A boca que ensina é a mesma que assedia

José Piutti

“Você não tem capacidade de passar na minha disciplina”, foi o que uma jovem estudante de Engenharia Mecânica, que prefere não se identificar, ouviu de seu professor, na frente de toda sala de aula, composta majoritariamente por integrantes do sexo masculino. Antes, ela havia ignorado um e-mail do educador, em que a questionava: “Por que você não sai comigo?” “Sempre sofri muito preconceito por ser mulher e estar em ‘curso de homem’. Piadinhas sem graças vindas de veteranos e até mesmo colegas de classe são constantes. Isso desmotiva cada vez mais mulheres a encararem esse tipo de situação”, relata a vítima. O caso é parecido com o de V.T, estudante de Direito. Aos 15 anos, tinha acabado de ingressar em curso técnico de Serviços Jurídicos, onde um dos professores permitia provas em duplas. Após uma dessas atividades, a então adolescente notou sua nota inferior à de sua parceira.
 “Quando reclamei, ele pediu para chamá-lo no WhatsApp após a aula, pois seria mais fácil de resolver. Ao chegar em casa, mandei mensagem e ele respondeu dizendo que já havia alterado minha nota, e que queria receber algo em troca. Na hora, apenas ignorei, mas depois era horrível estar no mesmo ambiente que ele. Após um tempo, desisti do curso”.

A BOCA

Situações como estas estão longe de ser casos isolados. Em enquete aplicada pela ComTempo, foram obtidos 33 relatos de assédio, 26 deles em instituições de ensino. No Total, 24 são mulheres. Destes, 56% foram assediadas por seus professores, 15% por funcionários da instituições – variando entre merendeiros, lixeiros e seguranças – 22% por colegas de classe, dentro das salas de aulas ou festas promovidas em nome de seus cursos, e 7% não especificaram seus agressores.

CAUSAS

A mestre em Ciências Sociais Beatriz Isola Coutinho, configura assédio como ato que desqualifica, submete e fere a dignidade humana, e que geralmente o fenômeno está relacionado às interações de poder.

“Não é raro que o assédio esteja relacionado às posições hierárquicas ocupadas pelos indivíduos em determinado ambiente social. Por essa razão, os relatos de assédio nas empresas, cometidos por chefes ou por outros indivíduos são mais comuns. O mesmo é válido para assédio sexual, onde mulheres e minorias sexuais despontam como as maiores vítimas, pois vivemos em sociedade machista e patriarcal”, conceitua.

Segundo Beatriz, estas situações estão enraizadas em nossa sociedade, e existem porque encontram facilidades em diferentes esferas da vida social. “Várias ações que caracterizam uma conduta de assédio estão arraigadas no comportamento coletivo, e por isso, podem se tornar toleráveis ou aceitas pela sociedade. Nós temos componentes culturais, como o machismo, e a quase certeza da impunidade por parte do indivíduo que assedia. As condutas assediantes estão carregadas de visões de mundo, como o desrespeito às diferenças e o abuso do poder”.

SEQUELAS

Isolamento social, complexo de inferioridade e dificuldades em manter uma relação são algumas das sequelas deixadas nas vítimas deste ato, segundo a doutora em Psicologia, Fernanda Saviani Zeoti.  “Infelizmente, a vítima assediada sente-se inferior, e isto é um problema. Ela não se vê capaz, conseguindo fazer as coisas. Tem dificuldade em manter relações, passa a ter postura depressiva, isolada dos outros e do ambiente familiar.”

O abandono de atividades cotidianas, como o caso de V.T., que desistiu do curso técnico ao ser assediada por seu professor, também é uma consequência dessa violência. De acordo com Fernanda, o medo do encontro com o opressor faz com que a vítima abandone os locais de origem do assédio.

“Se o assédio acontece na vida acadêmica, a pessoa não vai mais querer estar no local, faltando às aulas, por exemplo, para fugir da situação, o que gera um decréscimo na produtividade e aproveitamento acadêmico. Não vai prestar atenção nas aulas por preocupação do que pode acontecer.”

NO BRASIL

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Em pesquisa realizada pelo Datafolha, 42% das brasileiras com 16 anos ou mais, afirmam já terem sido vítimas de assédio sexual. Os casos são mais frequentes entre as escolarizadas e com renda mais alta, 57%, frente àquelas que estudaram até o ensino fundamental, onde a porcentagem chega aos 26%.

Constatou-se que a maioria dos casos de assédio aconteceram nas ruas e em transportes públicos (29%). Uma em cada três brasileiras adultas afirma ter sido vítima nestes ambientes.

NO CAMINHO 

O relógio marca 10h da manhã, uma das ruas do bairro Iguatemi, em Ribeirão-Preto, SP, está movimentada. G.Z, estudante de Arquitetura e Urbanismo, caminhava para a faculdade quando um carro encostou ao seu lado, na contramão. Sem entender o que estava acontecendo, a jovem aproximou-se, imaginando que o motorista fosse perguntar algo. 

“Na hora, achei que fosse pedir informação, mas quando entendi o que estava acontecendo, travei.”, relata. Segundo a jovem, o motorista estava sem as calças, se masturbando e lhe dirigindo palavras obscenas. “Corri, com medo dele me seguir”.

O mesmo aconteceu com Juliana Peres, de 24 anos. A estudante de Publicidade esperava, como de costume, o transporte público. Ouvia música em seu fone, quando percebeu movimentação estranha ao seu lado. Ao olhar, sentiu nojo. “Um senhor, de uns 60 anos, com a mão dentro da calça, masturbando-se. Eu xingaria, mas senti nojo. As ânsias de vômito me forçaram a sair de lá, com muita raiva.”

“Já passei por ataques de pânico por medo de ser estuprada ou assediada na rua. É mais presente na vida das mulheres do que muita gente imagina. Vivemos com medo!”, lamenta.

SORORIDADE

Priscila-Gama
Priscila Gama é a criadora do aplicativo Malalai. Clique aqui e conheça o site do app.

“Desde muita nova – acredite – aos oito, nove anos, ouvia homens dizendo sobre como eu, e minha irmã, nos tornaríamos mulheres bonitas e daríamos trabalho. Aos 13, 14, quando andava sozinha na rua, ouvia homens mexendo comigo. Na universidade, UFV (Universidade Federal de Viçosa), havia recomendações gerais para mulheres não irem a regiões afastadas sozinhas”, comenta Priscila Gama, hoje com 34 anos, formada em Arquitetura e Urbanismo. 

Ao acompanhar a HashTag #primeiroassedio – promovida pela ONG Think Olga – e se deparar com diversas histórias relacionadas à deslocamento, Priscila decidiu agir. Com planos em mãos, levou sua proposta para o Startup Weeknd BH – evento que reúne profissionais e entusiastas para compartilhar ideias e criar startups.

Entre os competidores, o projeto de Priscila ficou em segundo lugar, trazendo a vida o Malalai, aplicativo que apresenta pontos positivos e negativos nas rotas das usuárias, proporcionando segurança para que possam percorrer seus trajetos diários. 

O aplicativo, disponível tanto para Android como para iOS, funciona da seguinte maneira:

Ao disponibilizar a atual localização e adicionar um destino, a usuária recebe possíveis rotas e suas qualificações e pode optar pela mais segura, podendo ainda adicionar contatos de confiança para que mensagens automáticas sejam enviadas em pontos indicados do caminho, proporcionando segurança a usuária e tranquilidade a quem espera. É possível, também, compartilhar toda rota de maneira simultânea, e caso o trajeto demore mais que o tempo previsto, o contato escolhido será avisado. Para situações de urgência, o Malalai possui a função de acionamento simultâneo de três contatos confiáveis através de SMS e de forma gratuita.

Questionada sobre a definição de ‘rota segura’, Priscila explica que foram aplicados conceitos aprendidos em  sua graduação. “No urbanismo existe o conceito de olhos das ruas. Significa que uma região com maior iluminação, movimento, vizinhança, por exemplo, será mais segura que uma região isolada. Os itens escolhidos para mapeamento têm relação direta com isso.”

Segundo pesquisa da Associação Brasileira de Startups, quatro entre dez empresas inovadoras no país não têm uma mulher sequer trabalhando. Indagada sobre as dificuldades enfrentadas, Priscila afirma ser exceção. “É um sentimento dúbio. Tenho quase certeza que recebi atenção por ser exceção, mulher negra a frente de um projeto de tecnologia falando sobre estupro, e ao mesmo tempo ser quem eu sou constitui uma barreira em alguns casos. Tenho sempre que provar que mereço confiança e atenção fazendo 10 vezes melhor. Digo que há a diferença entre culpa e responsabilidade: culpa de uma sociedade patriarcal, machista e racista, minha responsabilidade de saber que a régua, pra mim, é mais alta”.

Atualmente, o aplicativo conta com 27 mil downloads, com cerca de 10% ativos. Segundo Priscila, são ótimos níveis. Sobre a caminhada do App, demonstra determinação: “Tem caminhado mais lentamente do que gostaríamos, com certeza, já que nossa equipe é formada por três pessoas. Mas não paramos, porque acreditamos no projeto”, finaliza.

CRIME?

Além de ferir a dignidade humana e gerar danos para a saúde mental da vítima, assédio é crime. Segundo a mestre em Direito Penal, Leisa Boreli Prizon, a lei contra o assédio sexual existe, porém não se aplica em todo âmbito social. A lei citada pela advogada, nº 10.224 do Código Penal, especifica o crime em relações trabalhistas. “Estes ocorrerão em situações onde haja uma relação de emprego, hierarquia.” A pena pode variar entre um e dois anos de prisão, podendo aumentar em um terço caso a vítima seja menor de idade.

Em caso de assédio moral, Leisa explica: “Não há previsão legal para proteção dos empregados do setor privado no Brasil. Embora não exista legislação específica, o assediador pode ser responsabilizado nas esferas administrativa, como infração disciplinar, trabalhista, civil.” 

Questionada sobre como proceder caso a vítima não esteja amparada por leis específicas, a advogada elucida: “Há condutas chamadas de assédio podendo ser consideradas criminosas, como constrangimento ilegal, crimes contra honra, racismo, lesões corporais, ameaças… Nesse caso, procure fazer anotações detalhadas das situações de assédio, como data, horário, local, testemunhas, descrição dos fatos. Junte todas as provas possíveis, tais como bilhetes, presentes e fale com pessoas que testemunharam. É permitido denunciar situações de assédio próprio ou de outras pessoas na Delegacia de Atendimento Especial à Mulher ou em qualquer delegacia comum, no RH da empresa, no Ministério Público do Trabalho, Sindicatos, Delegacia do Trabalho”.

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