Profissionalismo além das telas

Marcos Pitta

“Gaúcha de alma e de nascença, ribeirão-pretana de coração”. É assim que Lucieli Dornelles, editora de texto e apresentadora do jornal da EPTV, afiliada da Rede Globo, no interior de São Paulo, apresenta-se em sua rede social com quase 38 mil seguidores.

A jornalista que todos os dias no horário do almoço faz companhia para milhares de pessoas, aglomera um conhecimento vasto, dá palestras e ainda consegue tempo para agradecer o carinho dos fãs nas redes sociais.

Mesmo com a rotina atribulada conseguiu responder a ComTempo, enquanto desdobrava-se na redação, sempre enfatizando que o cansaço existe, porém não há nada que lhe deixe mais feliz do que fazer o que gosta.

Lucieli fala sobre o avanço da era digital e como isso influenciou a maneira de fazer jornalismo, Fake News, a maneira como lida com notícias trágicas e, ainda, comenta sobre seu outro lado, o de palestrante, artifício que a ajudou ganhar mais voz.

ComTempo: Com a era digital se desenvolvendo cada vez mais, a forma de se fazer jornalismo é a mesma ou mudou? Se houve mudanças, qual a principal até o momento?

Lucieli Dornelles: As mídias sociais transformaram completamente o nosso jeito de fazer jornalismo. Do início ao fim: desde a hora em que nasce a notícia até o momento em que ela vira um produto (reportagem) e é veiculada na tela da TV. Uma década atrás, por exemplo, o comum na redação era “correr” atrás das informações. Agora, a sensação que se tem é que as notícias “caem no nosso colo”. Veja que grande mudança: antes a nossa equipe de produção passava o dia inteiro apurando e organizando as possíveis pautas das 66 cidades da área de cobertura da emissora. Pelo menos quatro vezes por dia, os produtores telefonavam para prefeituras, bases da Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, hospitais, etc. Hoje não. Hoje tudo o que acontece se espalha com rapidez, em questão de minutos. Isso é ótimo, mas também pode ser perigoso.

ComTempo: Você trabalha com jornalismo televisivo, qual a principal dificuldade em selecionar as pautas? O que é levado em consideração?

Lucieli: O nosso critério de relevância não mudou. No jornalismo, dividimos as reportagens em factuais (aquilo que acaba de acontecer) e não-factuais (frias, podem ir ao ar em qualquer dia da semana). A seleção é natural: priorizamos a informação que tem mais impacto no dia-a-dia das pessoas ou pode servir como exemplo/visibilidade para que elas tenham uma vida melhor. Exemplo: falar sobre falta de remédios na rede pública de saúde é mais importante do que falar sobre mato alto, assim como falar sobre mato alto é mais importante do que falar sobre dicas de organização no armário de casa. As reportagens que não pedem urgência na veiculação ficam guardadas no nosso sistema – em um lugar que chamamos de geladeira – e vão ao ar quando tem espaço no telejornal.

ComTempo: Com tantos anos de experiência na TV, tem alguma cobertura marcante em sua trajetória?

Lucieli: É difícil escolher só uma, já que o meu trabalho em TV começou aos 17 anos de idade, como estagiária. De lá pra cá, viajei o Brasil inteiro fazendo coberturas especiais e passei por uma infinidade de experiências – algumas incríveis, outras assombrosas. Vou destacar aqui uma série de reportagens que mexeu bastante comigo: sobre as comunidades Quilombolas do Sul do país. Ver de perto uma realidade tão diferente a da maioria das pessoas foi impactante e transformador.  Conversei (e convivi) com filhos e netos de escravos, gente que vive à margem da sociedade e ainda é afetada pelo regime de violência e brutalidade que existiu no nosso país. Não posso negar que me tornei uma pessoa mais empática e engajada depois desse trabalho, foi um dos grandes aprendizados que o jornalismo me proporcionou.

ComTempo: Como você vê a aproximação do público com o jornalismo através das redes sociais? É completamente saudável e importante?

Lucieli: Eu costumo dizer que vivi para ver isso acontecendo. Nada me deixa mais realizada do que poder fazer jornalismo com tanta proximidade do telespectador – e muitas vezes junto com ele. Temos hoje um canal muito mais amplo de denúncia, interatividade e expressividade do público. Eu adoro tecnologia e me considero bastante otimista em relação às mudanças! Acredito que saímos ganhando, em todos os aspectos: em quantidade e em rapidez de informação também. Percebe que agora acabamos quase que por contrariar a Lei da Física? Com tantos vídeos e fotos chegando pelas redes sociais “em tempo real”, é quase como se estivéssemos em mais de um lugar ao mesmo tempo.

ComTempo: Como fazer jornalismo sério sem ser afetado pelas fakenews que só crescem?

Lucieli: O nosso princípio básico, de responsabilidade com a informação, continua o mesmo. A diferença é que o nosso trabalho de checagem e apuração agora é ainda maior – e mais minucioso. Nunca antes foi tão importante checar a veracidade do fato e se debruçar sobre todos os aspectos e versões de uma reportagem. Afinal, nos dias de hoje, o que é relevante e o que não é se confundem em um espaço onde impera o excesso. Todo mundo tem voz, não é? Isso seria maravilhoso, não fosse um detalhe: grande parte das pessoas não se preocupa com o bom senso ou com a credibilidade da informação que compartilha. E é aí que entra o jornalista: não apenas com o compromisso de transmitir a informação correta e precisa, mas corrigir e desmentir os boatos que se espalham por aí. Estamos suscetíveis ao erro? Sim, pode acontecer. Mas tomamos todas as medidas de precaução para que não aconteça. Em caso de dúvidas, optamos por não veicular.

ComTempo: Como é para você noticiar casos trágicos, como casos de feminicídios, assassinatos? Como lidar com essas notícias para que ela chegue ao telespectador da maneira mais correta possível?

Lucieli: Esta é uma curiosidade recorrente: as pessoas costumam me perguntar qual é a tática que uso para controlar as emoções, ao noticiar alguma tragédia. Não sei se existe. Eu tenho como hábito respirar fundo e intensificar o grau de concentração. Mas não creio que fique mais fácil com o passar dos anos. Pelo contrário, é como se o trauma de cada vítima fosse um pouco meu também. Algumas histórias têm detalhes tão assustadores que eu custo a acreditar que sejam fatos da vida real e não da ficção. Mas sei que elas fazem parte do ofício e tenho como obrigação não deixar que os meus sentimentos atrapalhem o meu trabalho. Vale dizer que transparecer um semblante triste, revoltado ou chocado é muitas vezes inevitável. Acontece, sai naturalmente. Só não pode prejudicar a notícia. Nosso cuidado maior, em casos assim, é contar o fato com riqueza de detalhes e ouvir todos os lados envolvidos – inclusive o de quem cometeu a atrocidade – sem escandalizar o telespectador. Dependendo do grau de violência da imagem, optamos por tirar o foco ou não transmiti-la.

ComTempo: Você ministra palestras sobre motivação profissional, mercado de trabalho e fala bastante em nunca desistir, e em ter orgulho de sua trajetória. Como você enxerga o resultado final de suas palestras? As pessoas pedem para falar com você no final, tiram dúvidas e pedem conselhos?

Lucieli: As palestras ampliaram a minha voz na região de Ribeirão Preto de uma maneira muito especial. Para mim, é o momento de plantar a sementinha do trabalho e do comprometimento, principalmente nos jovens estudantes que me assistem. Faço questão de brincar com eles dizendo que sou a “tia chata” e estou ali para dar puxões de orelha. Tento usar a minha trajetória de vida para motivá-los. Não porque ela seja exemplar, mas para que eles entendam que nada nesta vida cai do céu. A garotada de hoje faz parte da geração do imediatismo e, na maioria das vezes, quer trabalhar pouco e ganhar muito. Minhas palestras mostram que profissão é construção, não acontece de um dia para o outro. Recebo muitas mensagens positivas dos professores – falando sobre a mudança de comportamento dos alunos – e dos próprios adolescentes. Grande parte me escreve para contar que estava perdida, sem rumo, e se viu com forças e capacidade para estudar e ir atrás dos sonhos que tem. Eu me emociono muito quando isso acontece! Em relação à parte final das palestras, é incrível como todo mundo gosta de conversar, dar um abraço forte e tirar uma selfie. E eu adoro também! Acredita que as pessoas costumam me enxergar como uma amiga? Até porque estou todos os dias na casa delas, não é mesmo? Algumas me fazem confidências e todas me tratam com muito amor. Fico extremamente feliz.

ComTempo: Para você, ser jornalista é?

Lucieli: Um propósito de vida. Hoje sei que não vou conseguir mudar o mundo (meu grande ideal quando entrei na faculdade), mas continuo valorizando o papel social da minha profissão. Principalmente porque sei que, por meio dela, consigo transformar pequenos mundos, pequenas comunidades, todos os dias. Isso já é suficientemente incrível pra mim. Aliás, esse é outro diferencial do jornalismo de TV, impulsionado pela internet: as mídias sociais ampliaram o poder do jornalismo comunitário.  Sinto que somos como o espelho do telespectador. Estamos ali para refletir o que eles vivem, para dar voz e vez para quem nos assiste. Desconheço sensação melhor.

ComTempo: Existe desvalorização da profissão por parte do público? E do mercado?

Lucieli: O jornalismo, assim como acontece com outras profissões, está mudando muito rápido. Quem não acompanhar vai ficar para trás, isso é inevitável. E é lógico que, diante de tudo o que as mídias sociais proporcionam hoje, é impossível não refletir sobre a parte que ainda nos cabe. Mas sem esquecer: em meio a uma avalanche de informações compartilhadas, minuto a minuto, os nossos grandes diferenciais são a capacitação e a experiência. Afinal, como eu já disse aqui, quem mais, além do profissional de jornalismo, vai filtrar a informação e ouvir todas as versões de um mesmo fato? Creio que o público entenda e reconheça isso. Já tivemos muitos exemplos de boatos desmentidos ao vivo, no jornal do meio-dia. O telespectador ligou a TV para checar a veracidade da informação recebida pela internet.

ComTempo: Como é o mercado de trabalho para quem quer seguir a área da comunicação? Que conselhos você dá para quem está começando?

Lucieli: Destaco dois pontos importantes. Primeiro, lembrar que esta é a hora do jornalista descobrir novos nichos no mercado e se reinventar, sem comodismo. As oportunidades aumentaram com o boom da internet, basta olhar para elas com carinho, sem preconceito. O segundo ponto é ter a consciência de que sempre haverá espaço no mercado para o trabalhador proativo, bem-disposto e comprometido. No jornalismo, a parte do comprometimento ganha uma relevância ainda maior, já que o nosso trabalho nem sempre tem hora para começar ou terminar. É fundamental que o estudante leve isso em consideração, quando for escolher a profissão. Não há glamour! O glamour é uma ilusão. Nós trabalhamos muito, com prazos curtos, responsabilidades gigantes e muita pressão interna e externa. Eu adoro isso. Amo! Mas conheço centenas de pessoas que desistiram por não dar conta de tanta pressão. Ah, pode parecer óbvio, mas também tem que gostar bastante de ler e de escrever – já vi muito aprendiz de jornalista preguiçoso ou escrevendo errado na redação.

ComTempo: Como é seu dia-a-dia?

Lucieli: Bastante corrido. A maioria das pessoas olha pra gente e pensa que a nossa vida é um conto de fadas, principalmente por causa da imagem que se vê na televisão. Mas apresentar o jornal é apenas 10% da minha realidade profissional. Quando entro no ar, já trabalhei por muitas horas longe dos holofotes (chego cedo, também sou editora de texto dos telejornais e coordenadora de mídias sociais em Ribeirão) e continuo trabalhando nos bastidores, depois que o jornal termina. Nossa jornada ainda inclui feriado, fim de semana, Natal, Réveillon, etc. É uma profissão repleta de abdicações, a pessoa tem que gostar muito. Sem contar que somos jornalistas 24 horas por dia, né? Não tem como ser diferente, faz parte do compromisso que assumimos. Tudo o que a gente enxerga ou enfrenta no dia-a-dia pode virar pauta.

Quando estou de folga, tento acalmar a mente com leitura, filmes, séries e, claro, na companhia dos amigos: jogo vôlei toda semana, sou fã de um bom churrasco com samba/pagode e amo viajar.

ComTempo: Você possui 23mil seguidores no Instagram, como consegue dar atenção a tantos comentários e questionamentos que chegam até você? Como é sua interação com os fãs?

Lucieli: A minha grande preocupação hoje na internet é mostrar quem é a pessoa física por detrás da pessoa jurídica. Não quero ser “a moça da televisão”. Quero que me enxerguem como uma mulher de 34 anos que estudou e trabalhou muito para ser quem é e estar onde está. Uma mulher como todas as outras – que fica triste e tem problemas. Parece simplório falar assim, mas é incrível perceber como consigo me conectar melhor com o público quando falo sobre alguma dificuldade pela qual passei. Hoje, faço questão de responder a todos (com exceção de perguntas desrespeitosas e invasivas, claro). São questionamentos variados: sobre a minha alimentação, meus cuidados com a saúde, minha trajetória profissional, meu dia-a-dia atribulado, enfim. Confesso que até pouco tempo atrás eu não conseguia me organizar para responder, mas hoje – mesmo que demore – consigo dar atenção para todos os seguidores. E sinto como isso é importante para a pessoa que está do outro lado! A troca de energia é surreal. Algumas me acompanham há muitos anos (desde a época da faculdade, quando eu escrevia em um blog). Elas torcem por mim, passaram comigo por vários momentos felizes ou difíceis e se lembram de coisas que às vezes nem eu mesma me lembro. É maravilhoso sentir esse carinho e essa energia positiva! Tento retribuir como posso. Hoje, gosto de falar sobre assuntos que possam contribuir com a reforma íntima de cada um que está ali no meu perfil: autoconhecimento, saúde, fé, depressão, solidão, vaidade, liberdade, relacionamento, amor próprio, intolerância, empatia, preconceito, etc, etc. O retorno é instantâneo. E sensacional.

ComTempo: Você tem o hábito de ler. Qual o primeiro livro que você leu? E qual sua melhor leitura até hoje?

Lucieli: Comecei a ler muito cedo, pouco antes de completar quatro anos de idade. Minha paixão da infância eram os gibis da Mônica e outros livros infantis. Na adolescência, devorei (em apenas um fim de semana) “Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado, e nunca mais consegui deixar de lado o hábito da leitura. Além dele, “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, “O Morro dos Ventos Uivantes”, de Emily Brontë e “A Arte da Guerra”, de Sun Tzu foram livros que me marcaram profundamente. Uma curiosidade: gosto de ler mais de um livro ao mesmo tempo, faz parte da minha personalidade inquieta. 

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