro, em 2011.

Sarah abre os arquivos da Gazeta para a ComTempo, são 95 anos de histórias guardadas ali.

Dois mil e dezenove

Hoje, chegam às prateleiras duas edições da Gazeta de Bebedouro por semana. A partir de 6 de junho, data em que o jornal comemora 95 anos, será lançada a assinatura digital. Em comemoração, a reportagem da ComTempo revisitou o passado, discutiu o presente e previu o futuro da Gazeta junto com a editora-chefe do jornal.

“Vou te contar a história inteira. Senta aqui”, diz Sarah, ao indicar uma poltrona bege em meio a um memorial na sede do jornal. Ela senta em um puff, cruza as pernas e destrincha, na minha frente, noventa e cinco anos de história. Emocionada, às vezes não consegue conter a emoção e os olhos se enchem de lágrimas.

Qual é a missão da Gazeta?

Posso resumir com duas palavras? Símbolo de resistência. Nossa proposta é a mesma desde a criação: dar voz para uma pequena cidade. Eu não quero ser mídia nacional, eu não quero jornalistas procurando o que o Bolsonaro disse. Nosso interesse é melhorar a vida das pessoas onde elas vivem. É quase uma prestação de serviço que fazemos para os bebedourenses. Não adianta eles irem até a Folha de S. Paulo. Eles não vão ter voz, mas aqui eles têm.

A cada página, muitas histórias. Eis aqui, a primeira edição da Gazeta.

Como vocês fazem isso?

Nós contamos com três fontes de informação, que dão material para gente poder trabalhar: o executivo, o legislativo e judiciário. O primeiro é o que mexe com a vida das pessoas, onde encontramos respostas pros anseios dos bebedourenses. Uma vez, descobrimos algumas fraudes em uma licitação de um antigo prefeito. Fomos atrás da empresa ganhadora e descobrimos que se tratava de um puteiro. É um tipo de manchete que eu detesto dar, mas a verdade não pode ser omitida.

Esta verdade alcança todas as classes sociais da cidade?

A Gazeta foi feita para as classes A e B. Ela não consegue atingir todas as camadas, mas o povo conhece o veículo. Há uns dois anos, um candidato a deputado fez uma pesquisa na cidade e incluiu a pergunta ‘qual era a marca de empresa bebedourense que você lembra espontaneamente?’. A Gazeta de bebedouro foi a terceira [mais citada]. Todo mundo conhece, mesmo as gerações mais novas e as classes C e D, que não são leitores do jornal.

Nas mãos de Sarah, a impressão de mais uma edição. Após essa montagem, é hora de levar às páginas para a máquina e rodar.

Como a internet impacta o jornal impresso?

O importante é dar a informação. O jornal impresso tem que encontrar na internet uma aliada, e não uma concorrente. Nós aderimos às redes sociais e postamos matérias diariamente. Agora, nos 95 anos, lançaremos a assinatura digital. Isso pode trazer o interesse para aquele que não é leitor. Antes da internet, era mais fácil vender informação, por meio da assinatura. Como na internet só gostam de leitura rápida, é muito mais difícil, mas quem lê tem que saber que isso custa. Essa equação tem que ser ajustada. Os veículos têm que ser remunerados para produzir conteúdo.

 Quais são os benefícios da internet para o jornalismo?

A internet é a grande revolução deste século. Ela tornou acessível qualquer comunicação. Mas também tem a toxicidade. Todos que têm acesso à internet acham que têm opinião sobre tudo, mesmo não tendo conhecimento para opinar. Ao mesmo tempo que é a democratização total da informação, também tem o lado negativo.

Como o jornalista pode combater essa desinformação espalhada na internet?

O que te faz ser um bom jornalista? A boa fonte. Você não é especialista em nada, mas precisa ter fontes especialistas. Eu posso não ser especialista sobre maternidade na adolescência, por exemplo, mas eu tenho acesso a um médico que tem todas essas estatísticas. Nós somos generalistas, mas viramos grandes especialistas na medida em que sabemos quem entrevistar.

A primeira máquina de impressão da Gazeta está exposta no Memorial que existe na sede do jornal, no centro de Bebedouro-SP.

Como as notícias são recebidas no interior paulista?

As pessoas querem verdade. Não vou dizer que a gente nunca errou, porque já aconteceu, mas sempre achando que estávamos fazendo o certo. A Gazeta já perdeu processo. A gente usa como aprendizado. Tem um rapaz que estava na hora errada, no local errado, em um assalto, e ele foi preso. Até hoje a gente não sabe se ele tinha envolvimento ou não. Na hora que fizemos a matéria, descrevemos e demos os nomes de todos os presos. Esse cara foi solto. O que ele fez? Ao invés de vir aqui e pedir ‘olha, estava errado, eu fui preso indevidamente’, ele entrou com ação, o juiz deu danos morais e eu tive que ressarci-lo. O que aprendi? A gente não fala nome de pessoas que foram presas, a não ser que sejam pessoas públicas, porque você pode estar cometendo um erro.

Em meio a essas reviravoltas, você já pensou em fechar a Gazeta?

Só no âmbito emocional, em algum desespero que possa ter me dado em algum dia, mas passou rápido. Racionalmente, eu nunca pensei em desistir. Meu pai escreveu a seguinte frase: viver 40 anos para um jornal interiorano é uma façanha que chega a ser até heroica, porque um jornal deve ser mantido em um lugar alto, para não ser atingido por ventos contrários à seriedade, à honestidade e à verdade. Ele escreveu em 1980. A gente continua vivendo as mesmas coisas, porque as nossas dificuldades são as mesmas. É um ato heroico, de resistência. Não tem outra definição.

Quais são as dificuldades pelas quais vale a pena resistir?

Produzir jornal não é fácil. A gente corre contra o tempo e, embora tenha todo o aspecto de serviço que a gente presta, é uma linha de produção, então cada jornalista tem que produzir tantos mil caracteres por dia. Se você atrasa aqui, vai dar merda até o final. Ao invés da Gazeta ficar pronta à meia-noite, vai ficar pronta às 2h, 3h, 4h. Alguém vai sofrer o que aquele não produziu.

O sorriso de Sarah Cardoso, é apenas mais uma prova do prazer imensurável que ela sente em continuar resistindo e levando aos leitores o que realmente importa, quando o assunto é informação.

Você acredita que o jornal impresso vai acabar?

Dizer que produzir um jornal impresso hoje é ilusão, sonho… ele é uma ferramenta como qualquer outra. Tem mil plataformas. Você tem o celular, computador e tem o impresso. Ele vai acabar? Não sei se vai acabar fisicamente, do mesmo jeito que o livro não acabou. Mas se ele vai dividir com outras plataformas? Com certeza vai. Lançaremos a assinatura digital, mas nosso leitor antigo talvez siga com a vontade de ter o papel em mãos.

Por fim, que conselho você dá para quem não acredita mais no jornalismo?

A gente dá o subsídio para o leitor ampliar seu horizonte. Nossa profissão não vai acabar nunca, e quem quiser transformar o mundo com a informação, continue com esse sonho.

Leia essa e outras matérias diagramadas em PDF baixando gratuitamente a quinta edição da revista ComTempo.

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